Cap. 2. O intenso ódio começa a florescer no coração dos desamparados.

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Tarde ensolarada de um outono de 1853, Aldeia Brighton*, aproximadamente 80 km de distância de Londres.

Composta por um rapaz primogênito, uma moça que assumia todos os afazeres domésticos e um bebê recém-nascido que ainda residia nos braços de sua mãe, além do pai que era o chefe, formava-se toda aquela estrutura familiar de camponeses. O filho mais velho logo assumiu uma parte dos negócios que envolviam vendas de animais de pequeno porte e do quase raro excesso da produção das plantações do domínio da família. Com isso, o pai, já doente por conta da idade e por um problema respiratório, foi presenteado com uma diminuição na intensidade do trabalho pesado que fizera até aquele momento para alimentar todos seus filhos. Agora, passava uma boa parte dos seus dias cuidando da esposa e do bebê que parecia doente e prestes a morrer em todas as horas que eles menos esperavam. A figura paterna da casa se preocupava com a educação, nem que fosse a mais básica, de seus filhos. Por esse motivo, ele pediu auxílio de um amigo que tivera a oportunidade de estudar disciplinas básicas e ele foi responsável em ensinar conteúdos relacionados a matemática, a escrita e alguns ensinamentos bíblicos para os descendentes mais velhos do seu contratante. A filha do meio cuidava de todos e temia, sem demonstrar isso para qualquer familiar, a cada vez mais próxima procura por seu pai de um marido que estivesse de acordo com o que aquela família achava de "ideal". Ela temia que seu casamento arranjado se revelasse perigoso para sua própria segurança e que seu futuro gerasse uma tristeza inacabável para sua alma.
Mesmo passando por situações de fome e subnutrição, aqueles indivíduos viviam uma vida feliz e até que boa, se fossem comparar com as vidas de outros indivíduos da aldeia. Mas, naquele ano, os negócios diminuíram, eles não estavam mais conseguindo comprar e manter os animais que seriam vendidos futuramente e as suas plantações passaram a ser mais para o próprio consumo do que para venda. Durante muitos meses o pai conversava com seu filho sobre ter que deixar as mulheres naquela aldeia, enquanto a criança crescia e se fortalecia, e ir atrás de um trabalho melhor em Londres, que parecia acolher todas as pessoas do mundo com propostas de trabalho em diferentes áreas. O filho rebatia a ideia de seu pai de o acompanhar, pois sua saúde já era muito debilitada e existiam inúmeros comentários de pessoas que afirmavam que aquele lugar sugava a saúde de todos seus moradores a cada segundo. A morte invisível parecia andar livremente pelas ruas e tinha o infame poder de escolha das suas próximas vítimas, que poderiam ser qualquer um que vivesse por ali, filhos da cidade ou não. Ele citou os acontecimentos repentinos e mortais de que uma névoa** constante, que envolvia Londres, ceifava a vida de vários habitantes ao longo do tempo, e as histórias de tais mortes se espalharam por várias partes do Reino Unido, chegando até ali naquela aldeia. Mesmo com todos esses argumentos o pai acompanhou seu filho, o que acabou, após 4 anos de moradia lá, sendo um suicídio para o senhor. A mãe, a filha e o bebê ficaram com uma parte do dinheiro que os homens tinham juntado e logo se prepararam para irem tentar uma nova e melhor vida na terra em que a rainha morava. Essa viagem aconteceu em meados de janeiro de 1858, quando venderam a velha casa.
O filho primogênito trabalhava diariamente e incansavelmente nas minas e nas construções das novas ferrovias por inúmeros lugares das ilhas britânicas. No dia em que sua mãe e seus irmãos chegaram na cidade, ele os esperava ansiosamente em um quarto que alugara para seus familiares ficarem. Lá, contou a história da morte de seu pai e das últimas missões deixadas por ele - que consistiam em trabalhar para sustentar sua família e procurar um companheiro de confiança para casar com sua irmã. Após saberem da súbita perda, sua mãe caiu em profunda tristeza, o que piorou seu estado de saúde consideravelmente.
Em julho, a morte andou novamente pelas ruas estreitas e movimentadas por diversas pessoas, dessa vez veio na forma de um grande fedor*** que preenchia todas as residências da velha cidade. Todas as impurezas do rio Tâmisa, que era o local mais comum de despejo de excrementos humanos, animais e de resíduos vindos das indústrias, além de ser uma fonte de que muitas pessoas retiravam a água para consumo próprio, vinheram a tona com a baixa do rio. Esse acontecimento elevou o aparecimento de casos de doenças como cólera e febre tifóide, essa última que ocasionou a morte da mãe dos irmãos. Esse foi um período de extremo sofrimento para os dois, infelizmente, sobreviventes daquela peste e das maldições que pareciam envolvê-los. Após um tempo desse evento, os jovens receberam a visita de um trabalhador que era amigo do irmão mais velho deles e mais uma vez a morte colocou suas mãos na família destroçada e fizera que aquele homem fosse seu mensageiro, o qual informou que o irmão deles havia perecido após um acidente em uma mina que os dois amigos estavam trabalhando.
