Capítulo 4 - Aracnóide.

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Quando o professor entrou na ala hospitalar, na manhã seguinte, eu já estava no quarto do paciente. Me dividindo em dois para fazer o meu trabalho e o dos outros que não chegaram ainda. Sua expressão era de exaustão. Era visível que não havia dormido o tanto que deveria.
Dei um sorriso, mas logo o sorriso se desfez quando ele iniciou algumas perguntas rotineiras. Esperava um elogio e aprovação, recebi, todavia, um olhar daqueles que dizia “não fez mais que sua obrigação”.
Após ajudar a fazer as necessidades básica dos pacientes antes que os outros estudantes chegassem, resolvi puxar um assunto finalmente:
— O senhor está com cara de quem não dormiu — comecei pelas bordas da conversa, sem me adiantar com o assunto que açoitou minha mente a noite anterior. Enquanto nos dirigimos até o corredor, bebericava um pouco de água, como de costume, pra enganar a minha fome.
Ele bocejou e apoiou o rosto sobre o braço.
— Oh, sim! De fato. De vez em quando faço dois plantões em um dia, além de dar aula e resolver outros trabalhos por fora.
— Pela remuneração?
— Não. Eu realmente amo o que faço. O pagamento é a consequência, o bônus, de tudo isso.
— E não dorme? — perguntei, cada vez mais surpreso.
—  Sono polifásico. Não é a mesma coisa de um sono normal, mas tem me ajudado em dias corridos.
— Então, parcela o seu sono um pouquinho em todo o momento disponível. Então era por isso que sumia as vezes...
— Você é bem observador — olhou-me com um olhar que pela primeira vez vi alegria genuína nele. Seus olhos sorriam pra mim. — Porém, meu jovem, isso não é tudo.
Por um tempo permanecíamos calados. Era a primeira conversa normal que tivemos, ao menos a mais duradoura até então. Senti-me como se nós conhecêssemos há décadas. E nesses poucos dias convivendo com ele, não o vi sorrindo assim plenamente antes. Mas devo admitir que foi o sorriso mais cansado que já vi em uma pessoa. Apesar de ter cuidado de alguns enfermos. E era bom ver o outro lado da moeda, um lado que não conhecia do meu instrutor.
— Na lista de presença, possui o meu estado clínico? — Perguntei. Fiquei surpreso de que a pergunta saíra de minha boca antes que eu conseguisse articulá-la em minha mente, como se me dominasse e não o contrário.
— De forma alguma.
— Então, como soube que tenho diabetes?
— Ora, mas isso foi a coisa mais fácil do mundo de deduzir.
“Dedução?”, pensei, “jamais algo assim tinha passado em minha mente, mesmo sendo o óbvio, a mera dedução na realidade era algo obsoleto para mim.”
Ele se sentou em um banco próximo e pediu para que eu me sentasse também. Imaginei que aquela explicação tomaria um tempo, então obedeci. Ele iniciou:
— Primeira coisa, você bebe muita água — apontou para a garrafa em minha mão — vai muito ao banheiro. Sente uma excessiva fome. Pela forma que come, isso é natural pra você, porém, seu físico é de alguém abaixo do seu peso normal.
— Poderia simplesmente chutar que isso é uma mera ansiedade e um metabolismo acelerado...
— Imaginei que você diria isso. Mas minha análise não para por aí. Sua exaustão, eu consigo notar em sua fisionomia esse seu cansaço. Essas juntas são características claras e perceptíveis de um diabético. Mas tem a cereja do bolo — segurou em minhas mãos e prosseguiu: — Quando apertei sua mão ontem, foi o fato crucial que me fez constatar o que tinha. Sua pele é seca e áspera. Sua idade e peso revelam que é diabético do tipo 1, embora isso não seja um fator determinante. E cada caso precisa ser respeitado...
Engoli a seco. O pensamento lógica e rápido dele me arrancou ainda mais surpresa. Não havia, em nenhum momento, percebido os seus olhos me escaneando. Ainda assim, ele conseguia descrever minhas ações e patologia com extrema maestria.
— Isso foi fantástico…
— Você precisa ter esse olhar clínico. A habilidade que alguns profissionais da saúde têm. Em breve, você vai desenvolvê-la.
Alguém se aproximou:
— Enfermeiro Raymount!
Raymount levantou-se e apertou a mão do policial e do enfermeiro que veio ao seu encontro.
— Policial Malcolm e Enfermeiro Sebastian — esse respondeu. — Prazer revê-los. A que devo a honra?
— Temos mais uma ocorrência — disse o enfermeiro.
— Precisaremos de sua opinião, Senhor — completou Malcolm — E também seu olhar aguçado.
— A caminho. Só um estante — Raymount se aproximou de mim e falou em um tom particular: — Me acompanha? Você verá o que eu te disse na prática. Por favor, Enf. Sebastian, fique aqui cuidando dos outros estudantes e clientes, você é meu substituto hoje.
Sebastian não foi contra as ordens do professor, levantei e o segui junto com o policial, muito curioso. Que tipo de ocorrência estavam falando? Decerto, ele iria usar isso como uma aula para mim. Em silêncio, durante o trajeto, notava alguns enfermeiros e médicos cumprimentando Raymount e alguns estudantes o observando com um olhar evidente de medo e, ao mesmo tempo, respeito e admiração para aquele homem. Alguns outros profissionais estavam parados no corredor conversando com policiais em frente a uma porta entreaberta. Um senhor de sobretudo e chapéu fedora veio ao nosso encontro assim que nos viu e apertou a mão do professor, como se o mesmo fosse um herói.
