Capítulo 11 - 27 de junho

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Existem três coisas que sempre me deixam extremamente ansioso: atividade física em grupo, apresentações em público e festas. A mínima possibilidade de poder fazer um idiota de mim mesmo para conhecidos me dá arrepios — até mesmo em pesadelos.
A Uraraka acha que isso deve ser porque todas essas coisas exigem que eu enfrente meu medo de julgamento, e não as situações em si. Eu me considero introvertido — INFJ, para ser mais exato — e sempre tive dificuldade para fazer amigos. Mas, ironicamente, meus melhores amigos são extrovertidos que sempre me colocam nesses tipos de situações. Um exemplo vivo é o dia de hoje, onde estou surtando só de lembrar é a festa de aniversário surpresa do Kaminari — nem tão surpresa assim, já que ele mesmo planejou. Fui convidado, assim como a Uraraka e o Iida, e atualmente estou há exatos 53 minutos encarando meu guarda roupa, me perguntando porque não comprei aquele manto da Akatsuki na viagem para Okinawa. Eu poderia usar como desculpa para ir fantasiado de Tobi, meter um "kamui" e sumir de lá. Será que eles iam ficar com raiva por eu me manter fiel ao personagem?
O tema da festa é "Halloween fora de época"– um pretexto para vermos vários filmes de terror e comermos muitos doces. Queria poder dizer que eu deixei para última hora a escolha da fantasia, mas na verdade o que aconteceu foi que o Kaminari me convidou durante a viagem da semana passada — não sei se porque ele me queria lá ou se porque estávamos dividindo um quarto e ele se sentiu obrigado. De qualquer forma, não é como se eu pudesse ter recusado, afinal, os meus amigos vão e já me disseram que vou encontrar pasta de dente em tudo que eu usar durante um mês se eu não for.
O que nos traz de volta ao problema atual: as únicas coisas que eu tenho no armário são roupas de academia, uniforme escolar e algumas peças mais casuais. Nada muito extraordinário com o qual eu possa inventar alguma fantasia além de estudante do ensino médio. Pego meu celular e ligo para a única pessoa que poderia me salvar neste momento:
— Alô?
— Uraraka, eu tenho uma coisa para te contar.
— Olha se você vai me dizer que não vai pra festa, vou grudar chiclete no seu cabelo — ela resmunga pelo outro lado da linha.
— Não é bem isso... é que eu... não escolhi uma fantasia para a festa do Kaminari.
— Minha casa, 15 minutos, com produtos de higiene.
— Mas...
— Como eu já esperava que isso fosse acontecer, conversei com a sua mãe e ela já separou uma roupa para você. Só não esquece de trazer! — ela desliga sem se despedir.
Respiro aliviado por saber que sempre posso contar com a minha melhor amiga para me salvar da ira dela mesma. Saio do meu quarto e vou atrás da minha mãe, para ver o que a Uraraka pediu. Encontro-a sentada no sofá, comendo pipoca enquanto assiste Alquimia das Almas. Sento-me do lado dela, e encosto minha cabeça em seu ombro.
— Mãe, a senhora está ocupada?
— Oi, filho, que foi? — ela pausa sua série e me dá um abraço. Confesso que essa é a minha linguagem do amor favorita de todas.
— A Uraraka disse que falou com a senhora sobre uma roupa para mim...
— Ah, sim! É hoje a festa a fantasia? — ela põe as mãos nos meus ombros, entusiasmada.
— É sim — respondo, um pouco mais aliviado por causa da fantasia — Vou precisar ir para a casa dela para me arrumar — terminei a frase no momento que o celular começa a tocar freneticamente, um lembrete dela de que eu preciso correr.
— Espere aqui, volto já — ela levanta, e dirige-se em direção ao quarto dela, surgindo um tempo depois com um volume retangular azul, adornado por um laço prateado com detalhes vermelhos. Observando de perto, noto que são desenhos de dragão. Ela me entrega o objeto e mantém seus olhos atentos enquanto eu desfaço o lacre e abro a caixa. Dentro, há uma blusa preta que lembra aquelas de kung fu com detalhes brancos no colarinho e punhos, com alguns poucos botões metálicos no centro. A calça, do mesmo tecido, tem um corte reto e simples, sem detalhes chamativos. É um uniforme bonito e cheiroso, como se tivesse sido recém lavado.
— Ah, mãe, não precisava ter gastado com isso — sinto-me um pouco culpado, porque parece ser algo caro demais para usar em uma festa de colégio.
— Pode ficar tranquilo, não custou nada. E vai ficar lindo em você, tenho certeza — ela me dá um sorriso caloroso e contido.
Abraço-a e agradeço, sendo interrompido pelo vibrar incessante do meu celular.
— Acho que ela está te ligando — minha mãe comenta.
Tiro o celular do bolso para atender quando vejo o horário: 16:43. Faltam 1 hora e 17 minutos para a festa e eu ainda estou de pijamas. Solto minha mãe e grito desculpas enquanto corro para o banheiro, onde eu tomaria um dos banhos mais rápidos da minha vida.
Chego na casa da Uraraka aproximadamente às 17:20, porque moramos relativamente perto um do outro. Sou recepcionado pelos pais dela, que me perguntam sobre todos os meus planos de vida da forma mais casual que conseguem, enquanto me levam até o quarto dela. Com a porta entreaberta, ouço risadas que são mais familiares para mim que o meu próprio reflexo. Aproximo-me e empurro a porta, revelando um Iida tendo seus braços maquiados por uma Uraraka vestida com cores de outono. Talvez isso esteja no top 5 de coisas estranhas que eu já vi acontecerem.
— Por que você tá passando rímel no braço dele? — a pergunta sai espontaneamente da minha boca.
— Isso é bronzer, Deku — ela responde, sem tirar os olhos do próprio trabalho — Rímel é o que passa nos cílios para eles ficarem maiores. Quero ressaltar os músculos dos braços do Iida, e brincar com luz e sombra usando contorno é o segredo aqui — ela troca de pincel, passando uma espécie de glitter próximo ao ombro.
— E ele vai fantasiado de que?
— Jogador de basquete — Iida responde, enquanto observa as pinceladas delicadas da nossa amiga artista.
— Ele não queria gastar dinheiro com a fantasia, então o Tensei emprestou o antigo uniforme dele do colégio e um par de basqueteiras.
— Que eu me recuso a usar por questões de higiene — Iida protesta, cruzando os braços na frente do torso.
— A sua mãe já lavou elas mais de três vezes, até escaldou. O que você quer mais, saco plástico nos pés?
Iida apoia o dedo no queixo, pensativo, levantando as sobrancelhas e concordando logo em seguida:
— É uma excelente ideia. Mas acho que plástico filme seria mais confortável e menos aparente.
Ela interrompe seu trabalho, fitando-o por entre as sobrancelhas cerradas, dizendo:
— Iida, acho que você é maluco. Mas se isso for fazer você usar a fantasia perfeita, topo tudo — ela levanta e sai do quarto, provavelmente até a cozinha.
— Vou aproveitar esses minutos para me alongar, acho que estou há uma hora parado aqui — ele levanta, abaixando o tronco logo em seguida para tentar alcançar os pés com as pontas dos dedos das mãos. Ao erguer-se, vejo finalmente a versão quase concluída da fantasia e noto a semelhança com um dos personagens de um dos mangás favoritos da Uraraka: Aomine Daiki de Kuroko No Basketball. O jeito que ela penteou o cabelo dele, até a maquiagem que deixou o braço dele parecendo mais definido do que já é. É impressionante a semelhança, até mesmo sem o bronzeado típico. Percebo que o Iida tem uma cara de atleta naturalmente, mesmo sem correr há alguns meses.
— E então, vai fantasiado de que? — Iida ajusta seu óculos no rosto, voltando-se para mim.
— Não sei... a Uraraka disse que tinha falado com a minha mãe e decidido a fantasia, então só trouxe o que já tinha lá em casa... — coloco com cuidado a caixa em cima da cama.
