CAPÍTULO VII

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Já dizia o pensador contemporâneo Thomas Carvalho: "depois da tempestade, vem uma tempestade pior ainda". Chamar o que eu estava perto de vivenciar de "tempestade" era uma ofensa direta a todas as tempestades do mundo, das mais sutis até aquelas mais violentas, com furacão e tudo.

Minha convivência com a família Carvalho jamais fora fácil. Parecia que minha mãe fazia de tudo para me irritar. E meu irmão mais novo, Ricardo, fazia de tudo pra me irritar. Meu pai, graças a Deus, era sumido desde que eu me conhecia por gente. Meu padrasto era basicamente o cocô do próprio demônio.

Lembro que quando era mais novo e estudava em uma escola interna, às vezes cometia atrocidades para ficar de detenção e ser proibido de visitar a família no final de semana, porque eu simplesmente não queria ver a família no final de semana, ou durante a semana, ou em qualquer dia, num geral.

Relutante, vesti uma roupa básica porque não queria gerar críticas (minha mãe criticava absolutamente tudo que eu vestia), escovei os dentes, dei comida para Enzo - o cachorro de três patas - (que nomeei assim porque era um nome bastante sugerido no Google) e saí de casa perto das dez e meia.

Como a casa da minha mãe é muito longe, chamei um táxi. Tentei oferecer Enzo, o cachorro, como forma de pagamento e o taxista recusou, então falei que iria pagar a conta na chegada, com o dinheiro que minha mãe me daria.

*

Não tem nada que eu odeie mais - exceto o Enzo, o desgraçado do Tiago, todos meus ex-patrões, meu primo Bernardo, meu irmão Ricardo, meu padrasto, etc. - do que taxista que não cala a boca nunca. Seu Pedro, o taxista em questão, me relatava o recente falecimento de sua avó, o que me deixou profundamente entediado. Antes da metade do caminho, anotei meu suposto endereço em um pedaço de papel para que ele me cobrasse mais tarde, e saí do carro para continuar a pé, porque eu arriscava dar um murro na cara daquela poc se continuasse naquele carro.

Cheguei na casa da minha mãe exausto e, ao visualizar a casa que eu vivera até meus dezenove anos, fiquei mais exausto ainda. Pensei em dar meia volta e retornar para meu apartamento, porque a rua estava lotada de carros conhecidos. O carro de tia Lourdes, o da outra tia Lourdes (minha avó não era muito criativa), os carros de outros dois tios, Engelberto e Enbergelto, e de outros tantos parentes que eu odiava tanto - ou mais - que os recém citados. Mesmo percebendo que minha mãe me emboscara em um almoço com toda a família, segui até a entrada da casa porque eu precisava do dinheiro.

Toquei a campainha e quem me atendeu foi tia Lourdes Dois:

- Ah, meu Deus, Thominhas! - ela disse, abrindo os braços para me abraçar.

- Oi, tia Lourdes número dois! - Respondi, fazendo ela franzir o cenho por não ser a "tia Lourdes número um".

Entrei na sala, ignorando meus quatorze primos e fui direto para a cozinha, onde avistei minha mãe, com o vestido sagrado de domingo - certa vez ela cismou que, ao passar o vestido, ele adquiriu a face da Nossa Senhora e, desde então, usava ele todo domingo.

- Posso saber o motivo dessa gente toda aqui? - perguntei, enquanto ela colocava uma torta no forno.

- O aniversário do seu irmão... não vai dizer que esqueceu!

- Que irmão? - falei, brincando.

É claro que eu havia esquecido do aniversário. Depois dos vinte anos eu parei de contar até os meus, quem dirá o dos outros. De qualquer forma, eu não tinha dinheiro algum pra comprar qualquer presente, nem uma revistinha de pintar do Patati e Patatá.

Saí dali para encontrar Ricardo, o meu irmão, não para parabenizá-lo, mas para assustá-lo com o conto do Chupa Cu. Antes que eu pudesse encontrá-lo, no entanto, a Outra Tia Lourdes veio em minha direção com os braços estendidos.

- Afilhado! Quanto tempo! - Pensei que bem que poderia ser mais tempo, mas fiquei quieto. - Deu uma engordada, ein? E que cabelo é esse?! Quase não tem cabelo mais!

