Capítulo XI

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So who was I to hurt you, to desert you. So now that you've learned to hate me, you're finally set free. I fall to my knees.

Breathing Slowly, Crossfade

Uma enorme tristeza se apoderou de mim, agora acompanhada por culpa, fria e penetrante. Fora eu quem causara aquilo? Era por minha culpa que Ezra, quem eu admitira a mim mesma amar, seria torturado e magoado e… Minha mente e meu coração eram uma avalanche de emoções, piorando quando o vi sair, porta afora. Tentei me mover, tentei caminhar e impedi-lo, mas a força invisível continuava lá, prendendo-me ao chão, naquele pequeno espaço. Sem qualquer outra opção, vi-me desabar de joelhos no tapete de cor indefinida. Impotente, nauseada, não sei se devido ao poder demoníaco que me rodeava, se à culpa ou à fraqueza que possuía.
A culpa era minha. A culpa era minha. Eu era fraca. Eu não conseguia salvá-lo. Eles iam magoá-lo. Ele ia sofrer por mim.
Fui obrigada a me manter no mesmo sítio durante mais tempo do que esperava. Rezei, durante esse tempo. Pedi, supliquei a Deus que o ajudasse, mesmo sabendo que ele o traíra. Não deixava de ser uma criatura de Deus.
Por favor, por favor, sussurrei, completamente desesperada.
Ary apareceu junto a mim, com um olhar preocupado, muito carregado para alguém de sua idade. Estendeu-me um pedaço de papel, mas as circunstâncias não me deixaram olhar para ele, porque, no momento seguinte, Lucas entrava na sala.
- O que se está passando? – veio até mim e me agarrou a mão, destruindo a força que me mantinha do chão.
- Ajude-o, Lucas! Ajude-o!
O demônio me abraçou, tentando acalmar meu coração, que parecia não conseguir abrandar.
- Quem? Me explica o que se está passando. Onde está Ezra? – colocou as mãos em meus ombros, me afastando o suficiente para me poder encarar.
- A Resistência tem-no! Ele se deixou torturar. Você tem que pará-los! A culpa é minha. Por favor, Lucas!
Seu olhar assumiu um semblante preocupado.
- Onde?
Apontei para a porta por onde eles haviam saído e Lucas se apressou em atravessá-la. Segui-o pelo corredor escuro, com portas de ambos os lados. Minhas pernas tremiam, uma sensação fazia peso em meu estômago, mas tinha de continuar. Tinha de encontrar Ezra e trazer alguma luz a sua mente. Tinha que salvá-lo. Lucas estava ali, Lucas trataria de tudo. E parecia saber, exatamente, para onde ir. Parou em frente a uma das portas e inspirou fundo. Imitei-o. O cheiro a canela era maior ali do que no resto da casa.
- Hannah – com a expressão numa mistura de preocupação e compaixão, virou-se para mim, - não vai querer ver o que está acontecendo ali dentro. É feio demais para os olhos de uma menina como você.
Um arrepio desceu por minha coluna. Inspirei fundo mais uma vez e a canela entrou em meu sistema, provando novamente que era Ezra quem estava por trás daquela porta, sabe-se lá em que estado ou circunstâncias.
- Não quero saber, Lucas. Não me interessa o que está acontecendo desde que consigamos tirar Ezra de lá sã e salvo.
- A questão é que… não sei se chegaremos a tempo – ele disse, num tom de voz muito baixo. Estava me preparando para o pior. Mas eu não aceitava o pior.
- Então, estamos à espera de quê?
Parecendo mais ou menos convencido, Lucas colocou a mão na maçaneta e abriu a porta.
O primeiro a me atingir foi o cheiro a carne queimada. Aquele cômodo era como uma pequena capela, no meio daquele casarão. As paredes eram de pedra, decoradas com imagens de santos. Não sabia que os demônios podiam entrar num santuário daqueles, mas o passo firme de Lucas me mostrou que sim.
Procurei Ezra por todo o lado. No fundo da capela, como era natural, havia um altar, onde um grupo de homens estava amontoado. Lucas percorreu o espaço até lá e afastou algumas pessoas para conseguirmos ver.
Uma nova sensação de náusea se apoderou de mim. Havia um braseiro, no canto, com uma série de objetos compridos de metal, aquecendo. Em cima da mesa de pedra, estavam facas, espadas, espetos, martelos, todos os gêneros de elementos de tortura. No meio daquilo tudo, uma cruz de madeira com mais ou menos dois metros de altura se mostrava violenta e cruel e, pregado a ela tal qual Jesus Cristo crucificado, Ezra mantinha sua cabeça baixa, o corpo ensanguentado, várias marcas avermelhadas espalhadas por seu tronco, algumas eram queimaduras feias, com um aspeto de infecção. Suas asas estavam bem abertas e presas a algo que não se conseguia perceber, apesar de ser possível ver através delas, em alguns pontos se abriam buracos, como um casaco velho.