— Assim que eu cheguei, encontrei ela suja de tinta vermelha... Perguntei e ela disse que estava ajeitando sua fantasia. Bem, de qualquer forma, acho que irá ficar bom só pela dedicação que ela teve.
Uraraka retorna com um rolo de plástico filme e finalmente consigo visualizar a sua fantasia. Desde os sapatos marrons simples até as pequenas sardas no rosto — espera... sardas? ela sempre as teve? Revisito rapidamente as memórias das vezes em que tive coragem de olhá-la diretamente no rosto, e eu poderia jurar que ela não as tinha antes, mas volto a me distrair com o suéter laranja de gola alta combinando com uma saia vermelha, além de meias laranjas na altura do joelho e sapatos marrons de salto.
— Espera, não diz nada ainda — ela vira de costas e abaixa a cabeça, voltando seu olhar em minha direção, agora decorados por um óculos de armação quadrada — E aí, gostou?
— Velma? — solto, um pouco surpreso com a escolha dela.
— SIM! — ela dá um pulo alegre — Achei que fiquei a versão japonesa mais realista possível dela, inclusive... — ela interrompe sua fala ao ver o objeto azul adornado em cima da sua cama — MEU DEUS, VOCÊ TROUXE! A fantasia vai ficar incrível, sério! Vai lá vestir ela enquanto eu procuro o resto das coisas — ela abre a caixa, retirando as roupas de dentro da mesma e empurrando-as contra o meu peito.
Obedeço-a e dirijo-me ao banheiro, trancando a porta atrás de mim. Troco-me rapidamente, voltando para o quarto e surpreendendo-me com meu próprio reflexo.
— Você ficou incrível, Deku! A roupa parece ter sido feita para você.
— Não tinha percebido o quanto você tinha crescido com a academia nesses meses até te ver com esse uniforme — Iida comenta.
— Eu também não — acrescento — Eu pareço um lutador de kung fu — completo.
— Calma, que falta o restante dos acessórios — ela me entrega um par de sandálias vermelhas que amarram no tornozelo e um kimono quadriculado verde com preto. Percebo a ideia da minha melhor amiga em me vestir do meu personagem favorito de Demon Slayer, Tanjiro Kamado. Meus olhos ficam úmidos, porque ela sempre consegue fazer eu me sentir especial de alguma forma, mesmo que eu não peça ou mereça. Uraraka me trata como prioridade, mesmo que eu erre inúmeras vezes ou a decepcione.
— Que foi? Fiz algo de errado? — ela põe as mãos nos meus ombros, preocupada.
— Você não gostou? — Iida questiona, aproximando-se de nós.
— Não é isso... é que eu só te dou trabalho e mesmo assim você faz algo assim por mim — respiro fundo, tentando esconder a voz embargada de lágrimas.
— Não fiz sozinha, o Iida me ajudou bastante — ela complementa, ficando entre nós dois e abraçando ambos — afinal, a ideia foi dele.
— SÉRIO? — meu rosto patético volta-se para o do meu melhor amigo, até um pouco boquiaberto, por não esperar algo assim dele. Não é que ele não se importe, mas é que o Iida não demonstra as coisas dessa forma. Ele é um cara mais de tempo de qualidade do que de atos de serviço ou palavras de afirmação.
— É tão estranho assim eu ter pensado nisso? Depois de ter te visto chorar com Mugen Train no cinema, dei a sugestão para a Uraraka e fomos juntos montar a fantasia. Afinal, não poderíamos deixar o nosso melhor amigo ir mal vestido na primeira festa com a turma da vida dele — Iida fala isso de forma despretensiosa, mas com uma expressão orgulhosa.
— Gente, muito obrigada mesmo. Vocês são incríveis. De verdade, eu não sei nem o que dizer.
— Obrigada já está de bom tamanho — Uraraka sorri, aquecendo meu peito instantaneamente.
— Mas, se me permite perguntar, por que você foi a única a não se fantasiar de anime? — questiono, deixando-me aproveitar mais um pouco o meu próprio reflexo.
