Quando eu era criança costumava assistir a muitas animações da Disney. Houve uma época em que eu estava fissurada no filme da Mulan. Eu amarrava o roupão de banho da minha mãe e buscava sempre por um cabo de vassoura na cozinha antes de assistir novamente. Tentava, a todo custo, ficar parecida com ela.

A razão de eu ter ficado obcecada talvez tenha sido pelo fato de que a personagem Mulan é uma guerreira à frente de seu tempo. Eu queria ser como ela quando crescesse, uma guerreira. E ainda poder usar aquela roupa linda que ela vestia ao treinar ou sair para o combate. Ela salvou a vida de muitas pessoas. Diferente das outras princesas, ela foi a heroína da sua própria história.

O que mudou dentro de mim? Não sei com exatidão quando deixei de ser corajosa. Eu não me arriscava. Nunca. Aprendi a ficar na defensiva fisicamente, deixando as armas para a oratória, muito útil nos negócios. Meu corpo não era algo que eu pudesse usar numa luta ou mesmo para defender alguém. Deixei essa obsessão de lado quando finalmente cresci.

Eu devia estar sonhando, pois não pude impedir que as imagens surgissem à minha frente, como se eu fosse novamente uma espectadora, assistindo a tudo pela televisão.

De repente a cena distorcida de mim mesma na enfermaria mudou. Agora eu andava por uma rua conhecida em São Paulo, que eu passava todos os dias para pegar o metrô de volta para casa. Depois do estágio na firma de contabilidade e sem um pingo de ânimo para pensar em qualquer outra coisa. Era uma rota que geralmente me enchia de medo, pois sempre estava escuro e não havia tantos olhos na rua. O comércio estava fechado e era cedo demais para os bares abrirem.

Eu preferia não usar saltos, nunca sabia quando seria preciso correr.

Foi num dos becos escuros e fedorentos que presenciei um assalto. Uma mulher segurava uma faca e exigia que o homem entregasse seus pertences. Lembro que corri. Mas ali, na lembrança, apenas fiquei parada, observando o homem tentar se defender.

No entanto, a mulher assaltante de meu sonho conseguiu derrubá-lo com um golpe bem aplicado de karatê. Eu sorri, satisfeita em vê-la se dando bem, mesmo sabendo quem era a errada da história. Eu queria saber fazer uma jogada dessas. Queria ser uma guerreira, como a Mulan.

Então a cena mudou outra vez, agora estava no meu quarto de infância. Era pequeno e não havia muitas coisas, apenas uma cama, um roupeiro e uma pequena escrivaninha onde eu fazia o dever de casa. Quero dizer, meus desenhos. A decoração se baseava em rabiscos de vestidos espalhados por todos os cantos visíveis da parede. Eram feios e sem técnica alguma, confesso. No entanto, a essência das ideias eram incríveis. Eu era talentosa e inteligente. Eu poderia sim me tornar uma em um milhão, caso me dessem a chance.

Meu pai bateu à porta e logo em seguida entrou no quarto. Em suas mãos havia um prato com fatias de maçã descascadas, do jeitinho que eu preferia comer.

Ele se sentou à beira da cama de solteiro, forrada com um edredom das Bratz. Carregava no rosto a expressão cansada de sempre. Devia ter acabado de chegar do longo turno do trabalho. Na época ele trabalhava como enfermeiro-chefe de um grande hospital.

– Sua mãe está perguntando se já fez o dever de casa.

Olhei para os pés da cama, onde uma mochila da barbie jazia cheia de livros intocados. Em contrapartida minha mesa estava abarrotada de desenhos.

– Você precisa estudar para ter um futuro. Isso – ele apontou para meus desenhos em cima da mesa – não a levará a lugar algum.

Aquela era uma das minhas piores memórias. Por que eu estava revivendo tudo de novo? Certamente não queria me lembrar da época de trabalho na firma, tampouco as palavras maldosas que ouvi de meu pai naquele dia. Mamãe pediu que eu o perdoasse porque ele estava cansado e não sabia o que estava falando.

Missão: Férias na EuropaWhere stories live. Discover now