Coisas Perdidas - Parte 7

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O cadáver de Jamie Monco tinha o mesmo sorriso debochado que o bandido usara em vida. De alguma forma, era irritante. Não parecia certo.

 Estava agachado, olhando de perto o rosto pálido do homem que havia causado a morte de Doc. Mascava tabaco enquanto mantinha os olhos no filho da mãe como se a qualquer momento ele pudesse se levantar do chão e dizer que aquilo tudo não passara de uma piada.

 Ao seu redor, o saloon do finado Carl estava uma confusão. Logo que as armas silenciaram e os corpos terminaram de cair, precisaram lutar para afastar todos os compos dali. Alguns homens começaram a atirar nos bichos, a xerife foi cuidar dos feridos e Wyatt tratou de arrastar os corpos e colocá-los um do lado do outro, com as costas apoiadas na parede do fundo do lugar. Nunca tinha ouvido falar de um tiroteio que terminasse arrumado, mas além de corpos e toda a destruição, também havia penas e pequenos dinossauros em todo o canto.

 Os olhos azuis do líder do bando estavam semi-cerrados e um tanto mais opacos. Wyatt não gostava daquilo. Era como se o morto tivesse preservando um último segredo, uma última cartada. Doc havia sido vingado, seus assassinos estavam mortos e os planos do bando acabados. Mas ainda assim era como se Monco zombasse daquilo tudo, como se no momento de sua morte houvesse reservado um último suspiro para avisar que dívida alguma fora paga. Que a alma de Doc ainda se contorcia no além e não havia parado de cobrar o acerto de contas.

 Wyatt baixou os olhos para a caixa de preservação que estava logo ao lado de seu pé. A verdade é que Doc não se importaria tanto com a morte de seus algozes quanto com o seu precioso último projeto. Mas lá estava — visível através do vidro e dos líquidos reguladores de temperatura — o ovo de trinta centímetros que traria à vida um dinossauro carnívoro, extremamente perigoso e também extremamente leal aos humanos que o criassem. Era tudo o que Doc podia esperar, sabia disso. Mas ainda assim... De alguma forma sabia que não era o suficiente.

 O Caçador Solitário deu uma última olhada para Monco e, antes de se levantar, cuspiu o tabaco na cara arrogante do desgraçado. Sabia que algo estava errado. Sentia isso. Mas esse era um assunto para outra hora. Para outra vida.

 Antes de pegar a caixa pela alça e se virar, suspirou e tratou de se concentrar. Quando se voltasse para a porta, não deveria haver dúvida, cansaço ou angústia em seu rosto. Como o viram chegar, partiria.

 Passou sem nada falar para os sobreviventes do tiroteio, homens que haviam lutado e matado naquela briga que ele havia começado. Estava quase na metade da sala quando a Xerife entrou pela porta.

 Podia ver o cansaço e a perda nos olhos de Louise. Providência havia vencido a briga, mas também havia perdido bastante e a oficial da lei não era impassível quanto a isto.

 — Já indo embora, Caçador Solitário? — Wyatt franziu o cenho para o apelido, e para o sarcasmo com que foi dito.

 Pensou em não responder, mas sentiu-se abrindo um pequeno sorriso e começando a abrir a boca. O som do disparo veio antes que pudesse falar qualquer coisa.

 Ele não viu quando a Xerife sacou o revólver. Mas sentiu o impacto do tiro quando o laser atravessou a caixa de preservação e seu precioso conteúdo. Não precisou olhar para o objeto para visualizar o líquido azul claro invadindo o furo carbonizado do ovo do utahraptor e escorrendo por dois buracos perfeitos no vidro da caixa.

 Imediatamente deixou o equipamento cair. Vidro e o que sobrara do ovo se espatifaram aos seus pés. Antes de qualquer pensamento, já havia sacado o revólver.

 O som de diversas armas sendo engatilhadas o impediu de atirar.

 Wyatt ficou ali parado. Arma e olhos apontados para a Xerife. Depois de tudo aquilo, depois de tudo o que passara... Para então ter o projeto de Doc destruído em suas mãos. Sentiu um sorriso feroz escorregar para seus lábios. Se não pôde limpar sua dívida para com Doc, por que não adiantar a hora do seu acerto de contas com seu velho amigo?

 O dedo já escorregava no gatilho quando a Xerife falou.

 — Daniel me disse que esse era o único ovo. — Não havia arrependimento ou dúvida em sua voz — Alguma hora uma das crias, ou uma cria das crias, ia acabar nas mãos de gente como Monco, Wyatt. E eu não iria deixar um monstro desses cair nas mãos erradas.

 Não soube se conseguiu conter o riso ou se voltou a ficar impassível. Já podia ver o corpo da Xerife caindo ao chão quando as palavras da mulher finalmente o atingiram. E o nome de Daniel ecoou em sua mente como um aviso. Como um lembrete de coisas que deixara escapar.

 — Xerife, quando foi a última vez que viu Daniel? — perguntou pausadamente.

 Ela franziu o cenho e virou os olhos para o lado.

 — Quando acertaram o galimimo dele durante o tiroteio.

 Wyatt baixou a mão e guardou a arma no coldre.

 Ele passou pela Xerife e já estava na porta quando ela lhe chamou mais uma vez.

— Ah, Wyatt?

Ele voltou a cabeça para ela.

— Não volte na minha maldita cidade! — rugiu por entre os dentes.

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