— Porque assim como vocês, eu fui chamada de última hora. E, apesar disso, eu queria fazer fantasias originais e perfeitas mesmo que num curto período de tempo — ela ajusta a gola do meu uniforme, continuando — O problema é que, de todas as que eu pensei e que ainda não tinha tentado fazer, só consegui pensar na Velma ou a Makima.
Chainsaw man é um bom anime, pelo que percebi na sala. Tanto que é um dos favoritos do Denki, que agora quer que a gente chame ele de Denji a qualquer custo — Iida acrescenta, cruzando os braços em frente ao torso.
— Esse foi justamente o motivo de eu ter escolhido a Velma. Não queria correr o risco de pensarem que eu estava de casal na festa de aniversário dele com ele. Fico arrepiada só de pensar na possibilidade.
Não consigo conter uma gargalhada estrondosa ao ouvir isso, sendo seguido por risos abafados do Iida, enquanto Uraraka protesta, com as bochechas vermelhas. Concordo que seria bem a cara do Denki passar a festa toda grudada nela por causa da fantasia. E, de certa forma, fico um pouco aliviado de esse cenário não acontecer, afinal, ela claramente se sente desconfortável com essa ideia.
Conversamos mais um pouco antes da mãe da Uraraka vir nos chamar para lancharmos antes de irmos para a festa. Sinto um frio na barriga, quase como se eu fosse explodir de dentro pra fora, culpa da minha ansiedade e medo de que algo dê errado hoje. Mas engulo os sanduíches e bebo goles do suco, sem conseguir aproveitar o sabor, enquanto tento manter meu coração no ritmo certo.
Respiro fundo várias vezes durante o percurso, me forçando a repetir mentalmente que vai ser divertido e que nada ruim irá acontecer. Que é só uma festa, com meus amigos e o pessoal da turma, e que, como veremos filme o tempo todo, vai ser tranquilo. Não preciso decorar mil assuntos para conversar com as pessoas, porque não será preciso. Que a minha fantasia, apesar de estar épica — novamente obrigado Uraraka e Iida por isso —, não vai chamar a atenção das pessoas, porque eu não sou interessante. Que eu vou conseguir ficar tranquilo e não vou decepcionar ninguém dessa vez. E, principalmente, que vou vê-lo e não sentir o desconforto e culpa que carreguei durante as últimas semanas.
— Você está bem? Parece que vai vomitar a qualquer momento — Iida interrompe meu pensamento, inclinando seu corpo para fitar-me nos olhos, porém contido pelo cinto de segurança.
— Estou bem sim, é só um pouco de dor de cabeça. Mas deve passar logo — minto, apertando os nós dos meus dedos debaixo do tecido do kimono.
— Vai ficar tudo bem. Inclusive, já chegamos — Uraraka estica seu braço e aponta para a casa que surge à minha direita.
Telhado vermelho, detalhes de alvenaria que lembram algum tipo de madeira escura, pintada com uma tinta bege, com 03 janelas lado a lado, cobertas por um pano escuro na parte interna. A casa do Kaminari era a cara do subúrbio, mas destacava-se entre as outras pelos pequenos detalhes temáticos: aranhas de plástico no portão, um esqueleto pendurado na pequena árvore ao lado da porta e teias enroladas nos arbustos. Até mesmo a varanda do andar de cima tinha uma abóbora talhada. Luzes roxas e vermelhas desenhavam a fachada da cara, dando um ar mais sinistro à medida que o sol desaparecia no horizonte.
Saímos do carro e ficamos em frente ao portão, apertando o botão do interfone, ouvindo em seguida uma voz familiar:
— Qual a senha? — Denki parece estar imitando alguém, mas não consigo identificar quem.
— Espera, tinha senha? — pergunto, enquanto olho incrédulo para meus amigos. Eu não lembro dele ter comentado isso.
— Não tem, é só o Kaminari sendo o Kaminari — Uraraka completa, pegando o celular e ligando para um número que não consigo identificar. Segundos depois, somos liberados e passamos pela entrada.
Até mesmo o chão da passagem de pedras em frente a casa dele está repleto de sangue falso, decorado com uma daquelas fitas brancas que delimitam cadáveres nos filmes americanos. Nem imagino a reação dos pais deles ao ver essa escolha ousada de pintar a grama de preto.
Iida toca a campainha da porta, que ao ser aberta revela um rosto familiar: uma figura de olhos escuros, cabelos pretos e longos, parcialmente soltos com uma presilha prendendo parte deles na atrás da cabeça. Um vestido marrom desbotado, ajustado na cintura, sobreposto a uma camisa de algodão de manga longa, com um tecido ao redor dos ombros. Nenhum acessório ou maquiagem — mas isso, de alguma forma, a deixa mais bonita do que ela já é. Ela parece uma protagonista de um romance de 1800 e alguma coisa.
— Vocês chegaram! Desculpem o Kaminari, ele hoje está mais ele que o habitual — Momo diz, enquanto estende o braço para dentro da casa — Sintam-se à vontade e sejam bem vindos.
— Muito obrigado por nos receber — Iida inclina-se em uma reverência um pouco exagerada, mas eu e a Uraraka seguimos a deixa dele e fazemos a mesma coisa.
Deixamos os sapatos no pequeno móvel de madeira enquanto ela fecha a porta atrás de nós e continua:
— Sigam-me, vou levá-los para a sala onde assistiremos o filme — ela volta suas costas para nós e dirige-se para dentro.
— Meu Deus, eu amei a fantasia dela! — Uraraka sussurra perto de mim, sendo a primeira a ir atrás dela — Momo, você precisa me contar onde achou esse espartilho!
— Bem, acho que essa é a nossa deixa — comento com o Iida, ao observá-las afastando-se de nós, voltando-me para ele.
Nada poderia ter me preparado para a visão que tive ao ver o rosto dele. Olhos voltados para o chão, orelhas vermelhas e uma expressão que eu não conseguia identificar. O que isso significava? Será que ele estava com vergonha de ter ido e não sabia como dizer? Fiquei tão focado em mim mesmo que esqueci que provavelmente essa situação deve ser incômoda para ele também. Afinal, também é a primeira festa a fantasia dele, e ele é um cara de poucos amigos assim como eu.
— Vamos dar o nosso melhor! Fighting! — estendo meus punhos para ele, tentando demonstrar que estou ali por ele.
— Que? — ele me olha atônito, demorando alguns milésimos de segundo para retribuir, com apenas um acenar de cabeça — Sim, vamos — ele ajusta o óculos no rosto e seguimos para dentro da casa dele.
O interior da casa é focado na sala de estar, com uma mesa de carvalho central e dois pufes, os quais estão ocupados por rostos familiares. Uraraka está sentada próximo a porta de vidro que dá acesso ao jardim juntamente com a Yaoyorozu, ambas rindo, enquanto um Kirishima gladiador tenta arrumar o filme na televisão, com um Kaminari vestido de Chainsaw Man imitando uma serra elétrica, fingindo cortar o fio HDMI.
— Ele tem algum tipo de condição médica? Tipo TDAH? — Iida questiona.
— Sim, se você considerar burrice extrema um diagnóstico — Jiro responde, passando entre nós com vários pacotes de batatas e salgadinhos, usando uma roupa completamente preta.
Surpreso e desprevenido, seguro um sorriso, porque ela sempre tem respostas afiadas na ponta da língua. Observo enquanto ela põe os lanches na mesa e dá um tapa na cabeça do Kaminari, fazendo-o ficar mais quieto. Ela realmente tem uma personalidade implacável, penso.
Passo os olhos pelo ambiente, tentando me familiarizar, e o vejo. Sabia que o encontraria aqui, mas ainda assim, é difícil. Shoto Todoroki, usando uma calça moletom preta com uma t-shirt branca, casaco de jogador de futebol americano e vans quadriculado. Cabelos bicolores presos em um rabo de cavalo, exibindo os piercings brilhantes em ambas as orelhas. Ele parece ter algo no rosto e pescoço, como se fosse maquiagem, que consigo identificar nessa distância, assim como o personagem, mas fico impressionado em como ele consegue chamar atenção mesmo com uma roupa tão simples, que provavelmente não faria nenhuma pessoa desse lugar se destacar. Ele está conversando com a segunda garota mais popular da sala, Himiko Toga, que optou por uma fantasia de Chapeuzinho Vermelho, acredito, como a longa capa vermelha sugere.
