Capítulo IX: Na calada da noite

Start from the beginning
                                    

- Não vejo como a crença no deus caído poderia ser fonte de bem.

- Swordanimus é injustiçado! – ela explodiu, ainda oculta pela escuridão. – Todos o vêem como fonte de destruição e mal, mas ele foi o único que se colocou do lado de nós mortais quando os deuses quiseram nos punir! Permaneceu amparando seus seguidores enquanto Northar e os outros enviavam fogo do céu! Cresci num santuário sendo obrigada a adorar Wella e seguir um monte de preceitos que só me fizeram sofrer! Obrigaram-me a viver uma vida que não era minha! Apenas Swordanimus me compreendia em minhas orações. Assim como ele, minha existência também foi sempre injustiçada. Só eu o entendo, e só ele me entende!

- Acha que os seguidores de Swordanimus terem perseguido e matado tantas pessoas que recusaram a se converter a ele torna esse deus injustiçado? Ou seria ele, na verdade, o grande causador de injustiça?

Kirinak abriu a boca para rebater, mas foi interrompida por uma estranha sucessão de sons. Em meio à chuva que ainda caía com força do lado de fora, somaram-se o relinchar de cavalos e uma confusa gritaria. Além dos berros, distinguia-se em alguns momentos gargalhadas carregadas de zombaria. Sob a luz de mais um raio, a clériga e o druida se entreolharam: torciam para que não se tratasse de soldados enviados de Tileade à procura deles.

No quarto escadas acima, os demais também despertaram com a agitação. A barulheira parecia provir de frente do palácio, tendo se aproximado pela ponte pouco antes e agora ali se mantendo já há alguns minutos. Lisah mandou que sua loba permanecesse quieta enquanto, munida de suas espadas, mantinha-se em posição cautelosa junto a um dos batentes da porta que levava à sacada. A plataforma encontrava-se logo acima da entrada da construção abandonada e, se conseguisse espionar o exterior sem ser percebida, poderia facilmente averiguar o que acontecia.

Hachiko, armando-se com seu arco, procurava ignorar a dor ainda causada pelos ferimentos acumulados durante o dia e também se instalava numa posição defensiva próxima à varanda. Trocou um olhar com a outra elfa, os ouvidos de ambas se esforçando para compreender o que era dito pelos recém-chegados por entre a sinfonia contínua da tempestade. O que mais puderam escutar, porém, foram risadas.

Súbito, a porta do recinto que conduzia aos corredores do palácio foi aberta. A arqueira apontou instintivamente a arma para quem quer que estivesse chegando... constatando serem Caleb e Kirinak. Tomando cuidado com o fio da armadilha de Lisah, eles se reuniram aos companheiros causando o mínimo possível de ruído. Apoiaram-se de costas para a parede que os separava da sacada. O druida inquiriu:

- Quem são eles?

- Não sabemos ainda... – a elfa morena respondeu sussurrando. – Mas, apesar de rirem, não os julgo muito amistosos.

Nenhum deles, na verdade, os julgava assim.

Extremamente cautelosa, Lisah encostou-se a uma das seções da porta da sacada, empurrando-a lentamente com as costas. Abrindo assim uma pequena fresta para o exterior, sentiu a umidade da chuva contra sua pele, numa súbita e cortante pontada de frio. O som das risadas tornou-se mais alto, assim como o trotar dos animais. Beneficiando-se do fato de poder ver no escuro, a elfa passou a examinar os inesperados visitantes...

Tratava-se de três cavaleiros encapuzados, suas silhuetas negras delineadas pelos pingos da tempestade e os clarões dos raios. Ainda gargalhando e soltando berros desconexos, deixavam claro seu estado de embriaguez. Mesmo com as condições físicas tão adversas e a instabilidade gerada pela bebida, conseguiam manter firmes as mãos nas rédeas de suas montarias, que relinchavam encharcadas enquanto eram obrigadas a galopar em círculo diante da entrada do palácio. O estranho comportamento daqueles indivíduos poderia ser explicado como uma tentativa de se exibirem ou demarcar território; mas, a julgar pelo modo como estavam e o faziam, dava-se por completo a esmo. A situação pareceu ainda mais estranha quando Lisah pôde identificar parte de seus trajes, sob as capas que usavam: uniformes da guarda de Tileade.

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerWhere stories live. Discover now