Pocahontas

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— Valeu, Zé! — falou Jeffim depois de receber as chaves do carro da mão de Cadin.

Ele pegou a vã, retirou-a da oficina com não muito cuidado, cantando pneu na saída.

— Qualquer dia ainda vou comer esse moleque na porrada! — exclamou Cadin com sangue nos olhos — Zé! Quem ele pensa que é pra ficar chamando os outros de Zé? Cara otário.

— Eu pago pra ver.  Vai mexer com gente que tem, pra você ver o que acontece! — disse Agenor fazendo sinal de dinheiro com os dedos.

Cadin ficou calado. Pouco se importava com as consequências de tampar com um playboyzinho de merda dado que arrebentasse com a cara do sujeito de tal modo que nunca mais passasse por ele de cabeça erguida. A revolta que jovens como Cadin sentem é algo confuso e desorganizado, eles conseguem ver o mal imediato que os aflige, mas não as raízes profundas que o alimentam e desconhecendo tal origem chegam até mesmo a se identificar com ela:

— Enquanto a gente viver num mundo onde os que trabalham não lucram e os que lucram não trabalham, vai ter gente como Jeffim, que veem a todos como um bando de Zé Ninguém. — Falou Agenor com pesar, depois de um instante de silêncio.

— Como assim patrão? — Perguntou Xixi.

— Nada, esquece. 

Os três ficaram ali parados, pensativos, remoendo pensamentos e emoções no claustro de suas almas. Cadin sentado em um pneu velho, riscava o chão com uma chave de fenda, se sentindo o mais miserável dos homens, se é que podia se considerar um homem de fato.

***

Índio vivia com sua família, numa casa modesta no Monte Líbano. Ele dividia o quarto com os irmãos Henrique e Marcos, o que o incomodava bastante. Dormia no segundo nível de uma beliche de metal, que rangia quando se mexia na cama. Marcos, que dormia em baixo, incomodado com o barulho, dava socos no fundo da cama de cima, deixando Índio indignado. Na noite em que viram uma estrela-cadente no Parque Diamante desejou ser Almirante da Marinha. Desde que tinha a idade de Henrique gostava de navios e embarcações. Seu anime favorito era One Piece. Que contradição, não? Um jovem com alma de pirata e ambições de militar. Com apenas quinze anos trabalhava para auxiliar nas despesas de casa, dado não ser fã de estudar em colégio. Terminara e ensino fundamental e pronto. Seus pais costuravam cuecas em casa para uma empresa chamada LifeBio. É o que usualmente se chama por aqui de facção. Algo criminoso, inclusive, já que a facção é uma forma dos patrões terceirizarem o serviço de suas empresas se eximindo dos custos dos direitos trabalhistas de um funcionário regular.

Certa tarde, enquanto passava elástico nas cuecas em sua casa, sua irmã Jéssica, chegou do colégio toda... serelepe, o que causou estranhamento a todos, pois a moreninha fazia do tipo marrenta e de poucas palavras. Deu um beijo no rosto dos pais e entrou cantando para o seu quarto. Jéssica era a única pessoa da casa que tinha o privilégio de ter um quarto só para si, não era grande, mas era só seu:

— Que deu nessa menina? — perguntou Isabel, mãe de Índio.

— Sei lá, essa praga é doida. — respondeu ele.

Jéssica e Índio apesar de viverem se estranhando, eram como unha e carne. Ela era apenas um ano mais nova que ele. Quando pequenos e brincavam na varanda de casa, Índio sempre era o rei pirata e ela a donzela indefesa raptada pelos marinheiros malvados a ser salva da prisão na Ilha Tortuga. Já aos treze anos ela apresentava um corpo maduro, com quadris largos e seios relativamente volumosos, o que despertava atenção de homens de todas as idades. Cabelos lisos devido a ascendência indígena e pele amarronzada lhe renderam o apelido de Pocahontas. Ela era louca para namorar, mas como seus pais eram crentes faziam de tudo para boicotar a menina. Tiro-lhes a razão? Não. Numa sociedade onde a criação dos filhos é uma responsabilidade imediata da mulher e na qual os "homens" não sentem remorso em abandonar uma cria, preservar as meninas da gravidez na adolescência é a solução mais acessível para as famílias humildes.

Ao final do expediente, Índio subiu até a laje de sua casa, sentou-se num canto e colocou uma um prensado no dichavador para  bolar um baseado. Colocou a maconha numa seda Smoking Red e acendeu. Índio gostava de ouvir heavy metal quando chapava sozinho.  Era fã de Black Sabbath e Slipkinot, influência de seu irmão Marcos que era roqueiro. Enquanto brisava, ouviu gritos vindos de dentro de casa. Atentou os ouvidos para tentar entender o que ocorria: "Tu vai matar a menina, José!". Era a voz de sua mãe. Índio desceu as escadas da laje correndo, com o coração acelerado. Ao entrar pela porta da cozinha, viu seu pai no corredor, vermelho de raiva, puxando Jéssica pelos cabelos para fora do quarto. Ele não lhe dava tapas, mas socos nas costas, fazendo-a gemer. Isabel, aos prantos, tentava conter inutilmente a ira do marido:

— O que tá acontecendo? — perguntou Índio.

— Tá acontecendo? Tá acontecendo que eu não tenho filha piranha pra ficar se oferecendo pra vagabundo!

José ouvira Jéssica trocando áudios íntimos com algum rapaz pelo celular e arrombara a porta do quarto colérico. 

— Para pai, você vai machucar a menina! 

— Eu vou matar ela, matar. Eu vou matar ela! Eu não criei filha piranha!

Índio foi sendo tomado por uma angústia inominável, estava com medo de acontecer algo com a irmã, mas não podia fazer nada contra seu pai. Ele dava socos e mais socos em Jéssica, que gemia de dor sem derramar uma lágrima sequer. Um filme passou-se pela cabeça do rapaz. Foi tomado por um sentido de indignação, que o fez desejar acabar com a raça de seu próprio pai por um instante. Ele avançou em direção os dois e pegando-o pelo colarinho e passou-lhe um bandão fazendo o cair com um baque seco de costas no chão. Os dois se encararam como dois cães raivosos.

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⏰ Last updated: Jan 31 ⏰

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Os Crias do MorroWhere stories live. Discover now