O que é que lhe tinham feito?
Um dos homens tirou um dos tubos de metal do braseiro e estava prestes a tocar em Ezra com ele masLucas segurou-lhe no braço, impedindo-o.
- Acabou – disse.
- Lucas… - lentamente, Ezra levantou a cabeça e eu corri para ele. Emoldurei suas faces com minhas mãos, observando todos os detalhes do que os humanos lhe tinham feito. Tinha o lábio inchado, um corte na orelha, uma marca vermelha debaixo do olho direito. O seu olhar se virou para mim, não com raiva como esperava, mas com vergonha, embaraço por o ver assim, naquele estado. Sem pensar em qualquer dor que lhe pudesse causar, toquei seus lábios com os meus, numa tentativa patética, mas esperançosa de o curar, de o libertar de tudo: da cruz, do sofrimento, da dor. – Ainda não acabei – disse, com a voz fraca, quando nos separamos. – Deixa-os continuar.
Aquelas palavras gelaram meu corpo, mesmo com o calor que ali fazia.
- Não… não… Ezra, não! Já chega! – balbuciei. – Já chega…
- É uma ordem – completou ele.
Não precisei de olhar para saber que Lucas tinha largado o braço do homem. 
- Não, Ezra, por favor, acaba com isto.
- Saia da frente, moça! Não ouviu ele? – uma mão asquerosa parou em meu ombro. Num golpe de irritação, minha mão parou na cara do homem, concluindo o que não conseguira fazer a Ezra, momentos antes, e me dando muitíssima satisfação.
- Filha da…! – ele começou dizendo.
- Lucas! – gritou Ezra.
Lá estava ele, outra vez, a chamar o amigo para fazer o controlo de danos, para me controlar, para me proteger de ver o que ele achava ser demasiado cruel para meus olhos.
Senti o toque de Lucas em minha cintura, quando me puxou. Gritei, esperneei, nada o deteve. Me levou para o canto oposto da capela, de costas para a cena e me manteve embalada em seus braços.
- Não deixo isto ir longe demais, querida, prometo que não – sussurrou ao meu ouvido, com mais outras coisas que eram para me fazer sentir melhor, mas apenas me traziam cada vez mais para a realidade. Os barulhos eram insuportáveis, os gemidos de Ezra, misturados com o som do metal. Minhas lágrimas molhavam a camisa de Lucas, enquanto a única coisa que eu desejava era que tudo parasse. Enterrei o rosto no peito de Lucas o mais fundo que consegui, como se pudesse abafar tudo aquilo, os sons, a dor, o temor…
Dei por mim rezando, novamente. Sempre fora meu escape e, naquele momento, não seria diferente. Pedi que Ezra se salvasse, mesmo que não o merecesse, mesmo que aquilo fosse o pagamento por sua traição. Desejei que tudo parasse, por mim, que assistia. Num momento idiota e fantasioso, pedi que ele sobrevivesse, mesmo que isso significasse que ficaríamos separados para sempre. Pedi que me levassem em seu lugar.
O tempo passava tão lentamente!
De repente, o calor do corpo que me envolvia desapareceu. Abri os olhos e vi que Lucas me largara e caminhava a passos largos até ao altar. Com um gesto bruto, afastou todos os homens e, quando alguns tentaram retaliar, ele, simplesmente, fez um olhar gelado, muito parecido ao de Ezra e disse uma única palavra:
- Acabou.
Sua expressão se modificou quando se voltou para Ezra e começou soltando os pregos que o seguravam. Se desejava protestar, o demônio da luxúria não o fez, talvez não tivesse forças para isso.
Despertando de meu congelamento, caminhei para eles. Lucas amparou Ezra de um lado e eu tentei fazer o mesmo do outro mas ele recusou. Me senti momentaneamente,ferida, mas depois me apercebi que ele agia por orgulho.
- Vocês… ganharam – murmurou, em voz muito baixo. – Lutaremos… juntos.
Como se aquilo me importasse naquele momento! Apenas desejava tirar Ezra dali, o mais rapidamente possível.
Joshua assentiu. Me deu nojo olhar para ele. Pensar que, duas horas antes, conversava com ele como faria com um amigo e ele fora capaz de fazer uma coisa daquelas, não a qualquer um, mas a Ezra.
- Vamos – ordenou Lucas e, no momento seguinte, graças àquela habilidade fora do comum que possuía, estávamos em casa.

Entre Anjos e DemôniosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora