I saw her through the window today

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ATO I

A capa de chuva perfeitamente ajustada se arrastou pelo chão de paralelepípedos do Beco Diagonal enquanto caminhava rapidamente em direção ao Caldeirão Furado. Percorrera algumas lojas à procura dos ingredientes que precisava para uma nova poção e, agora que o movimento ao redor fora cessando aos poucos com o cair da noite, poucas luzes iluminavam o caminho.

Mentalmente, refez o trajeto em direção a antiga e mal vista Borgin & Burkes, descendo pelas escadas lodosas e ainda mais sombrias da Travessa do Tranco. Não tinha ideia de como o lugar se encontrava, pois não ia lá desde que completara 16 anos; ou seja, fazia tempo demais para que continuasse reanimando escolhas do passado. As lembranças, inevitavelmente, vinham em formas de pesadelos e sonhos sobre os quais não tinha nenhum controle – exceto com a poção para Sono Sem Sonhos que, praticamente, já não surtia qualquer efeito em seu metabolismo.

Não tinha qualquer orgulho em afirmar que a prateleira de poções em seu armário era lotada de pequenos vidros transparentes, emulando calmantes, soníferos e antidepressivos de todos os tipos. Contudo, talvez, esse fosse um preço pequeno a pagar pelas escolhas do passado. Ainda que feitas sob condições questionáveis, se tratavam de suas escolhas e não podia culpar a ninguém por elas a não ser a si mesmo.

Ajeitando o capuz negro aveludado da capa em torno de sua cabeça devido ao frio do final de novembro se instalando aos poucos em seus poros e ossos com uma brisa gelada e insistente, relançou o olhar na direção de um dos poucos estabelecimentos que ainda pareciam abertos: um pub grande, mas vazio àquela hora, ocupado por um grande balcão paralelo à grande janela de vidro, que estampava o nome em letras garrafais e muito chamativas.

Tentou buscar na memória se havia algum Silver Spoon Café ali quando era uma criança desdenhosa demais para demandar mais do que dois segundos da própria atenção aos estabelecimentos que seu pai não considerava dignos – aqueles que recebiam mais trouxas e mestiços que sangues-puros -, mas nada lhe veio à mente e, na verdade, tinha certeza que deveria haver uma sorveteria em algum lugar por perto.

Entretanto, o que o fez realmente estacar foi a figura sentada à uma das mesas do lado de dentro. Inclinou a cabeça, como se estivesse apenas imaginando, mas lá estava ela com os inconfundíveis cabelos castanhos completamente ondulados, iluminada pela luz amarelada dos lampiões espalhados pelo bar, os olhos baixos e concentrados no livro que tinha em mãos.

A postura ereta de ombros perfeitamente retos, os lábios cheios e o nariz arrebitado e arrogante ainda eram os mesmos, o que o ludibriava a pensar que não parecia muito diferente da garota que conhecera um dia. Ainda assim... Algo o levava a pensar que entre aquela garota e a mulher sentada ali, emanando uma onda de solidão confiante, mais preocupada com o que lia do que com o que a rodeava, havia um mundo de contrastes que jamais saberia.

Engoliu em seco, ciente ser tarde demais para chegar em casa a tempo do jantar, os dedos envoltos na luva de couro de dragão também negra, brincando uns contra os outros num tremor adquirido, inatural. Percorreu o Beco com os olhos, indeciso, imaginando se aquilo poderia soar comprometedor sob o ponto de vista de alguém que não fosse ele mesmo. Não precisou se esforçar para recordar há quanto tempo não se via no mesmo cômodo que ela, chegando à conclusão que era demais. Longos e insensíveis anos demais.

ATO II

Se sentia imobilizado, não somente por todos os cortes espalhados por seu corpo, mas pela realidade cada vez mais onipresente sobre sua vida e, principalmente, sua mente. Grato por não ouvir mais o movimento dos saltos de Madame Pomfrey percorrendo a Enfermaria com rapidez, fixou o olhar no teto cheio de sombras do antigo salão.

She Used to Love Me a LotWhere stories live. Discover now