Peugeot

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Cadin acordou às oito e meia sentindo-se arrebentado, tivera um pesadelo do qual não se lembrava muito bem, mas que o deixara com uma sensação das mais desagradáveis. Sentou-se na cama com olhar vago e o rosto ainda amassado, um fio de saliva espeça escorria por sua boca, esfregou os cabelos cacheados e deu um longo suspiro. Quando nos tornamos adultos, esquecemos o quão difícil pode ser para um jovem lidar com as questões da vida. O passar dos anos tende a nos endurecer como a sola dos pés que engrossa conforme andamos descalços, somente os poetas e os depressivos não criam essa casca em torno de seus corações. Cadin não vivia um de seus melhores momentos. Em casa, no trampo, nos rolês... estava aparentemente bem, mas por dentro era tomado por um vazio inexplicável, e um desejo de jogar tudo para o alto e sumir, para não dizer coisa pior. Pegou o maço de Payol que deixara ao lado da cama e acendeu um cigarro, deu três longas tragadas e desejou estar chapado de maconha. Depois de se vestir foi até a cozinha, sua avó o aguardava com a cara amarrada:

— Tá atrasado pro serviço. — Cadin deu de ombros — Se você perder esse serviço...

— Eu te boto pra fora de casa! — retrucou ele em tom deboche.

Serviu-se um copo bem cheio de café e foi até mesa onde dona Aparecida estava sentada e deu-lhe um beijo no cocuruto:

— Desde que eu tenho quinze anos a senhora fala isso e nunca cumpre.

Ela desdenhou do neto, mas, no fundo, estava como que uma manteiga derretida. Não há avó que resista a um beijo malandro no cocuruto. Pegando o pão o e a faca, cortou-o e encheu-o com bastante manteiga, como o neto gostava:

— Quer que coloque na chapa?

— Não, vai demorar muito.

Cadin tomou seu café devagar, mas com certo remorso de chegar atrasado no serviço novamente. Era uma característica sua, quando se via diante de um problema ficava travado ao invés de tomar um gás para superar a situação. Com o passar dos anos aprendeu a refinada filosofia existencialista que se sintetizava na máxima "fodido, fodido e meio", ou como diziam os antigos, já que estamos na merda, afunda até o pescoço. Ao chegar à oficina de Agenor, onde trabalhava, foi recebido por Xixi, seu amigo e colega de trampo, um jovem negro, magro, alto e sorriso fácil:

— Peugeot! — disse ele, arremessando-lhe uma chave de boca.

A oficina ficava localizada no bairro da Balança, era um estabelecimento amplo com peças e ferramentas por todos os lados, mas tudo muito organizado e limpo, a exceção da graxa que inevitavelmente se afixa por todo o canto em que encosta. No letreiro à entrada do estabelecimento lia-se Oficina Dois Irmãos: agilidade e qualidade. O acesso ao local era meio complicado, rua estreita, subida de morro... mas compeçava pela qualidade serviço prestado. Quatro anos consecutivos condecorada com o prêmio Melhores do Ano: Melhor serviço de Mecânica e Automobilística. 

— Droga! — respondeu Cadin.

Quando vinha Peugeot para a oficina, era um verdadeiro inferno. Agenor ficava uma pilha de nervos: "Essas pragas devem ter sido projetadas em Marte!" dizia ele. O carro era uma vã, de um empresário da cidade do ramo de confecções, chamado Francisco Pitondo. Havia dado problema na suspensão.  Carros franceses tem uma mecânica complicada, as peças costumam não servir em outros carros, além de serem caras, o que reduz a margem de lucro dos mecânicos na hora do conserto. Mas os Pitondos só usavam Peugeot. Tanto nos veículos das confecções, como nos carros de uso pessoal e Agenor era o mecânico preferido da família. Agenor e Francisco conheciam-se desde criança, foram criados na mesma rua, Idalina Pacheno, no Triângulo. Jogavam bola juntos e brincavam de pique quando crianças. Estudaram na mesma escola e frequentaram os mesmo espaços durante a adolescência.  Mas o que não é o destino, não é mesmo, um enricou e se tornou um dos homens mais influentes e poderosos da cidade, enquanto o outro virou um simples mecânico.

— Livramento — disse ele certa vez para Cadin — gente rica não tem paz. Eu chego nessa oficina às oito da manhã, faço meu serviço, saio às sete da tarde. Chego em casa, minha mulher tá me esperando com a janta pronta, os moleques tão entretidos assistindo TV ou vendo Galinha Pintadinha no celular. A gente conversa um pouco e vou dormir. Sexta-feira eu tomo uma gelada pra relaxar e assim a gente vai levando a vida. Já o Pitondo vive reclamando de dor de cabeça com funcionário, problema com a Receita Federal, mercadoria roubada a caminho de São Paulo... Eu nunca declarei imposto de renda na vida, nem sei como faz isso!

Cadin ouvira àquelas palavas com atenção, mas pensava mesmo em lançar um trap tendência, ficar famoso e ostentar grana e mulher. Ia fumar um quilo de maconha por dia, andar com três cordões pesados de ouro maciço e fechar o corpo de tatuagem. Muitas vezes caímos na armadilha de pensar que se multiplicarmos o prazer que sentimos em fazer ou ter alguma coisa encontraremos a felicidade, mas não é assim que funciona. Prazer e felicidade são coisas distintas. Ser feliz é muito mais uma questão de se manter aberto para o novo, compreender e respeitar os ciclos naturais da vida, ser generoso e evoluir, amadurecer. Mas infelizmente, os filósofos que poderiam esclarecer tais questões para nossa juventude estão enclausurados em suas Universidades e bibliotecas, à exceção de Mario Sérgio Cortella, é claro.

Quando os três finalmente conseguiram dar um jeito na suspensão do carro, já era por volta de meio-dia, eles almoçaram ali mesmo na oficina. Encomendaram quentinhas do restaurante da Tia Maria. Cadin não comeu nem a metade, estava sem fome. Nos últimos tempos seu apetite estava bem fraco, nem sequer sentia larica mais depois de fumar um baseado. Era o tal do vazio. Faltava alguma coisa em sua vida, algo que lhe desse um propósito de existir, que o enchesse de adrenalina. A vida poderia ser um filme de Hollywood, cheio de ação e reviravoltas, mas não era. Num roteiro qualquer, basta uma cena para apresentar o conflito de um personagem e na outra já se inicia sua jornada para superá-lo, só que na vida real tudo é mais complicado, e pior, mais demorado para se resolver. Pobres coitados dos ansiosos. Suportar a dor com paciência é caminho dos santos e sábios. Encher-se de remédios e drogas, porém pode ser uma alternativa mais popular. Mas o vazio... para esse ainda não inventaram remédio eficaz. Enquanto se perdia em pensamentos, alguém chamou do lado de fora, era Jeffim, filho de Francisco, viera busca a vã de seu pai. Cadin encarou-o com um ranço no olhar, nunca entendeu o porquê, mas nutria um ódio profundo daquele moleque:

— Fala aê, Zé. — falou o rapaz com um tom de soberba que lhe era típico — Deu jeito?

Ao ouvir sua  voz, Cadin cerrou os punhos.

Os Crias do MorroWhere stories live. Discover now