Capítulo 1

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"O prazer e a dor, e os que os produzem, o bem e o mal, são os eixos em que assentam todas as nossas paixões."

John Locke

Olho com um imenso tédio, as várias e várias notas de dólares em minhas mãos. Deitada no imenso sofá confortável e macio, me questiono novamente sobre a morte, sobre o que vem depois da mesma, para ser mais específica. Me pergunto se todo o sofrimento sentido em terra simplesmente se esvai, se tudo apenas se vai, sua consciência, seus pensamentos, tudo.

Ou se tudo tem uma continuidade, e se sim, seria ela o que muitos denominam como o "céu"? Um local onde a paz reinaria, todos viveriam felizes e em harmonia em um longo e verde jardim.

Ou um local onde suas maiores dores em vida apenas teriam continuidade, como um loop que apenas se repetiria por toda a eternidade, tornando sua existência miserável.

Me pergunto qual a sensação da vida se esvaindo de seu próprio corpo, curiosidade essa que sempre volta a minha mente toda vez que sou contratada para acabar com a vida de mais uma pessoa. De todas as minhas vítimas, eu sempre aguardo os três tipos de olhares. O descrente. O temeroso. E o que eu mais gosto, O de profundo ódio.

Por todos os meus 28 anos eu sempre procurei uma definição para meus sentimentos, principalmente quando eu tinha que me sujeitar a mais um trabalho sujo que me deixaria novamente sem dormir. Hoje em dia eu sinto alegria? Euforia? Medo? Tristeza? Sinceramente não consigo definir, eu perdi essa capacidade depois do início da minha adolescência, depois de tanto sangue, de tantos corpos dilacerados, de tantas torturas, de tantas mortes, eu agradeci aos céus pela perda de grande parte dos meus sentimentos.

Hoje em dia eu sei o quão amaldiçoada eu sou. Eu não sou estúpida e muito menos tenho a menor vontade que seja de me vitimizar. Eu tenho consciência de que tudo o que eu faço é errado, eu tenho consciência do quão maldita sou por dia após dia, carregar em minhas mãos as tantas e tantas vidas ceifadas por mim, tantas vidas inocentes, tantos gritos que atormentam minha perturbada mente até os dias de hoje.

A verdade que é de tantas e tantas almas, eu fui apenas a azarada de ter nascido em uma família que há muito tempo atrás foi considerada como uma das mais poderosas dos Estados Unidos.

Responsável por produzir durante vários e vários anos, homens fortes que ajudavam o negócio sujo da família a permanecer de pé. A mesma família que durante anos e anos, tratava suas mulheres como objetos de reprodução e prazer, algo além disso não era permitido.

Ao mesmo tempo em que me considero uma fodida, tenho consciência da pequena sorte que tive por meu velho ter ido contra tudo e escolhido me deixar viver, nem que seja uma vida fodida como a que tenho hoje, mas ainda assim, viver.

Meu velho passa longe de ter sido o melhor pai do mundo, na verdade, não sei se devo considera-lo um bom pai, afinal, ele apenas me poupou de um inferno para me colocar em outro talvez muito pior.

Desde criança, eu recebi um treinamento duas vezes pior do que o que os homens da família recebiam. Meu pai, que era um dos principais treinadores dos meus tantos e tantos primos, foi o principal encarregado de se certificar que eu fosse duas vezes melhor. Eu não podia ser mediana, não podia ser fraca, eu tinha que ser a melhor, era uma questão em muitos casos de vida ou morte.

Enquanto meus primos com seus sete, oito anos de idade já iniciavam os seus assassinatos, eu, sendo mais nova, já havia sido submetida a coisas muito piores. Fui exposta ainda muito cedo a várias coisas consideradas completamente inapropriadas para uma criança.

Enquanto muitos eram trancados por dias e dias em quartos escuros, eu era jogada em meio a florestas úmidas e perigosas, com apenas uma faca e nada mais. Se eu saísse viva de lá, eu era merecedora, caso eu morresse, serviria apenas de adubo para a terra que por séculos já presenciou muita coisa. Desde criança passei por diversas coisas que explicam o porque minha mente se quebrou ao ponto de ser irreparável hoje em dia. Ainda consigo ouvir os gritos das almas atormentadas, ainda consigo ouvi-los implorando, ainda consigo sentir o cheiro ferroso de sangue, o cheiro pútrido de carne queimando, não se parecem nem um pouco com a carne de churrasco que meu pai fazia nos finais de semana.

Se meus primos eram ensinados a esquartejar corpos, eu era ensinada a não só fazer isso, como também a identificar o local de cada órgão, a forma de atingir cada um deles, seus locais mais sensíveis, locais de maior impacto, em uma imensidão vermelha e agonizante para todas as vítimas que serviam de cobaias para todas as minhas aulas práticas, vítimas essas que muitas vezes eu não sentia a menor compaixão. Pois é, eu tive desde muito nova diversas aulas de anatomia.

O senso de justiça de meu velho era estranhamente questionável, a sua proteção com pequenos bebês e mulheres grávidas era algo extremamente grande na qual ele não fazia questão alguma de esconder, por isso, muitas de minhas cobaias eram malditos sujos, ratos que apenas tiveram o que mereciam. Admito que não lamentei tanto o fato de tê-los feito ter um sofrimento muito pior do que o que foi sujeitado as suas vítimas.

Por todos esses anos eu me questionava sobre o porquê de toda essa merda. Nunca soube se meu velho me odiava o suficiente ao ponto de realmente querer que a sua única filha tivesse um futuro tão sujo quanto o meu ou se me amava o suficiente para me preparar para esse mundo imensamente cruel. Se eu não poderia atuar como um membro de minha família por ter uma vagina entre as pernas, por que diabos eu tinha que estar sujeita a essa merda toda? A resposta veio quando atingi os meus 12 anos de idade, no dia do meu aniversário.

Era a época de inverno, extremamente fria. Fui retirada a força de minha cama e aplicaram uma injeção em meu braço, que fez com que eu desmaiasse.

Quando acordei, eu estava em um chão coberto de mato congelado e muita neve. Haviam várias crianças assim como eu, em imensa parte, garotos, meus olhos fizeram um pequeno arrastão por volta, eram incontáveis o número de crianças que ou estavam acordando, ou já estavam sentadas e encolhidas.

Vários homens estavam em frente a seus helicópteros caríssimos e me lembro vívidamente desse dia. Durante anos de minha infância, eu vivenciei coisas extremamente perturbadoras e aprendi coisas ainda piores, para aquele dia. Eu estava sendo preparada para algo maior, algo brutal, e algo extremamente perturbador.

Várias famílias de diversos países espalhados pelo mundo inteiro, ano após ano, traziam sua criança que acabara de completar seus onze anos para ilhas desertas como essa. E para que exatamente? Simples. Para entrarem em uma constante luta pela sua sobrevivência, somente uma criança poderia sair dali, somente uma criança seria a vencedora e digna de permanecer na família. Era uma questão de honra para as famílias mais influentes no mundo do crime.

Percebi a merda grande que eu estava quando vi meu pai em meio aos vários homens, a primeira vista me encarando com seriedade, porém em seus olhos era possível ver o desespero presente. Não era uma questão discutível. Ou eu saía dali viva, ou morreria e meu corpo seria esquecido e devorado pelos animais ali presente.

Eu deveria imaginar o verdadeiro inferno que seriam aqueles dias ali, nunca desejei tanto na minha vida ter sido um membro essencial como naquele dia. Se eu fosse um membro essencial da família, eu não teria sido mandada a aquele lugar, eu não teria que ter feito todas as coisas que tive que fazer para sobreviver, eu não teria o conhecido, e pior, eu não teria o matado.

 Desejo Profano  (Trilogia Os Irmãos Lancelotti)Where stories live. Discover now