Filha da mãe! A Outra Tia Lourdes adorava jogar na minha cara que o filho dela era magérrimo e trabalhava como modelo em Milão. Eu dizia a todo mundo que, na verdade, ele andava se prostituindo na Índia e, talvez por esse motivo, sempre que me via, a Outra Tia Lourdes criticava minha aparência. Além disso, a desgraçada era podre de rica e insistia em me dar um presente só de Natal e aniversário porque dizia que as datas eram próximas, sendo que tinha quase dois meses de diferença.

Disse à tia Lourdes que o vestido dela parecia uma capa de botijão de gás e que o rosto estava ligeiramente mais enrugado do que na última vez que a vira e dei às costas para ela.

*

Ao meio dia, minha mãe chamou todo mundo para o almoço. Uma longa mesa - dessas de festa de comunidade - havia sido disposta no jardim. Sentei entre tio Engelberto e Enbergelto, que só falavam de negócios e ficavam me diminuindo, porque seus filhos faziam parte dos negócios e eu não fazia parte de absolutamente nada, a não ser do fã clube da Lady Gaga.

Durante os longos vinte e cinco minutos de almoço, segurei a vontade de jogar muitas coisas em muitas pessoas. No meu padrasto, nas tias Lourdes, no meu primo, na minha mãe, no meu outro primo, nos meus outros doze primos e até mesmo no aniversariante, o meu irmão. Farto daquilo tudo, berrei:

- Porra mãe, quanto tempo vou ter que aguentar essa palhaçada até você me dar esse dinheiro? - gritei, me levantando da mesa. - Sim, Engelberto e Engerbelto, que ótimo que os negócios vão bem! Tia Lourdes Um, seu filho só continua em Milão porque anda se prostituindo e, para ser sincero, faz algum tempo que ele não aparece numa revista de qualidade, né?! Tia Lourdes Dois, fui eu quem furou seu pneu no último encontro de família que eu estava presente porque a senhora é insuportável e ninguém quer saber da dieta de ovo que a senhora faz porque você peida muito fedorento! E porra, cada um de vocês teve um filho mais irritante que o outro, que merda são essas crianças?!

Um silêncio instalou-se à mesa, enquanto minha mãe engasgava. Na sequência todos começaram a protestar, iniciados pelo meu padrasto. As duas tias Lourdes desandaram a falar em alemão, sabendo que eu não entendia merda nenhuma e eu odiava quando elas faziam isso, porque era sempre quando queriam falar mal de mim pelas costas - só que bem na minha frente.

- Querem falar mal de mim em alemão, vão pra Alemanha, porra! - Gritei. - Conheço a introdução de Scheiße, da Lady Gaga de cor!

- Modos, Thomas... modos - minha mãe começou, logo interrompida pela Lourdes Número Um.

- Boa educação nunca foi o forte do Thomas, Fátima. Eu disse a você que...

- Tia Lourdes, vá tirar o seu filho da prostituição e não encha o meu saco! - Berrei, atirando uma coxa de frango nela.

Levantei e saí da mesa em direção ao quarto da minha mãe, onde eu sabia que ela guardava seu dinheiro. Abri o guarda roupas, tateando em busca da madeira falsa. Encontrei as notas de duzentos reais ali e guardei tudo na minha eco bag que eu trouxera de casa.

Corri para a porta da frente, pensando que alguém poderia vir atrás de mim, mas estavam todos muito ocupados falando mal da minha pessoa no jardim. Fui até a esquina mais próxima e abri o aplicativo do 99, agora com aquele dinheiro todo, tinha como pagar a corrida até meu apartamento.

*

Esperei meu motorista, o "Zé Punch" na esquina. Tive tempo de riscar o carro de todo mundo com uma pedra antes dele chegar.

"Zé Punch" chegou em cerca de quinze minutos, adentrei o carro e, assim que sentei no banco, senti uma sacola sendo colocada em minha cabeça.

- Não reaja e passa esse seu celular! - O homem gritou. - Isso é um sequestro!

Ah não, porra, Universo?! Mas que merda?!

AS DESVENTURAS DE UM BORDERLINEWhere stories live. Discover now