Na completa miséria, a irmã passou a fazer diversos tipos de trabalho com costura e até mesmo prostituição, em uma tentativa extrema de sobrevivência. Seu irmão, quando completou 8 anos, passou a tentar trazer um sustento para a moradia eliminando as fezes de cavalos das ruas, sendo humilhado para ganhar algumas moedas de homens com belas roupas, e passou também a pedir esmolas, além de realizar furtos de comida. Uma vez fora pego quando fugia do homem que roubara algumas frutas e peixes, foi encurralado, esmurrado e depois o homem cuspiu em seu rosto, enquanto várias pessoas assistiam a cena, algumas até mesmo incentivando aquele espancamento pesado contra o garoto. Os policiais riam toda vez que ele gemia - que ocorria quando os chutes atingiam suas costelas e partes mais sensíveis, ele nunca se esqueceu disso. Quando a noite chegava, ele se reunia com sua irmã para se alimentaram com o que tinha conseguido e ela, durante o tratamento das feridas do jovem, lhe contava toda a história da família, destacando o que aquela maldita cidade havia realizado com seus parentes mais amados. Dessa maneira, um ódio genuíno foi florescendo no coração até então puro daquela criança, que conheceu a beleza, felicidade e pureza do mundo quando era muito novo para guardar tudo aquilo em sua mente. Agora, ele vivia e experimentava todas as versões da feiúra, da tristeza e da sujeira daquele mundo injusto e cruel, essas coisas invadiam e dominavam completamente o seu interior. Quando sua irmã dormiu, ele chorou de raiva. Um único desejo, expresso apenas em seus pensamentos, era que a tão próxima e quase inexplicável morte viesse até ele e que ela, por misericórdia, acabasse com todos os sofrimentos daquela pobre alma que ainda veria muitas tragédias em seu futuro sombrio.
Tocados por uma sorte inesperada, eles conseguiram se virar e após um certo tempo o irmão mais novo encontrou oportunidade de ganhar algum dinheiro mexendo com os maquinários das indústrias sujas e barulhentas. Lá passou vários anos de sua vida, correndo enormes chances de ter suas mãos decepadas ou esmagadas caso deixasse de dar total atenção para o que acontecia com aquelas grandiosas invenções humanas. Todos os dias via como eram sofridas as vidas daqueles funcionários, que iam de crianças até pessoas mais velhas. Ele facilmente enxergava os cansaços nos rostos magros daqueles indivíduos, também via as ofensas e o jeito que os donos ricos, que apareciam de hora em hora, gritavam com as pessoas que diminuíam a intensidade e produtividade de suas ações, tudo aquilo era completamente visível. O ódio de Peter aumentava extremamente quando seus companheiros desmaiavam e era atingidos com cassetetes, chutados ou arrastados pelos fiscais do trabalho industrial. Tantas crianças vivenciavam aquelas surras, além de sofrerem com possíveis acidentes trágicos que de vez em quando aconteciam e todos ali só tinham a opção de aceitar a calamidade e continuar a trabalhar, sem descansar ou se deixar ser afetado. Era o próprio inferno em terra.
No natal em que Peter já tinha 17 anos de existência, uma coisa boa finalmente aconteceu com ele e com sua irmã. Naquela época, Peter iria comemorar esse evento natalino pela primeira vez desde a morte de seus familiares - os dois irmãos tinham entrado em um processo de luto que reprimia qualquer tipo de festividade por um bom tempo. Porém, o luto deles não se comparava com o processo exigido por aquela sociedade que era tão aficionada pela morte e esse processo pós-morte de alguma pessoa importante. Logo, ele acordara cedo e fora atrás do que planejava comprar para ao menos vivenciar um pouco da festividade. Nas ruas geladas e cobertas com camadas de uma neve, cinza pelos resíduos da fumaça fabril, havia pessoas andando de um lado a outro, havia também crianças sujas e com roupas esfarrapadas que brincavam na neve. Um pequeno grupo daqueles indivíduos pequenos tinha decidido se reunir para criar um boneco de neve, o resultado da união gerou um ser pequeno, totalmente desigual e sem nada decorativo, além de pedras e pedaços de gravetos perdidos no chão, que melhorasse sua aparência. Mas as crianças amaram sua criação e sorriram, Peter também sorriu contagiado pela alegria daqueles pequeninos. Ele desejou feliz natal para aquelas crianças, que estranharam o ato do homem ter notado-as, e seguiu seu caminho se sentindo tocado pela felicidade que superava a precariedade marcante de todos os cidadãos daquela área. A refeição de natal dos irmãos seria pão, algumas frutas em um estado perto de serem somente destinadas ao descarte e água - fora tudo o que tinha conseguido com o dinheiro disponível naquela caminhada.
Chegando em sua casa de apenas 1 cômodo, Peter se surpreendeu ao ver o recinto: a irmã tinha limpado e organizado todo o lugar, de certa forma dando um aspecto de quase novo para ele. A pequena mesa de madeira foi coberta com o mesmo pano que eles usavam (era ainda uma das lembranças físicas de sua última casa), porém a irmã de Peter havia consertado os rasgos e feito algumas pequenas rendas no tecido branco, graças a um rolo de linha que ela tinha ganhado de uma de suas chefes. Então, celebraram a data e a alegria dominou o humilde recinto daquela família tão afetada e sofrida. Eles comeram, se sentiram fartos mesmo com tão pouco e oraram ao som das cantorias natalinas de crianças e adultos que eram entoadas lá fora, de certa forma, estava sendo um momento mágico para todos. Mas a felicidade não permaneceu na moradia e na vida daqueles seres por muito tempo.

No trabalho, Peter conheceu alguém que sempre ficava próximo a ele, o ajudando, quando se sentia cansado, mesmo que fosse proibido e que se fosse visto pelos superiores traria consequências graves para ambos. Após alguns simples gestos e palavras soltas, o homem que possuía um sotaque estranho convidou Peter para ir a um bar, que não ficava muito longe de sua casa, desse modo seria possível ter uma conversa completa e calma, sem punições. Peter concordou, mesmo estranhando o súbito convite. Ele não fizera amigos desde que chegou com sua mãe e irmã, também não era tão acostumado a frequentar bares ou qualquer coisa do tipo - sua condição financeira e responsabilidades com o trabalho não o permitiam ter esse tipo de lazer frequentemente. O homem falara o dia e hora e quando chegou o momento, Peter saiu e foi até o lugar combinado, estava curioso para saber o que seria tratado naquela conversa. Poderia ser alguém tentado a pedir permissão dele para que o casamento de sua irmã com o jovem desconhecido acontecesse? Descartou a ideia quase como de imediato, seria muito raro ele conhecer sua irmã, e ainda saber que os dois tinham essa relação.
Era noite e o bar tinha uma quantidade relativamente grande de pessoas, ele entrou e se sentou numa mesa. Olhou ao redor, viu alguns olhares feios e outros confusos, mas nada daquele estranho companheiro que não chegara nem a dizer o próprio nome. Batia ritmadamente as pontas dos dedos na mesa, ao mesmo passo da suave melodia que era tocada no estabelecimento. Enquanto estava nesse movimento, alguém ao seu lado apertou o seu ombro. Ele olhou com a cabeça um pouco virada para cima e viu a pessoa que estava procurando agora a pouco.
- Permitiria que esse bom homem sentasse nessa outra cadeira da mesa? - o homem perguntou com aquele sotaque diferente, que era minimamente perceptível, sorrindo.
- Com certeza, fique a vontade - o companheiro se sentou. Ele chamou um garçom e pediu que trouxesse uma bebida, o que fez que Peter se manifestasse em baixo tom após o funcionário sair: - ah sim, perdão senhor, mas eu não tenho muito dinheiro. Vi aqui com o único propósito de saber o que o senhor queria com minha pessoa.
- Tudo bem, nobre cavalheiro - ele ri -, você deve ser ainda novo por essas bandas e, por isso, desconhece as boas conversas dos nobres por aqui. Bem, indo direto ao ponto, eu percebo sua revolta quando os nossos, se permite que eu fale assim, são oprimidos. Com isso, aparentava-se que você era uma boa pessoa, de boa índole, aí queria conversar com você, que creio que se parece comigo. Pronto, foi isso. Estamos aqui e dessa vez pagarei as bebidas. Ah sim, preciso ser formal, meu nome é Richard Holks, venho da bela Irlanda - ele fala essa parte baixo -, e trabalho na mesma fábrica que você.
- É um prazer, senhor Holks. Meu nome é Peter Dickens, venho de uma pequena aldeia, não muito longe daqui, chamada Brighton.
- Sem "senhor", camarada. Me chame apenas de Richard - a bebida chega juntamente com alguns copos. Ele enche dois deles e pretende fazer um brinde: - vamos, acho que seremos ótimos amigos, jovem do interior - eles brindam e riem.

* Atual cidade de "Brighton e Hove".
(https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Brighton_e_Hove).

**Interessante citar, como curiosidade histórica, o Grande Nevoeiro de 1952. Ver mais em: https://youtu.be/pkIcII14f0g

*** Em 1858, o verão fez com que o rio Tâmisa tivesse suas águas diminuídas, expondo diversas sujeiras (excrementos humanos e de animais, lixos e resíduos feitos pelas indústrias) que eram jogados frequentemente nele.
(https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-grande-fedor-londres-1858.phtml).

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Dec 25, 2021 ⏰

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