— Inspetor Dennis Hoey! — Raymount o cumprimentou — Qual o ocorrido dessa vez?
— Enf. Raymount! Que bom que está aqui! — disse o inspetor — Muito difícil de explicar, Senhor. Sete estudantes e uma professora morreram misteriosamente.
— Misteriosamente. — repetiu o professor.
— Não saberei descrever nem se eu dominasse todo o dicionário. Segundo o relato de uma estudante, estavam em reunião nessa sala, a nossa frente, e em pouco tempo todos morreram. Apenas um paciente da sala ao lado ouviu o grito da professora, mas durou muito pouco tempo. Logo ela se calou.
— Possivelmente foi nesse momento que ela morreu.
— Sim. E essa estudante que serviu como testemunha chegou atrasada, por sorte. Ela não chegou a entrar na sala ou acender a luz, da porta mesmo começou a passar mal, possivelmente ao ver os corpos. Chamou o instrutor Sebastian, o qual nos contactou.
— Estranho… Averiguarei. Antes de tudo, preciso que permita que meu auxiliar entre na sala comigo.
O professor me levou a uma sala onde estavam os equipamentos de proteção individual necessários para entrarmos naquela sala. Calçamos as luvas, colocamos a touca, óculos de proteção, máscara e por fim o avental.
— Não sabemos o que nos aguarda lá dentro; por isso, é melhor se prevenir da forma que pudermos.
A cena que presenciei me deixou sem palavras. Na sala, corpos de estudantes, espalhados no chão. Uns rígidos, outros, contorcidos. As mãos na cabeça, como se tivesse sentido muita dor naquela região. Mas não havia sinal de agressão física. A professora e, ao seu lado, outro estudante também morto.
Raymount andou pela sala em silêncio, querendo manter a integridade das evidências e tocou no pescoço de algumas das vítimas. Olhou por dentro das roupas delas: havia manchas vermelhas. E olhou para mim:
— Sabe o que são essas manchas? — sussurrou.
Me abaixei, olhando um pouco mais de perto.
— São manchas similares à de meningite.
— Exatamente.
— Mas não tem como ser. Meningite mata rápido, mas não nessa velocidade. É surreal.
— Essa é a minha segunda questão.
— E qual é a primeira?
— Você verá — colocou-se de pé novamente.
— O que constatou? — perguntou o inspetor.
— É viável dizer que a morte foi por meningite.
— Você não vai me fazer acreditar que eles foram mortos por uma doença, e com tanta rapidez assim.
— Por mais difícil de acreditar. As mortes não foram causadas por traumas. Não há sinal de violência ou brigas no local. Meningite, como sabemos, é a inflamação das três meninges, as camadas protetoras do cérebro. A primeira, dura-máter, aracnoide, é a intermediária, e a pia-máter, a mais profunda e próxima do cérebro. Um dos sintomas da meningite é a rigidez do pescoço, a dor intensa da cabeça e a sensibilidade à luz. Por isso, alguns morreram com o corpo contorcido, as mãos na cabeça. E até mesmo com os olhos protegidos tanto da luz da própria sala quanto da luz que entrava pela janela. Alguns convulsionaram e até mesmo morreram sufocados com seu próprio vômito.
— Não precisa me dar uma aula, professor. Por favor, vamos ao que interessa…
— Agora que começarei com as teorias. Você disse que a testemunha não chegou a acender a luz, isso é um detalhe importante, significa que a professora a apagou. O que reforça a minha suspeita. Há diversas pegadas na sala, mas se olhar mais atentamente, tem uma mais apagada, obviamente a mais antiga. Ela se afasta das outras e para próximo ao ar-condicionado. Em geral, a meningite é causada por qualquer forma de contato entre o patógeno e as mucosas, o nariz é uma delas. Alguém colocou o patógeno no ar-condicionado e, quando ele foi ligado, espalhou-se pela sala, sendo inalado pelas vítimas. Note que a instrutora está caída também próxima do ar-condicionado, é lógico dizer que ela tentou desligá-lo ao notar o desconforto persistente dos seus alunos. O aluno, caído ao seu lado, tentou ajudá-la, mas junto com o restante acabou morrendo antes que pudesse fazer alguma coisa.
— Essa foi a causa da morte?
— Caso duvide, tem a testemunha que o senhor interrogou, ela deve estar com os mesmos sintomas que descrevi aqui, não é mesmo? Afinal, mesmo não entrando na sala, acabou inalando o patógeno.
O inspetor concordou com a cabeça, por mais surreal que fosse aquilo, tudo girava em torno da teoria do professor e era irrefutável. Raymount se aproximou do ar-condicionado e recolheu uma amostra do patógeno com um cotonete.
— Mas meningite não mata em poucos minutos, mata?
— Claro que não. Essa é minha dúvida.
E antes de sair daquela sala:
— Ah, e suspeito que o assassino seja alto. Suas pegadas são largas e não precisou de cadeira para colocar o patógeno dentro do ar-condicionado, diferente da professora.

O caso do professor RaymountWhere stories live. Discover now