Amargo e em doses homeopáticas!

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Com os olhos arregalados e fixos em Anna, Dennis gargalha alto, mas seus punhos estão tão apertados que suas mãos estão ficando vermelhas. Um leve sorriso se abre nos lábios de Anna que não tira os olhos de Dennis.

— Você é louca, mulher. Onde já se viu voltar dos mortos? Você me tirou do campo de batalha para tentar me convencer da sua historinha de ficção?

— Isso não é ficção, sargento. Eu lhe garanto não haver ficção nenhuma naquilo que estou lhe contando — rebate Anna, encarando as mãos cada vez mais vermelhas do sargento.

— Para mim chega! Vou embora daqui. Vou atrás de descobrir o que aconteceu de verdade com meu batalhão e o que se passou nos últimos 3 dias.

Dennis dá as costas para Anna e começa a cambalear na direção da floresta, mas seu corpo de repente trava. Ele não consegue mexer nenhum músculo e o desespero o invade novamente. Ele tenta falar, mas sua boca não se mexe; seus lábios estão colados e o suor começa a lavar o rosto cada vez mais vermelho.

— Existem coisas que você precisa entender antes de sair correndo por aí sargento, anuncia Anna andando lentamente após se levantar calmamente para ficar de frente com ele. A diferença entre eles é brutal. Sargento Dennis é pelo menos quinze cm mais alto e seu corpo é muito maior e visivelmente mais forte do que o de Anna. Mas ela simplesmente avança dois passos para ficar o mais próximo possível dele. Anna levanta a cabeça e mantêm os grandes olhos negros encarando ele. O sorriso ainda enfeitando os lábios como se ela estivesse se divertindo com tudo aquilo de alguma maneira.

— Estou tentando fazer isso da melhor maneira possível. Tentando evitar que você se machuque desnecessariamente ou enlouqueça — fala Anna calmamente. Repetirei bem devagar para você entender. Então ouça com cuidado. Você morreu. Assassinado, para ser mais precisa. E por algum motivo que eu também não entendo ainda, voltou dos mortos. Sim, isso mesmo, sargento. Você ressuscitou — rebate Anna girando os dedos enfeitados de anéis no ar como se escrevesse algo no ar. E devo dizer que voltou de uma forma melhorada. Você ainda não se permitiu prestar atenção no seu corpo, mas ele não é o mesmo que morreu.

Anna fica olhando para Dennis que continua colado ao chão incapaz de qualquer movimento.

A respiração dele começa a ficar ofegante e como um touro enfurecido ele luta para se mover. Como quem aprecia um show com, Anna esboça um sorriso zombeteiro, dá três passos para trás e cantarola.

— Abracadabra!

Como em um passe de mágica, Dennis que estava lutando consigo mesmo para se mover, vai ao chão. Estupefato, ele se levanta cambaleando para trás até esbarrar em uma árvore.

— Como você fez isso? Que truque foi esse? Pergunta Dennis atônito enquanto tateia o corpo em busca de alguma explicação.

— Hahahahaha — gargalha Anna chacoalhando as grandes caveiras coloridas que contrastam com os cabelos brancos e sua estrutura pequena parece ficar maior conforme seu corpo se move — Isso nunca deixa de me divertir! Truque nenhum sargento. Como eu disse antes, você voltou dos mortos numa versão nova e com melhorias. Eu também. Voltei conseguindo fazer algumas coisas que antes eu não podia.

— Isso é im-im-p-possível — gagueja Dennis com as duas mãos apoiadas no grande tronco atrás dele buscando apoio para não cair.

— Só porque você não entendeu e não compreende, não significa que seja impossível. Abra sua mente sargento. Sinta seu corpo. Ele está diferente. Você está tão preocupado em ter as respostas que você quer, do jeito e na hora que você quer, que não consegue enxergar o que está debaixo do seu próprio nariz. O mundo e suas delicadezas são muito maiores e muito mais complexos do que podemos imaginar. Eu poderia te dar muitas explicações sobre o porquê voltamos dos mortos e o porquê de termos retornado com certas melhorias, por assim dizer. Mas nenhuma explicação vai te satisfazer agora sargento. Você precisa observar o mundo mais de perto como vejo para poder entender o que quero te explicar.

As mãos de Dennis estão formigando e queimando, e a respiração cada vez mais rápida. A sensação familiar de estar encurralado o invade. Aquela velha sensação de estar com medo e indefeso. Ele jurou que nunca mais se sentiria assim, que ele jamais se deixaria dominar por medo ou incerteza. Ainda incapaz de falar qualquer coisa, ele sente o imenso tronco cada vez mais firme junto à sua mão.

