O primeiro encontro

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6 de julho de 1957

Paul McCartney acordou frustrado. Frustrado por sonhar outra vez com a mesma coisa, aquele sonho sem graça e sem final sobre cavar o quintal e encontrar nada. Qual era o sentido de sonhar aquilo tantas vezes? Se ao menos encontrasse algo, mas não. Toda vez tinha a esperança de um final diferente e o sonho acabava da exata mesma forma. Era irritante.

Bom, pelo menos o dia prometia ser mais interessante. Tinha planos.

Saiu da cama um pouco mais animado, afastando as cobertas desgastadas que caíram no chão. Não se importou muito. Espreguiçou-se e abriu as cortinas mesmo que Mike ainda estivesse dormindo na cama do lado contrário do quarto.

– Hey, qual o seu problema, hein? – Mike reclamou enquanto enfiava os olhos semiabertos de volta no travesseiro. A claridade repentina que vinha da janela o acordou da maneira que mais odiava – Fecha isso!

– Não disse que ia comigo? – Paul retrucou como se repreendesse o irmão mais novo. Podia-se dizer que ele gostava da missão de ser o irmão mais velho, aquele que toma conta e dá as ordens. Mike sobe um olhar confuso em sua direção como se nem soubesse o que ele dizia, o que faz Paul revirar os olhos em desgosto – A feira... Ivan... – ele dita as palavras devagar como se quisesse que o outro se lembrasse sozinho de seus significados.

– Ah, eu não vou – em sua voz ainda um tanto infantil Mike só respondeu rápido antes de voltar a se enfiar no travesseiro – Posso ficar sozinho. O papai chega logo, eu só vou ficar dormindo até ele chegar.

Mal fazia um ano desde a morte de sua mãe, Mary. Mike entendia bem quais eram as preocupações de seu irmão e porque ele tinha assumido aquele papel cuidador do nada. Antes talvez Paul nem se preocupasse em chamá-lo, mas agora era como se tivesse que sempre cuidar dele, protegê-lo. E na verdade estava sempre grato por isso, só não queria mesmo sair da cama naquele dia.

Nem estragar o passeio do irmão.

Depois de meses era a primeira vez que Paul arrumava algo pra fazer que não fosse o de sempre, algo que o tinha deixado animado. Fazia semanas que aquele seu amigo Ivan estava inventando passeios diferentes e Paul nunca se metia em nenhum. Mike tinha seus meros 13 anos, mas era esperto o suficiente para ver que seu irmão andava mais deprimido que o normal desde a morte da mãe e ainda tentando dividir as rédeas da casa com seu pai - mesmo que Jim não precisasse ou pedisse por isso em momento algum.

– Você só sabe dormir... – Paul reclamou entredentes e o irmão nem se mexeu na cama à frente. Deu de ombros e decidiu ir mesmo sozinho. Ivan estaria lá de qualquer forma, seria divertido.

Paul encontrou uma boa roupa no guarda-roupa e tomou um café da manhã rápido. Era um dia quente e úmido, um sábado um tanto comum. Saiu pela porta principal depois de deixar algo na mesa caso Mike acordasse antes de Jim chegar em casa. Nada muito caprichado, porém. Por algum motivo qualquer quis voltar pra dentro de casa e levar seu violão consigo; talvez tivesse alguma inspiração repentina ou encontrasse mais alguém naquela feira. Talvez até George, com quem já costumava tocar de vez em quando.

Enfim, foi calmamente até o lugar da festa, sentindo-se animado e estranho ao mesmo tempo. Era a primeira vez que ia a festas como aquela desde a morte da mãe. Não que antes já não costumasse ir sozinho ou com amigos, mas era estranho não tê-la lhe dizendo a que horas voltar, nem insistindo que comesse mais antes de sair de casa. Ainda era estranho.

Paul chegou timidamente mas já cativado pela música que podia ouvir desde a entrada. Ivan já devia estar tocando, então apressou o passo por entre barracas e pessoas desconhecidas, até avistar um caminhão num dos cantos. Um certo público o cercava e de longe reconheceu Ivan cumprindo seu papel naquela banda de skiffle. Sorriu como um amigo orgulhoso e se aproximou devagar, passando por entre um e outro.

