P R Ó L O G O

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Verdade que quando um Alvo pisava em Pedra Rubra, um Montenegro era enterrado. Quando Humberto Montenegro ficou doente e os médicos deram o veredito do mau agouro, corria junto com o vento, desde as ruas largas às estreitas da cidade, roçando o ouvido dos velhos e dos jovens, dos ricos e dos pobres, as exclamações de que um Alvo não tardaria a chegar.

- Dois meses – Iracema arregalou os olhos – o médico deu ao doutor Humberto só dois meses de vida, dá pra acreditar?

- É um Alvo chegando, Dona Iracema. – Benício tinha sabedoria nos olhos como se o vento tivesse acabado de fazer seu caminho por ali sem esquecer de sussurrar-lhe aos ouvidos. – É um Alvo chegando...

- Dizia meu pai, Seu Benício, que Deus o tenha - Iracema voltou seu olhar para vassoura que segurava, varria o chão da sala tão forte que as energias ruins iam para longe, varria na direção da porta aberta. O vento também fazia seu trabalho por lá, correndo os corredores da escola e fazendo fofoca. – pra um Alvo pisar nas terras de Pedra Rubra um Montenegro tem que morrer. É um acima da terra, o outro sete palmos abaixo.

Barganha com o destino, uma trágica troca. Alguns mais velhos diziam que o sangue dos Alvo era amaldiçoado pelos antepassados, a outra parte, se valendo de lucidez, afirmava que era praga dos Montenegro. No jogo das coincidências, a morte tinha lá suas estratégias e ninguém se atrevia a negar: os Montenegro eram duros, demoravam de ser levados para o Além por isso se uma alma daquela família partia era para dar lugar a uma tão forte quanto, alma dos Alvo.

- Pois, Seu Benício. Tenho medo dessas notícias. Se o médico disse que Doutor Humberto tem só dois meses, quer dizer...

- Que em dois meses Pedra Rubra vai acender velas, Iracema!

-  Mas o senhor sabe do que eu tô falando. – Iracema pegou o balde, começou a esfregar o chão que já estava limpo. Gostava de deixar aquela sala, em especial, bem limpinha. Afinal Professor Benício merecia, era sempre tão bom e atencioso. Não era qualquer um que lhe demonstrava tanta humildade ao conversar com uma faxineira sem querer demonstrar superioridade, ela pensava. Além do mais trocavam sabedorias e segredos dos antigos que há muito habitaram Pedra Rubra, a história das estradas e dos moinhos que delineavam os limites da cidade, de cada vivo, de cada morto. – Vou rezar todos os dias até dois meses, Seu Benício. Tem sangue ruim de Alvo pra pisar em Pedra Rubra.

O vento. O vento sacudiu as janelas como se castigasse Iracema de proferir tais palavras. Fez como se dançasse por toda a sala, fazendo voar os cabelos brancos de Iracema, balançar a jaqueta do Professor Benício e, dançou tanto sobre sua escrivaninha, que o calhamaço que sempre carregava e deixava por ali com as anotações das aulas sacudiram as folhas e voaram os papéis.

E assim como veio, se foi: com alarde. O vento que invadiu pela janela fugiu pela porta deixando o professor e a senhora para trás.

- Cuidado com as palavras, Iracema. – Seu Benício riu, prontamente desdobrou as pernas longas e se pôs de pé, recolhendo as avaliações dos alunos do último ano pelo chão.

- ô, Seu Benício. Eu e minha boca. Olha aí, Seu Benício. – Iracema agachou-se sobre o balde com água pela metade. Pescou com a ponta do dedos uma folha de ofício que voou intrusa lá para dentro – Molhou um.

O que fez com que os olhos já velhos de Iracema conseguissem ler a folha manchada? A Incapacidade de segurar a curiosidade ou o Vento lhe dando respostas? A boca de Iracema de repente ficou muda, as palavras daquela folha, aquele nome, estava tão manchado que parecia que as palavras choraram de tristeza sobre o papel.

Benício, tão atencioso, deveria ter percebido o pavor no rosto de Iracema assim que ela colocou o papel todo molhado sobre a mesa. Mas não precisou de muito mais que alguns minutos para captar a mensagem, afinal também sentiu que os pelos do seu braço se eriçaram ao ler a quem pertencia a avaliação.

Elisa Montenegro.

Olharam-se, se benzeu Iracema e o vento continuou a correr para fazer sua fofoca, apressado.

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