Não sei bem dizer o assunto, mas eles parecem bem próximos ao meu ver. Será que eles ... Não, não poderia ser. O Todoroki nunca falou dela e, mesmo quando eu a mencionava, ele parecia desviar do assunto rapidamente. Sempre pareceu desconfortável quando ela o abordava. Então por que hoje a mão dele parece tão próxima à dela?
Devo ter encarado tempo demais, porque ele olha diretamente para mim e, entre piscadas, eu poderia jurar que ele sorriu. Eu devo estar ficando louco. Shoto Todoroki sendo amigável comigo só poderia ser possível em uma realidade paralela.
— Vamos procurar um lugar próximo a tela? — Iida me traz de volta, indicando com a cabeça o pequeno semi-círculo formado ao redor da televisão.
Sigo-o, encontrando nossa Velma ajoelhada ao lado da Momo, escondendo sua risada atrás das mãos. Esse hábito dela começou depois que ela colocou aparelho na sexta série, e ficou até mesmo depois que ela já o tirou. É um desperdício, ao meu ver, guardar um sorriso tão bonito. Uraraka me avista e aponta para a almofada ao lado dela, lugar que guardou para mim. Sento-me ao seu lado, e Iida atrás de mim, e observo enquanto o Todoroki assume seu lugar entre o Kaminari e o Kirishima, cruzando os braços em frente ao tórax. Finalmente consigo ver a sua fantasia mais de perto, e percebo o sangue falso e grampos ao redor do pescoço, como se tivesse sido decepado e a cabeça recolocada no corpo com a ajuda de um grampeador. Fico surpreso com ele ter prendido o cabelo, de forma a mostrar a marca de nascença do rosto, agora pintada com um tom de roxo, deixando-a parecida com um hematoma. Os punhos, agora expostos depois dele tirar a jaqueta, evidenciam várias pulseiras ao redor dos mesmos. Se qualquer outra pessoa tivesse se vestido assim, com certeza ninguém teria notado — e, provavelmente, teriam até reclamado da falta de criatividade. Mas, como é ele, é certo de que se tivesse uma competição de melhor fantasia, ele estaria no pódio, simplesmente por ser Shoto Todoroki.
Ele volta a me encarar, com sobrancelhas semicerradas, nitidamente incomodado por eu ter olhado em sua direção. Tento me levantar para trocar de lugar, envergonhado, mas as luzes se apagam imediatamente, cessando as conversas enquanto a tela mostra o título do filme: Hereditário, do diretor Ari Aster. A história segue os passos de uma família que está sofrendo com a morte da avó, uma mulher que guardava vários segredos. E, como todo filme de terror, todos os personagens passam a ser alvo de acontecimentos bizarros, principalmente a filha do casal. Enquanto o enredo se desenrola, e as cenas ficam cada vez mais gráficas e violentas, Uraraka pede licença e se levanta, indo para o outro lado da sala, em direção ao banheiro, suponho. Continuo assistindo o filme, enquanto aguardo que ela volte, mas isso não acontece.
Discretamente, volto a observá-lo. A forma como ele morde o lábio inferior durante os jumpscares ou como ele esfrega a parte de trás do pescoço nos momentos mais mornos do filme. Como ele dá de ombros quando alguém o toca. O que cada pequeno gesto desse representa, eu não sei dizer. Mesmo observando tudo isso, é impossível supor o que ele está pensando.
Novamente, me perdi em pensamentos que provavelmente dariam um péssimo livro. Olho a tela do meu celular e percebo que já se passaram 1 hora e a Uraraka ainda não voltou.
— Iida, por que será que a Uraraka está demorando tanto? — sussurro próximo a ele, tentando não atrapalhar ninguém.
— Ela deve ter ido ao banheiro — ele retruca, ajustando os óculos enquanto mantém os olhos presos na tela.
Sinto-me inquieto, apesar da resposta lógica dele. Ela não costuma levantar durante as nossas maratonas de anime e filmes, porque diz que odeia perder qualquer minuto do que ela estiver assistindo. Mas por que ela fez isso dessa vez? Será que ela está se sentindo mal? Ou será que aconteceu alguma coisa?
Procuro na minha mente uma desculpa para levantar sem parecer que estou indo atrás dela — mais para evitar que as pessoas tenham uma ideia errada — e vejo o balde de pipoca quase vazio. Gesticulo e estendo a mão para Jiro me passar, mantendo-me agachado enquanto saio do campo de visão dos outros. Deixo o balde na pia, checando uma última vez atrás de mim se alguém estava me observando. Todos parecem concentrados no filme — o que é um alívio, mas que não surpreende — e isso me deixa mais livre para procurá-la. Entre gritos e sons de surpresa, ouço soluços abafados vindo do corredor dos quartos, e sigo até encontrar uma porta entreaberta. Bato e abro-a gentilmente, encontrando minha melhor amiga sentada contra a parede, em prantos.
— Deku, o que você está fazendo aqui? — a voz dela sai entrecortada por soluços. Fito seus olhos vermelhos e marcas de rímel nas bochechas, agora úmidas.
Poucas coisas poderiam ter me machucado tanto quanto aquilo. Nunca a tinha visto assim, tão vulnerável e frágil, como se pudesse quebrar ao mínimo toque. Ela sempre foi a mais forte de nós dois, com seus sorrisos e bom humor, que iluminaram e trouxeram alegria durante todos esses anos. Agora, vendo-a tão despedaçada, eu passo a me odiar mais um pouco por não ter prestado atenção nas palavras não ditas. Por ter deixado passar as vezes que ela deve ter precisado de ajuda, e que eu não dei, porque só sou capaz de olhar para mim mesmo. Se houvesse um troféu para pior melhor amigo, não consigo pensar em nenhuma pessoa mais merecedora do título do que eu.
Ela tenta esconder o próprio rosto, mas ajoelho-me e a abraço antes que ela crie uma barreira entre nós. Suas lágrimas quentes caem sobre o tecido do meu uniforme, umedecendo-o e ardendo contra a minha pele. Sinto meu peito apertar lentamente, como se tivesse uma corda amarrada ao meu coração, enquanto ela se permite chorar. Fecho os olhos e tento acalmar meu pulso, que ensurdece meus ouvidos, impedindo que eu me concentre apenas no barulho da respiração dela. Como um mar agitado, sinto as ondas de emoções que não conheço e não entendo me afogarem, junto com qualquer coisa que eu pudesse dizer. Soa patético, eu sei, que mesmo depois de tantos anos, eu não ser capaz de perguntar um simples "o que foi que aconteceu?" ou dizer um "pode desabafar se quiser, sou todo ouvidos" sem parecer forçado, quase como se eu estivesse lendo um roteiro.
— Sabe, você não precisa dizer nada — Uraraka fala, timidamente — É besteira, pode deixar pra lá.
Isso é uma frase que normalmente me deixaria confortável. Mas, escolher o silêncio parece errado, porque até mesmo agora, onde ela está nitidamente mal, ela levou minhas emoções em consideração. E não falar nada é o mesmo que ignorar a coragem que ela teve em me permitir vê-la assim. Então, apago minha mente e deixo que as palavras escapem:
— Não sei o que aconteceu, mas odeio ver você assim. Mesmo sabendo que isso vai passar, é horrível ver você chorar e não conseguir ajudar — respiro fundo, criando coragem para me afastar e encará-la, permitindo que minhas mãos se encaixem em suas bochechas, agora coradas — Você é uma das pessoas mais importantes na minha vida e, se eu pudesse escolher, eu sofreria no seu lugar mil vezes se fosse preciso. E, se faz você triste, é importante, assim como todo o restante sobre você.
Deslizo meu polegar sobre seu rosto, enxugando a última gota que cai desses olhos, castanhos-claro como o outono, que me fitam, incrédulos. A adrenalina que corre pelas minhas veias parece durar uma eternidade, assim como esse momento. Os tons alaranjados do pôr do sol, que entram pela janela, fazem a pele dela brilhar, sombras contornando cada curva desse rosto tão doce. Noto que a franja dela cresceu a ponto dela precisar prendê-la com uma presilha para não atrapalhar a visão, as bochechas rubras e olhos castanhos-claros, como chocolate. Ela é uma visão tão bonita quanto uma obra de arte, penso. Tão bonita que eu poderia...
— SEU IDIOTA! — escuto do corredor, seguido de um barulho que parecia um tapa.
Volto a realidade e percebo o que estava fazendo. A proximidade que eu estava dela faz com que instintivamente eu me afaste, me desequilibrando e caindo sentado no chão. Minhas orelhas queimam, assim como meu rosto. A vergonha é tanta que eu gostaria de me esconder em um buraco e sair só depois de cinco anos. Meu Deus, por que eu fiz isso? O que diabos eu estava pensando? O que ela vai achar de mim?
Uraraka se levanta rapidamente, indo ver o que estava acontecendo lá fora, fechando a porta atrás de si. Enquanto isso, eu só consigo encarar fixamente o chão enquanto as palmas das minhas mãos apertam a minha cabeça, uma tentativa falha de trazer um bom senso de volta para essa minha cabeça de vento. Enquanto tento recuperar o mínimo de dignidade que ainda me resta, levanto-me e vou até a porta, mas paro depois de ouvir vozes vindo de fora do quarto:
— Todoroki, o que diabos aconteceu aqui? — Uraraka fala firmemente.
— Não é da sua conta, Ochaco.
— No momento que faz a Himiko sair chorando, passa a ser da conta de qualquer um. O que você disse pra ela?
— Só disse a verdade. Ela que não sabe ouvir — o tom despretensioso e vago do Todoroki sempre me deixa um pouco atordoado.
— E essa marca vermelha no seu rosto? Foi presente pela sua agradável companhia e delicadeza?
— Eu poderia dizer o mesmo desse rímel borrado. Alguém aqui finalmente levou um fora do crush do colégio? É por isso que você estava escondida no quarto do Denji?
— Mais uma palavra e eu faço você ter outro desses no rosto — ela retruca, impassível.
— Você não faria isso. A não ser que quisesse que eu falasse para todo mundo o que eu vi acontecer.
— E o que você acha que aconteceu?
Não consigo ouvir mais nada depois disso. Apenas escuto passos se aproximando e o som da maçaneta girando. Meu corpo age sozinho, e quando percebo, estou dentro de um armário, entre uniformes escolares. Sério, não tinha como esse dia ficar pior e mais constrangedor do que já está. Ao menos eu me poupei de passar mais uma situação difícil com o Todoroki.
Aguardo até os passos se dissiparem e o ambiente ficar em silêncio, então saio do meu esconderijo. Sinto o meu celular vibrar no bolso do uniforme, retirando-o para ver o que era. Deparo-me com uma mensagem da Uraraka:
"Desculpa, não estou me sentindo muito bem. Precisei ir para casa. Mas depois a gente conversa melhor sobre o que aconteceu"
Guardo-o novamente no bolso, sentindo o impacto dos acontecimentos do dia de hoje pesarem em cima de mim. Não lembro bem do que aconteceu depois disso, apenas de ter me despedido das pessoas e de ter conversado algum assunto com o Iida no caminho de casa. Minha mente dá mil e uma voltas, buscando respostas de perguntas que eu não consigo encontrar. O que é essa sensação incômoda dentro de mim, que me mantém acordado até o nascer do sol, escrevendo nesse pequeno caderno? Por que meu fôlego continua tão raso, mesmo depois dela ter ido embora? Por que não consigo acalmar meu coração, que acelera toda vez que lembro daquele pôr do sol? O que significou aquele momento, que eu não consigo tirar da minha cabeça?

You are my hero - A história de DekuWhere stories live. Discover now