No entanto, quando mais uma música começou, Ivan já não parecia mais tão interessante de assistir, afinal ele só tocava aquele baixo de uma corda de uma forma meio desgovernada no fundinho do palco. Quem realmente brilhava ali era o vocalista. Um cara que Paul não conhecia, mas de quem já tinha ouvido falar pela boca de seu amigo em comum.

Desde que começou a primeira linha daquela música conhecida era como se algo nele fosse hipnotizante. Algo naquele seu jeito meio desleixado, em suas letras todas erradas que faziam McCartney sorrir de canto, algo em seus olhos que iam e vinham pra lá e pra cá. Na verdade Paul tinha a certeza de que seus olhares se cruzavam propositalmente algumas vezes, mas isso só tornava tudo mais hipnotizante.

Quando notou só estava lá, parado feito um bobo, assistindo sem reação – ou melhor, sem outra reação além de sorrir feito um idiota, como se aquele vocalista levemente mais velho fosse o maior artista que já assistiu na vida. E sem sequer prestar atenção em Ivan outra vez. Aliás, sequer poderia dizer quem eram as outras pessoas na banda. Tinha outras pessoas?

Só percebeu que estava imerso demais quando ouviu aquelas estrondosas palmas ao seu redor e se assustou como se tivesse saído de um transe. Quando olhou outra vez já não tinha mais ninguém em cima daquele palco improvisado e se xingou por não ter chegado mais cedo. Quando Ivan apareceu em sua vista outra vez poucos minutos depois com uma garrafa de bebida na mão e um sorriso orgulhoso, ele mal podia esconder a vontade de perguntar sobre aquele cara de camisa quadriculada.

Mas não perguntou, não teve coragem.

Não que precisasse, já Ivan teve a ideia de apresentá-los por si só. E Paul McCartney não poderia estar mais animado depois de todos aqueles meses de monotonia. Seu coração estava acelerado como se fosse conhecer o próprio Elvis Presley e ele nem sabia exatamente o motivo. O tal vocalista tinha uma boa voz e desenvoltura, mas não sabia as letras e também não era um exímio guitarrista. O que nele era assim tão cativante?

Paul não teve tempo pra pensar antes de já estar de frente com aqueles olhos hipnotizantes outra vez.

6 de julho de 1957

John caminhava devagar prestando atenção às folhas que se balançavam nas árvores. Era tarde e ele estava levemente bêbado, tropeçando vez ou outra nos próprios pés. Mesmo com todo aquele efeito do álcool, sua mente ainda estava mais ativa do que o de costume, as lembranças do dia bem claras, prendendo sua atenção.

– O que você achou? – sua voz meio cambaleante quebrou o silêncio que já durava um bom tempo. Pete Shotton o encarou de lado, tão bêbado quanto, sem entender o que ele queria – Do cara que Ivan trouxe... Paul.

O rosto do novo conhecido ainda estava bem fresco em sua mente. Desde o primeiro momento em que o viu no meio da plateia. Bem, meio que viu já que a visão não era assim seu forte. Mesmo tendo que estreitar os olhos pra encará-lo, não podia negar que tinha chamado sua atenção, era um rosto diferente. E quando se encontraram só teve confirmações. Era um cara bonitão, devia admitir.

Mas além desse mero detalhe, era alguém realmente interessante. Seus olhos brilhantes, a forma engraçada como ele segurava o violão e a voz forte e doce ao mesmo tempo cantando aquelas músicas que John conhecia bem.

– Ah, ele é bom, não é? Mesmo tocando ao contrário... – Pete ri um pouco respondendo com naturalidade enquanto encarava o amigo de longa data. Seu olhar era um pouco diferente do habitual.

– Não, não isso... – John deu um riso anasalado e longo levado por toda aquela leveza do álcool no sangue – Ele é bem bonito, não é?

Chalk and CheeseWhere stories live. Discover now