capítulo 1: Deus sabe que estou infeliz agora

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Outono em Berlim. Calçadas repletas de folhas amarelas, céu pesado roçando os topos dos apartamentos. Parecia um crepúsculo eterno aqui. Escuridão do amanhecer ao anoitecer. Noites sem estrelas.

A chuva parecia segui-lo onde quer que ele fosse. Já o havia perseguido por meio mundo. Ele entrou na estação do U-Bahn com o capuz levantado, sentindo o ar quente do metrô contra seu rosto.

Suas narinas dilataram-se, absorvendo-o. O cheiro era ao mesmo tempo nostálgico e repulsivo: motores funcionando em túneis escuros, corpos comprimidos uns contra os outros. Nos trens você fica íntimo do cheiro do suor de outra pessoa. Respirando seu ar reciclado. Essa era a vida na cidade. Ele sentiu vagamente falta disso, embora a ideia o deixasse nauseado.

O trem saiu do túnel escuro quase em silêncio e parou, com corpos entrando e saindo. Ele entrou, ocupando o assento vazio mais próximo ao lado de uma jovem que viajava sozinha.

Os corpos balançavam enquanto o trem avançava. Ele os observou, mas não por muito tempo. Crianças em mochilas conversando em alemão. Um homem bebendo uma cerveja. Uma comissária de bordo folheando seu telefone. Ninguém parecia consciente de seu olhar. Era incrível como poucas pessoas percebiam o que estava acontecendo ao seu redor.

Ele inclinou a cabeça para trás e deixou seu olhar suavizar. Faltam quatro paradas. Ele ainda mantinha um apartamento aqui, embora já fizesse anos que não o visitava. Algo nas suas raízes alemãs o compeliu a manter pelo menos um vínculo permanente com esta cidade.

Foi estranho estar de volta. Ele se lembrou de estar ali pela primeira vez, aprendendo seu alemão básico. Ainda no início da carreira. E pouca coisa mudou desde então, exceto o grande número de empregos que ele assumiu em um ano.

Ele se viu, mais do que nunca, à margem da sociedade. Nenhuma família para falar. Ninguém que pudesse ser chamado de amigo. Ele poderia passar semanas inteiras sem falar com outro ser humano. Ele sempre se orgulhou de ser um dos poucos, mas o que importava quando ninguém realmente sabia que você existia?

Sua experiência de intimidade passou a ser observar a vida se esvaindo dos olhos de alguém. A única vez que ele foi tocado nesses dias foi pelas mãos agitadas de seus alvos. Pele contra pele, geralmente com uma camada de látex preto entre elas.

Caso contrário, ele era um fantasma. As pessoas passavam direto por ele. Ele disse a si mesmo que não se importava. Isso era o que ele queria. Certo?

Ao deixar os olhos desfocarem, um som chegou aos seus ouvidos através do ronco baixo do trem.

Eu estava feliz na neblina de uma hora de bebedeira

Mas Deus sabe que estou infeliz agora

Ele inclinou a cabeça levemente. Sem olhar, ele sabia que o som vinha da garota ao seu lado. Música abafada vazando de seus fones de ouvido. Cepas de The Smiths que ele conhecia tão bem, que o colocaram na mente de matar.

Ele virou a cabeça, segurando-a pelo canto do olho. Ela estava encolhida contra a janela, com fones de ouvido e a jaqueta bem apertada em volta dela. Olhos parcialmente fechados, mas acordados. Consciente.

No segundo em que ele a olhou mais de perto, ela estava olhando para ele. Seus olhos se desviaram. E de repente ele soube. Era ela.

Em termos de informações factuais, não havia muito sobre ela que ele não soubesse. Nome do meio, número do passaporte, altura, alergias. Ele sabia que ela passaria várias semanas em Berlim em missão. Ela havia voado para Munique e de lá pegado o trem. Ele viu dezenas de fotos dela nos últimos cinco anos. Ela raramente mostrava os dentes quando sorria. E alguém a queria morta.

Deus sabe que estou infeliz agoraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora