Hoje (não finalizado)

2 1 0
                                    


Hoje. Podia ser ontem ou amanhã. Mas não... hoje.

Se eu soubesse que ontem eu poderia mudar o que fiz ou que amanhã tudo isso seria um sonho. Mas não... hoje.

Acordei pela manhã, tomei meu café preto, sem açúcar. Tomei praticamente frio pois me perdi nos devaneios matutinos.

Depois de me vestir com uma roupa confortável e fresca pois o dia não seria fácil, continuei com meus pensamentos.

Hoje parecia mais um dia normal, sem novidades mas também sem intempéries. Liguei a TV pensando em pelo menos colocar um pouco de barulho na minha manhã tranquila. Um repórter mal humorado, com cara de poucos amigos, dava as piores notícias visando talvez, que a pessoa que o escutasse, pudesse de alguma forma, compartilhar do seu humor ácido. Desligo logo em seguida.

Sendo um homem com mais de 50 anos, mais da metade dos cabelos grisalhos, tendo a companhia de dois cachorros idosos, Bellinha e Choquito e morando sozinho,  estar pelo menos grato por não ter mais problemas com que me preocupar a não ser a louça para lavar, as roupas para colocar na máquina, as contas de água e luz para pagar já que não me atrevo a colocar internet e se pudesse nem teria um celular mas meu filho(que me odeia tanto quanto me ama) insiste que eu tenha só para me ligar, uma vez por semana, para ver se eu já desisti e ele pode começar a venda da minha única casa e doação de minha velharia pondo-me em seguida numa linda casa de repouso.

O governo me paga um valor mensal, aposentado por invalidez. Joelhos estourados por conta de muitos anos trabalhando em pé numa fábrica, apertando botões e engordando muito pois comer "junk food" é mais prático e deixa qualquer homem satisfeito. Pelo menos por algumas horas até a próxima porcaria processada ser adquirida e devorada em poucos minutos.

Fui mandado embora assimque não conseguia mais abaixar para pegar objetos aleatórios quecaiam em minha frente e minha pequena área de trabalho foi ficandoum chiqueiro.

- João, achamos melhor você ficar em casa, ajudaremos com seu processo de aposentadoria pois a empresa zela por seus funcionários, mas em casa você conseguirá se recuperar e descansar. - disse meu chefe.

Sim, meu nome é João. João da Silva. Não bastasse a vida sem graça, meu nome tinha que ser assim. Criatividade zero. Minha mãe disse, certa vez, que João era bíblico e simples e meu pai e ela já tinham nomes estranhos suficientes, Austergílio e Lindolina da Silva. Ok, me contento com João. Sorte que sou filho único. Seu Gílio e Linda já se foram há muito tempo. Câncer. A doença silenciosa, galopando por nossos corpos frágeis.

Minha mulher me deixou por um cara mais novo. Levou embora alguns eletrodomésticos e suas roupas. Nosso filho, Felipe, já não morava em casa desde seus 16anos. Morar sozinho era melhor do que ficar em casa com dois "velhos" cansados na vida antes da velhice realmente chegar.

Enfim, voltando ao dia de hoje. Hoje continuou assim. Sem graça. Coloquei algumas roupas no varal, coloquei feijão com alho e temperos na panela de pressão, assim como minha mãe fazia quando eu era criança. Ao fundo, tic tac, tic tac. O relógio de parede parecia antecipar algo, parecia mais rápido do que de costume.

Estou contando como eu me lembro. Talvez a minha vizinha, dona Lena, conte diferente ou Pedro, o jardineiro da casa da frente, tenha mais detalhes para acrescentar. Mas eu sei que hoje poderia ter sido diferente, eu acredito nisso.

A panela começou a chiar e abaixei o fogo e o chiado ficou bem baixinho. Sentei no sofá. Talvez eu consiga terminar de ler o último livro de autoajuda que me dispus a comprar. Afinal, só faltavam poucas páginas e em quarenta minutos eu teria que terminar. Cinco meses foram longe demais para um pouco mais de duzentas páginas.

Bellinha e Choquito correram ao meu encontro. Entraram em casa, pela porta dos fundos, como se tivessem visto um fantasma e aninharam-se entre meus pés. -Calma garotos, o que aconteceu? - disse eu, por dizer, já que ambos não escutam direito.

A porta da frente, que estava entreaberta, escancarou-se subitamente. Passou por ela uma corrente de ar. Um silêncio estarrecedor. Após isso, um estrondo. Uma tempestade começou repentinamente.

Logo após isso, entra tranquilamente um senhor pela porta. Ele tem na sua mão uma pasta preta, simples, estilo executivo. Eu nunca tive uma assim, nunca fui chefe de nada, ninguém e nem de mim mesmo.

- João, o fim chegou. - disse ele.

O homem era magro, cabelos castanhos, olhos castanhos. Não seria notado numa multidão. Nada de especial.

Eu olho para ele e fico sem entender. O que esse homem está dizendo? Será que eu ainda não acordei? O fim de que? Ele disse mesmo "fim"?

Ele entra e senta na minha poltrona velha. Bellinha sentou ali não faz muito tempo, apesar da minha constante tentativa de ensiná-la que a poltrona não é lugar para cachorros que entram e saem de casa.

O homem parece não se importar com nada e continua olhando fixamente para mim.

Acredito que passam uns dois minutos até que ouço gritos e choros percorrendo a vizinhança. O mundo enlouqueceu.

O homem então, vendo que eu continuo no meu estado semi catatônico e ainda acho que estou sonhando, começa a falar novamente.

- Eu e meus amigos estamos aqui para realizar os testes finais. Alguns passam rapidamente, alguns não passam e logo são encaminhados aos devidos lugares e outros devem ficar aqui por um tempo razoável até que os testes possam ser aplicados corretamente.

- Testes? Que tipo de testes? Por que essa gritaria toda ao nosso redor? E quem é você?

- Quem eu sou não importa, não costumo ter nome algum. E quanto aos testes, algumas pessoas são reprovadas e são levadas aos seus devidos lugares. Vou lhe explicar tudo. - disse ele.

Uma súbita sensação de desconforto percorre meu corpo, algo me diz que as coisas não serão muito boas. Estava começando a entender que esse era mesmo o fim.

Entenda, tudo isso aconteceu hoje! Mas pra mim parece que foi há séculos.

Escuto alguém batendo na porta. Era meu vizinho Felipe, casado com uma das mulheres mais lindas que já vi e igualmente, seus dois filhos gêmeos de mais ou menos 7 anos eram a versão perfeita de modelos de revista.

Felipe está desesperado. Consigo perceber pelas batidas nervosas na porta.

João me ajuda! Laura e os gêmeos... meu Deus! O que eu fiz? João! João! Eu não quis fazer mal a ninguém! Me solte! Eu sou bom! Deixe-me tentar novamente!

Venha! - disse uma voz de mulher.

Flashes de luz e silêncio absoluto.













Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jun 22, 2023 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

HojeOnde histórias criam vida. Descubra agora