jantando com ratos

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A comida na África do Sul era muito boa. E pra mim, que sou ovolactovegetariana, nossa, era o paraíso. Existe uma lei que obriga todos os estabelecimentos a oferecerem opções vegetarianas no país. Comemos muito bem lá, apesar de termos passados maus bocados. Eu passei um pouco mal com a comida, era sempre muito apimentada e se você bobeasse poderia comer algo diferente como avestruz.

Mas, tirando esses perrengues, devo confessar que eu comi muito bem. E fiquei viciada em pedir cheesecake. Eram muito gostosos. Acho que o primeiro que eu comi foi o do Café Caprice,  o lugar mais badalado de Camps Bay, um dos pontos mais badalados de CPT.

Bom, mas a questão é que em um dos finais de semana na cidade, aconteceria uma espécie de Carnaval. E eu, para calma de minha mãe, não iria em um carnaval. Então, eu e duas amigas de viagem resolvemos procurar um lugar legal para irmos. E eu sugeri algo na Kloof Street, pois sempre passava por ela e estava apaixonada por aquela rua enladeirada e com restaurantes bem bonitinhos.

Passei uma parte da tarde de sábado procurando um lugar para irmos. Afinal, finalmente eu estaria indo pra uma das ruas que mais gostei em Cape Town, a Kloof. Selecionamos algumas opções, nos arrumamos e fomos pedir nosso uber.

Eu coloquei a parada para o início da Kloof e ignorei o Tigers Milk do começo da rua pois ele era um restaurante de rede que tinha em todas as esquinas da Cape Town. Era como ir em algo comum, desdenhei eu. Mas, a noite tava bonita, um clima legal, não estava frio, a rua estava relativamente movimentada, sábado a noite, dava pra subir tranquilamente e curtir a vibe do lugar.

Passamos pelo Tigers, desdenhamos dele e fomos conversando, rindo e até que... Até que aconteceu. Ouvimos um estouro, algo que para nós, brasileiros periféricos, sempre representará perigo. Sabe quando é época de São João e a gente só aprende institivamente a discernir o que é bomba e o que é tiro? Lá na África do Sul não foi tão intuitivo assim até porque ficou nitidamente explícito o que aquele estouro significava: estávamos passando por um blackout. A luz foi cortada.

Acredito que já falei aqui que a África do Sul vive há anos em uma crise energética. Países como Angola e Moçambique, que têm PIBs menores, não passam por isso e lá, misericórdia, é um problema complexo. Tem a ver com recursos energéticos, com corrupção. Enfim, um problemão.

E se a Kloof Street estava antes agitada, naquele momento tudo se escureceu e estávamos sozinhas na rua. Era a hora de achar um restaurante. Passamos pelo primeiro, não curtimos e começamos desesperadamente a andar pela rua atrás dos restaurantes que havíamos procurado no Google. O zig zag estava nos agoniando, nos deparamos com um morador de rua que subitamente apareceu em nossa frente e nos deu um enorme susto.

Em meio a nossa andança, a agonia, a total escuridão fazia tudo parecer uma saída sem fim. Subíamos, descíamos e iríamos parar num restaurante português e moçambicano, mas eu não quis porque não parecia ter cara de arranjar marido. Bom, mas quando viramos a esquina do restaurante moçambicano, eis que damos de cara com um restaurante que estava na lista dos que eu havia selecionado:

Our Local.

Eu não sei se conto a reflexão agora ou no final, mas vou adiantar uma lição aprendida. A gente acha que sabe o que é melhor pra gente, mas no final das contas não sabemos. Aquele restaurante moçambicano, que eu rejeitei porque não tinha cara de ter ali um crush para mim haahaha, poderia ter sido uma ótima experiência.

Mas, olha como as aparências enganam.

Entramos no Our Local. Um negócio rústico, uma arquitetura daquelas que o povo meio alternativo sei lá gosta, sabe? Mas até aí ok. Parecia tudo fluir. Conversávamos, a comida demorou um pouco e curtíamos nosso sábado a noite na Kloof Street, após o sufoco que foi andar por ela totalmente sem energia.

Bom, mas aí vocês se lembram que eu fiquei viciada em cheesecakes durante a minha viagem e no começo do jantar, havia comentado com o garçom se eles tinham sobremesa. E aí, naquele momento de ir ou não embora, o garçom se lembrou que eu queria uma sobremesa e ele traz o quê? Isso mesmo: o cardápio exclusivo de sobremesas.

Fui obrigada a pedir um cheesecake de laranja.

Foi aí que o momento de terror começou.

Cara, eu sinceramente não sei porquê eu passo por esse tipo de coisa, não aprendo e continuo sendo dominada pelo meu paladar.

Acontece que enquanto esperávamos a nossa sobremesa, um vulto passou pelo telhado. Aquele sábado a noite era Deus nos dando a oportunidade de vermos os principais problemas de Cape Town. Era aquilo mesmo que vocês imaginam: um rato. E eu tive a impressão de ver outro rato logo atrás também.

E aí eu, bem brasileira-nordestina-baiana-soteropolitana-mata escurense- comecei a gritar RATO pelo restaurante. Nessa hora, ninguém falava português, não é? Alguém me entendeu? Claro que não!

Eu e as meninas estávamos bem aflitas, afinal de contas, era UM RATO GIGANTESCO PASSANDO PELO TELHADO DO LUGAR QUE HAVÍAMOS ACABADO DE COMER E AINDA ESTÁVAMOS COMENDO, e o garçom numa calmaria indescritível nos olhou e disse:

It's normal.

IT'S NORMAL???

Tentamos nos acalmar, mas o rato resolveu continuar passeando pelo telhado. E não era um ratinho pequeno, humilde. Era um filhote de capivara.

Foi aí que conseguimos chamar um segundo garçom e ele nos explicou que o centro de Cape Town estava passando por uma onda de ratos. Era rato pra tudo que era canto e eu mesma já havia visto ratos pela cidade, só que não em cima de mim, praticamente. Ele também nos garantiu que não havia risco nenhum do rato ir até nós.

Nesse momento, o cheesecake já havia ficado ruim e nós lá, agoniadíssimas, enquanto todo o restaurante continuava de boa com a vida e a comida.

Quando o rato passeou pelo telhado pela terceira vez, gente, foi hora de nos levantarmos, chamarmos um uber e irmos pagando a conta enquanto andávamos, sei lá. Tava tão aflita que eu nem me lembro mais. Só lembro que entramos no uber, contamos a ele o que aconteceu e ele deu uma crise de risos. Quando falamos a ele que no Brasil isso que aconteceu poderia fechar um restaurante e dar multa, nossa, ele riu mais ainda.

O que era um jantar na Kloof Street, um sonho realizado, se tornou um pesadelo. Chegamos em nosso apartamento, rindo, resenhando e escolhendo o lugar mais bem avaliado de Cape Town pra irmos no dia seguinte. O Our Local era um local bem avaliado, com boas críticas, mas a nossa percepção também pode nos enganar.

Às vezes, nossos caminhos nos levam a jantares assim: com ratos. Tudo está aparentemente bem, mas dentro de nós convivemos com nossos inimigos internos. Há momentos, também, que os ratos estão jantando ao nosso lado. Nossa vida está um caos. Parece que nada vai se resolver. E a gente ainda fez a nossa parte: lutamos por nós mesmos, esquecemos que é Deus quem guia nossos caminhos.

Talvez, você esteja jantando com ratos neste momento da sua caminhada e não entenda o porquê isso está acontecendo com você. Mas, o choro dura só a noite e a alegria vem pela manhã. O problema é que um dia para Deus são como mil anos kkkk

Eu estou jantando com ratos, neste momento. Mas eu me lembro que mesmo jantando com ratos, consegui ter um pouquinho de alegria e que os ratos nos deram uma boa história pra contar e nos levaram a conhecer o Jarryd's. No dia seguinte, depois de termos jantado com adrenalina, tivemos um dos nossos melhores momentos na cidade. Um brunch delicioso, um lugar instragamavel, atendimento incrível e que nos deu também as melhores histórias. Ah, e o Jarryd's fica no lugar que um dia eu vou morar em Cape Town: a Sea Point.

Foi o Our Local que nos levou ao Jarryd's. Os obstáculos também podem nos levar a bons lugares. Mas, eu não estou falando disso porquê acredito que todo mundo tem que sofrer. Não. Os traumas nos machucam, os obstáculos nos cansam.

O que eu estou falando é que Deus é especialista em novos começos. Em deixar os dias sombrios com mais cor e nos surpreender após a tempestade.

Hoje, meses após jantar com ratos e andar desesperada pela Kloof Street apagada pelo blackout, lembro com alegria daquele momento, que, adivinhem só, passou. E que bom que passou. E quem bom que nós o vivemos.

Um Extraordinário ordinário: Meus Dias na África do SulWhere stories live. Discover now