23: Inércia

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É meio de tarde novamente. O sol ferve por trás do véu translúcido das nuvens que moldam arabescos no horizonte, se erguendo por trás das lufadas mornas do ar cor de manteiga. Sentado na sala de espera do consultório entupida de outros indivíduos, eu penso, e o pensar me arrasta para cima, a um nível quase estratosférico além dos prédios e casas e do mundo, como um aeroplano velho de tinta azul descascada que quase não consegue rodopiar.

Sinto-a novamente; aquela sensação tão humana de deslocamento, mas que em mim parece assumir proporções maiores do que às dos meus vizinhos-pessoas. Todos mexem ao celular, distraídos para a própria existência como é de se esperar em momentos tais de inércia obrigatória, e eu, no entanto, existo. Inevitavelmente, e irrevogavelmente, existo. Sou aquele que suspira, olhando ao redor, em busca de desenhos em infiltrações esquecidas nas paredes, lapsos de imperfeição em ambientes herméticos e ranhuras inevitáveis na superfície impenetrável que procuramos construir sobre a nossa humanidade em salas de consultório, como se não fôssemos muito além de máquinas que, ocasionalmente, se interessam em saber se estão com defeito, pane ou somente falta de óleo nas articulações metálicas que rangem com o caminhar.

O sol se escondeu em algum ponto do cosmos.

E eu ainda não fui chamado.

A Arte de Comer e Derramar EstrelasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora