Capítulo 17 - O amor trouxe vocês até aqui

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A cantiga antiga trazia algum conforto, frente ao terrível destino selado naquele mundo. Uma promessa. Uma esperança. Tetsurō sentia, no fundo do âmago, onde as intuições mais primitivas moravam, que voltaria para encontrar a irmã novamente e salvá-la. De olhos fechados, lembrava-se de todos os rostos dos enfermos de Ise. As cicatrizes em torno do corpo e a mordida no pescoço ardiam em lembrança. Viu diante de si aqueles que padeceram em seus braços; e os que ainda dependiam de seu retorno. Mas ele não estava de olhos fechados — levou um susto ao perceber que cada um daqueles homens, mulheres e crianças apareciam na superfície da água, como se suas memórias tivessem sido enterradas ali.

Tetsurō se agarrou na borda do barco, a respiração descompassada. As águas brilhavam, como uma tela transmitindo imagens. E sussurravam, vibrando através do ar.

Você fracassou.

Os rostos mudavam. Furiosos. Decepcionados. Tristes.

Com a boca subitamente seca, Tetsurō sussurrou:

— Não. Eu... eu vou salvar vocês.

Nos salvar?

Você foi incapaz de salvar até a pessoa que mais amou.

Foi incapaz de se salvar.

Você é um peso.

Seria melhor se afundasse.

— Não fique tão perto da água — Uma voz diferente soou. A presença havia se sentado devagar ao seu lado, fazendo o barco balançar. — Ela revela as nossas maiores perturbações e arrependimentos. O que não significa que são reais.

Zen tinha o rosto tranquilo de quem aproveitava um passeio no mar, não de um acusado prestes a encarar uma Deusa. Tetsurō aceitou o conselho, largando o barco. As vozes ficaram mais fracas, mas não melhorou a sensação profunda e sombria; era como se murmurassem ao pé do ouvido as verdades não ditas do coração.

Você desistiu de nós.

Por que acreditamos em você?

Suas palavras não valem nada.

— Não vai parar. Você precisa desviar a atenção.

— O senhor... também pode ouvir?

A vergonha subiu até as bochechas ao pensar que o kitsune estivesse ouvindo toda a podridão escancarada sobre si. Mas Zen meneou a cabeça.

— Não — disse com a voz baixa. — O seu, não.

Então ele também ouve algo, constatou Tetsurō, sua língua coçando para perguntar quais seriam seus arrependimentos ou medos. Mas quão intrusivo isso seria?

Se Zen viu a curiosidade estampada no rosto de Tetsurō, ignorou. Ao invés disso, apontou para Yusuke, do outro lado do barco, deitado de olhos fechados e abraçando a barriga. Ryo e Rika também não se incomodaram em deixá-lo ali para lidar com a náusea, mas não gostariam quando vissem Zen rindo casualmente:

— Pelo menos seu amigo está tão distraído com a própria dor que nem pode ouvir a água. Sorte a dele.

Sorte? Se o movimento de uma carroça já o deixava enjoado, o de um barco então deveria fazer Yusuke querer colocar os órgãos para fora. A situação dele era lastimável. Tetsurō suspirou, atingido por uma tristeza. As vozes não eram gentis quando se referiam ao amigo.

— Eu tentei ajudá-lo, mas ele pediu para ficar sozinho — disse em tom preocupado. — Preciso respeitar o espaço dele. E também... não há muito o que eu possa fazer com um estoque tão limitado de ervas. Minha bolsa ficou no Palácio.

Pétalas de Akayama [BL]Where stories live. Discover now