O primeiro capítulo

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3.500 palavras

Aquela noite de lua cheia parecia eterna.

A lua no alto do horizonte, imponente em vermelho-sangue, aparentemente não se deslocava um centímetro. Algo incomum pelo que o povo da pacata cidade de Griselda costumava testemunhar nessa época do ano, nada surpreendente de se esperar de um povo de cidade pequena e distante, como a Lua. Nádia sabia bem o que noites assim representavam, pelo menos, era o que as lendas contavam a ela e a todos os habitantes do município.

Tendo o luar por companheiro em mais um plantão na delegacia, Nádia bebericava o terceiro café. Bebericava, pois o primeiro, apesar de quente, havia descido suave devido a sua sede, já o segundo, ainda quente, fora mais contido, uma vez que os efeitos da cafeína já vinham sendo sentidos. Aquela atual dose era bem mais devagar, porque talvez já estivesse enjoada e energizada o suficiente para que viesse a se energizar mais.

Deixou a xícara de lado a esfriar sozinha, e saiu pela porta de sua sala, abrindo caminho pelo corredor, em que só ela e mais alguns colegas estavam. Dois deles conversavam bem alto no hall de entrada, rindo de alguma situação. Ao verem-na cruzar a recepção, buscaram disfarçar e fazer silêncio, devido a fama de Nádia em ser rígida demais, ainda que não houvesse serviço imediato a se fazer na delegacia.

Não que houvesse em dias e horas normais. Griselda tinha uma baixa criminalidade invejada por outros municípios da região. Não que eles fossem muito próximos, uma viagem da capital do estado até lá daria quase dez horas de ônibus, sete, de carro. E eram apenas essas duas opções. Não havia aeroporto em Griselda ou porto, uma vez que o Rio ficava a mais de cento de vinte quilômetros. Levava-se mais de três horas até a cidade mais próxima. Era difícil quando alguém adoecia gravemente e precisava de cuidados mais especializados, de emergência.

O único hospital da cidade possuía dois leitos e duas UTI's neonatais e a CTI até que eram bem equipadas com materiais em bom estado, devido ao pouco uso. O caso mais grave que a Santa Casa de Griselda testemunhara - exceto o último homícidio - fora uma batida de caminhão de uma carreta de alimentos na entrada da cidade. A maioria da carga fora perdida, e o motorista tinha feito muitas amizades em sua estadia no hospital.

Houve mercadoria que sobrou, sim, e poderia muito bem ter sido saqueada pelo povo da cidade, pelos poucos mais de vinte e mil pessoas, porém, o então prefeito insistiu que fossem devolvidas e/ou doadas a cidades com população mais carente. Griselda usava da vantagem de ser pequena e distribuir bem a riqueza que seus comerciantes, donos de bares e restaurantes faziam girar nos cofres da prefeitura. Os salários não atrasavam, os impostos em dia faziam com que as menos de uma centena de ruas fossem regularmente asfaltadas e remendadas, com que as pedras das calçadas fossem mantidas inteiras, com que suas duas praças principais fossem sempre limpas, suas árvores e canteiros simetricamente podados.

Há que se dizer que esta referida gestão tinha sido bem avaliada pelos moradores, o prefeito era bem visto e participava dos grandes eventos que eram tradição em Griselda, conversando com o povo, os elogiando e parabenizando pela realização das festividades. Eventos estes que oriundam de lendas que enriquecem e tornam a cultura griseldense nem um pouco monótona.

Há que se ressaltar, também, que a vida na cidade não a das mais fáceis, talvez confortável. Haviam lendas na boca do povo que os amendrontavam, sem nenhum motivo racional, a menos para a geração atual.

Muitas delas datavam da época da fundação de Griselda, que há muito tempo tinha sido uma aldeia indígena, onde uma mulher misteriosa havia se instalado fugida de algo ou alguém, ao menos pelo que se consta documentado na Biblioteca Pública e nos arquivos da prefeitura. Só não consta o motivo da fuga. Uma moradora fervorosa quanto a princípios e tradições, havia escrito um livro a respeito das histórias de fundação da cidade, que era um objeto de bolso para quase todos os moradores, que criam piamente nas maneiras sobrenaturais que Griselda veio a existir.

O devoradorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora