Hannah’s POV
- Encontramos no inferno, nosso refúgio, apenas com uma regra: não há mentiras, não há enganos. E um bônus: liberdade.
Observava-o, atentamente, enquanto falava. Seus olhos pareciam perdidos num qualquer ponto distante, concentrados em suas palavras.
- Então, você se tornou num demônio, acima de tudo, porque, supostamente, os serafins tentaram vos enganar? Ou foi apenas uma desculpa para se aproveitarem de humanas sem impedimentos? – minha voz soava fria. – Mas, e se eles não vos enganaram? E se Ele existe mesmo?
- Não existe. Se existisse eles teriam dito.
- Existe, Ezra. Existe e a vossa renúncia deve tê-lo magoado.
Ele parou um pouco, para me olhar, antes de uma risada sair por sua boca. Não era uma risada natural, bonita, genuína e alegre. Não. Era irônica, condescendente. Era uma risada da face negra de Ezra.
- Oh humanazinha… - pegou meu queixo e me obrigou a levantar a cabeça para que me pudesse encarar. – Tão ingênua. Tão bonita, mas tão ingênua. Deus não existe, minha querida.
- Existe sim, por que…
- Não tente arranjar argumentos. Acredite, já pensei e rebati todos eles.
- Nunca vai conseguir mudar aquilo em que acredito. – afirmei, me levantando da cama.
- Nem vou tentar. Apesar de tudo, a ideia de Sua existência ajuda-vos, humanos, a descobrir força onde pensam não existir. Podemos mudar de conversa? Este tema está me tornando aborrecido.
- Claro. Vou deixar você descansar. – não esperei por uma resposta, simplesmente sai do quarto, em direção ao corredor. Por muito que quisesse discutir com Ezra sobre o assunto, duas coisas me faziam desistir disso: a primeira, seu estado de saúde, que ainda era frágil, então, não o queria aborrecer; a segunda, a possibilidade de me ver confrontada com a hipótese de ele ter argumentos tão bons, tão infalíveis, que eu seria obrigada a repensar minhas crenças. E não deseja fazer isso.
Desci as escadas até à cozinha. Estranhamente, ninguém estava presente. O silêncio era demasiado. Lucas, provavelmente, retornara ao inferno. Com Ezra ferido, Lucas ficara encarregado dos três círculos: traição, luxúria e ganância. Sabia que não era fácil para ele, mas também, tinha consciência que o fazia de bom grado, pelo melhor amigo.
Abri a porta da geladeira e procurei algo que pudesse comer. Com as melhoras do demônio, me sentia mais capaz de engolir do que sentia horas antes, quando sua vida era uma incógnita. Tirei o jarro de leite e puxei um copo do armário, onde derramei parte do conteúdo do jarro. Não gostava muito do sabor, mas o fato de estar fresco tornava-o mais bebível. 
Sentei junto à mesa, de costas para a porta, e comecei pensando sobre a relação que tinha com Ezra, se é que lhe podia chamar relação. Ele era meu mestre, eu era sua escrava, contudo, ele fazia coisas por mim que não cabiam neste tipo de relacionamento, ou será que entre demônios e escravos era assim? Poderia ser aquilo normal e eu apenas estar fazendo confusão em minha cabeça? Não, era impossível. Era impossível que o que eu sentia quando Ezra me tocava, ou me olhava, fosse normal para um escravo. Tinha de haver mais qualquer coisa. Eu sabia que havia. Eu amava-o, mesmo sem conhecer muito bem o sentido da palavra, sabia que se aplicava a mim. Um sentimento qualquer dizia que o devia esconder, fechar a sete chaves, não deixar ninguém saber, contudo, um sentimento diferente falava exatamente o contrário, que era algo bom, que deveria ser declamado em voz alta, com orgulho, mesmo que metesse medo, mesmo que…
Meu coração pulou ao sentir uma mão gelada contra minha boca e um braço ao meu redor, me impedindo de mexer. Tentei me livrar, mas não tive sucesso. Então, tudo ficou escuro…

Ezra’s POV
Larguei a humana e deixei que Fontes se livrasse dela. Já me sentia melhor, rejuvenescido, como novo. Não há nada que uma boa dose de sono e algumas virgens não cure. E por falar em virgens… Ops! Erro meu, ex-virgens. Onde estava Hannah? Já não aparecia em meus aposentos há algumas horas. Eu sei que nossa última conversa não fora, propriamente, leve e que o final a aborrecera ligeiramente, mas também não era motivo para desaparecer por tanto tempo!
- Vejo que já está ótimo! – Lucas entrou no quarto, sem bater, com sua habitual boa disposição. Mesmo o que eu precisava.
- Estou pronto para voltar ao trabalho. – afirmei.
- Ainda bem que você está se sentindo melhor. Eu estava vendo que tinha que tomar conta do inferno, de ti e da humana anã.
- Da Hannah? Por quê?
- Ela, praticamente, não saiu deste quarto. Desceu para ver a mãe…
- Espera, a mãe dela esteve aqui?
- Sim. Continuando, praticamente, não comeu durante esses dias. Acho que se sente culpada por tudo o que aconteceu.
Torci os lábios em desagrado. Não fazia a mínima ideia que ela se sentira assim. Não era estúpido, sabia que tinha uma certa influência nela, que ela sentia algo – uma humana religiosa como ela não dá, assim, a virgindade a qualquer um, especialmente, um demônio. O que eu não sabia era o alcance desses sentimentos e quais eram meus próprios sentimentos em relação a isso. Isso, esta indefinição, a possibilidade do desconhecido, me amedrontava. Muito.
- Então, está mesmo bem, não é? Está calmo?
Detectei um ligeiro desvio na voz de Lucas.
- Estava melhor antes de me ter perguntado isso. O que se passa?
Fez um sorriso culpado e arranhou a nuca com os dedos, num tique de nervosismo.
- Lucas. – pressionei.
- Bem, há a possibilidade de a Hannah estar tão, mas tão bem escondida que não a conseguimos encontrar.
O fogo da fúria se acendeu dentro de mim.
- Como assim, não a conseguem encontrar?!
- Já vasculhámos toda a propriedade. Ela não está em lado algum – ele parecia culpado, mas eu não me importei em confortá-lo. Minha cabeça começou, imediatamente, a formular hipóteses e possibilidades. Era quase impossível entrar ali sem ser detectado, por outro lado, sair era muito fácil. Há pouco dias atrás, a balança estava inclinada para o meu lado, por isso Hannah escolhera ficar comigo. Poderia ter acontecido algo que tivesse mudado isso? Os acontecimentos dos últimos dias passaram pela minha mente. Teria sido demasiado violento, quando estivemos juntos, antes da Resistência me levar? Teria sido nossa última conversa? Procurei algo que tivesse feito de errado, mas não conseguia me lembrar de nada.
Então, chegou a luz.
- Disseste que a mãe dela tinha estado aqui.
- Sim, hoje mesmo. – confirmou Lucas.
Num salto, me levantei da cama e entrei no quarto de vestir. Não demorei muito a voltar, totalmente vestido e pronto a sair.
- Aonde vai?
- Eu sei onde ela está. Quero que me diga, na cara, que prefere ficar com o anjinho dela e não aqui, comigo.

Entre Anjos e DemôniosWhere stories live. Discover now