— Não faz sentido. Nada do que você está dizendo faz sentido.

— Você deveria relaxar um pouco. Seu rosto está muito vermelho e sinto que você pode acabar tendo um ataque cardíaco e morrendo. Morrendo de novo quero dizer — responde Anna com o sorriso irônico estampado em seu rosto e até mesmo suas mãos gesticulam de forma teatral uma dor no peito, enfatizando cada palavra sarcástica que sai de sua boca. Ela domina a situação com maestria, provocando Dennis sempre que pode.

A voz de Anna vai ficando cada vez mais longe. Dennis está ofegante. Sua boca está seca novamente e ele está respirando como um atleta no final de uma maratona. Ele consegue ouvir nitidamente o sangue correr em suas veias, o coração pulsando rápido e bombeando sangue. As batidas do coração invadem sua mente e suas mãos agarram o imenso tronco cada vez mais forte.

Todos os sons de seu corpo estão em evidência agora, cada vez mais alto. O suor começa a encharcar sua roupa, a saliva escorrendo por sua garganta, o tremor em suas pernas. Ele percebe os lábios de Anna se mexendo e as mãos dela gesticulando, mas ele não entende nada, não ouve nada. Somente os sons do seu corpo agora gritam com ele. O cheiro do suor fica cada vez mais pungente nas narinas. Cheiro de vinagre. As gotículas de suor agora riscam seu rosto como unhas riscando madeira. Cada som, cada cheiro, cada sensação está transbordando no seu corpo. Quando tudo parece se misturar e a tontura nauseante começa a invadir a mente, vem um alto estalo seguido de um baque. Poeira e terra sobem e o som de pássaros voando se junta ao som dos animais na mata correndo para longe.

O tronco no qual ele se apoiava agora são duas lascas em suas mãos. E a árvore está caída no chão atrás dele. Sargento Dennis cai de joelhos, olhando incrédulo para os dois pedaços do que sobrou daquele grande carvalho em suas mãos.

— O que foi que você fez comigo? Como fiz isso? Clama Dennis com uma veia saltando para fora do seu pescoço.

— Eu? Eu não fiz nada sargento. Isso tudo foi obra do seu belo corpo pós-morte. Pelo visto sua força voltou multiplicada — diz Anna enquanto bate palmas para o espetáculo em sua frente. Uma habilidade incrível se você me permite acrescentar. Uma infinidade de utilidades para ela. Estava esperando para ver quais seriam suas habilidades. Elas podem nos ser muito úteis.

Atordoado demais para responder, Dennis apenas apoia suas mãos no chão, ainda encarando fixamente os pedaços do tronco em suas mãos. Ele tenta levantar a cabeça para falar com Anna, mas tudo que vê é a escuridão e a sensação do chão tocando seu rosto. Dennis não desmaia, mas também não consegue se levantar. Os olhos se recusam a abrir. Deitado ali no chão, ele está ciente de tudo que acontece ao seu redor, mas não consegue falar nada, não consegue se mover. A dor em seu corpo insiste em latejar, principalmente em seus braços agora. Por vários minutos ele luta com o que está acontecendo. Ele quer sair daquele estado de impotência. Ele não consegue ouvir Anna, e o medo volta a tomar conta. Já que o corpo não responde, ele resolve parar de lutar e tentar ouvir ou entender o que está acontecendo ao seu redor. Mas não ouve nada além dos sons da natureza ao seu redor. E lentamente o sono e o cansaço vencem a batalha e ele adormece deitado ali com a cara no chão frio.

— É cada vez mais chato ser babá dos recém-chegados. Dormem demais. Reclamam demais. Vou escrever a porra de um manual antes do próximo — resmunga Anna enquanto começa a ajeitar a toalha, que estava recostada na árvore, para se sentar novamente e aguardar Dennis acordar.

Sentada ali, ela analisa Dennis no chão. Observar os recém-chegados sempre foi divertido, de certa forma, ajudá-los a descobrir seus novos poderes pelo menos era a parte mais interessante.

Precisarei tomar muito cuidado com este aqui. Ainda não consigo ver todos os poderes dele e o histórico militar dele pode ser um problema. Perguntas demais.

Não posso errar de novo. Se precisar eliminar mais um retornado, meu corpo pode não aguentar. Preciso de mais tempo para recuperar tudo que gastei com aquele imbecil. O verme arrogante achou que podia me roubar e me matar. Hum! Idiota. Só me fez gastar tempo e energia.

Mas com você, meu caro Dennis, serei mais cuidadosa. Preciso de você. Pelo menos por enquanto!

O som do silêncioWhere stories live. Discover now