Capítulo IV: A comitiva de Kal Sul

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O segundo tipo de componente era o gestual. Movimentos sutis e precisos com as mãos e dedos, coreografias inteiras traçadas pelos magos no ar, mais complexas quanto mais poderosa a magia. Por esse motivo conjuradores arcanos raramente trajavam armaduras: o peso das vestimentas prejudicava e muito a mobilidade de seus braços, quase sempre botando os encantamentos a perder. Valia a pena abrir mão de uma proteção corpórea mais alta para se conseguir defender-se por intermédio das artes mágicas, mais seguras e eficientes do que qualquer armadura mortal jamais poderia ser.

O terceiro tipo de componente constituía o material. Dividia-se então em dois sub-tipos: consumíveis e não-consumíveis. Os consumíveis desapareciam logo que a magia fosse invocada, como se ocorresse uma troca. A magia "metamorfose", por exemplo, capaz de converter uma criatura em outra, requeria como componente material um casulo animal vazio, que era desintegrado assim que a conjuração se completasse. O ataque "bola de fogo", por sua vez, necessitava em sua preparação de uma pequena esfera de guano e enxofre, igualmente dissipada durante o processo. Já os não-consumíveis eram objetos que, quando devidamente focados pelo conjurador, cediam energia à magia sem desaparecerem. Quase sempre constituíam itens como amuletos ou símbolos sagrados – no caso de magia divina.

Tais componentes dificilmente funcionavam sozinhos, sendo preciso uni-los na conjuração, dependendo da magia. Enquanto uma requeria componentes verbais e gestuais – fala e movimentos – outra poderia precisar somente de verbais e materiais, enquanto uma terceira necessitaria de todos. Existiam, também, conjuradores que, tendo treinado com extrema dedicação, conseguiam ignorar algum tipo de componente para usar suas magias, senão todos. Um mago que aprendera a conjurar sem precisar falar poderia utilizar encantamentos mesmo se estivesse amordaçado, assim como um que conseguisse ignorar gestos poderia se valer de mágica quando amarrado, ou outro que acabasse perdendo seus pertences fosse capaz de conjurar mesmo sem componentes materiais. Essas técnicas, todavia, eram difíceis de dominar e necessitavam de muito tempo de aprendizado – pré-requisitos que Beli Eddas acreditava poder dispor.

Sorrindo, o mago avistou, não muito longe, os muros de Feritia despontando no horizonte, acima da pequena extensão de floresta que se aproximava da estrada. Essa visão vinha unida aos primeiros ares da brisa marinha e o grasnar das gaivotas que habitavam o litoral. Atingiria o portão no princípio da tarde, podendo visitar o Armazém Público ainda aquele dia. Logo teria as respostas que queria. Estava intrigado a respeito do que o incógnito Palas Eddas poderia lhe oferecer...

Ansioso, Kal Sul há algum tempo mantinha-se atento de pé junto à proa do navio – provavelmente desde que terra fora avistada por Reurx, um dos mais valorosos membros da tripulação, horas antes. Com o coração aos pulos, observava a imensidão do oceano se reduzir, os contornos do continente tornando-se cada vez mais definidos. Aos poucos o borrão cinza no horizonte transformou-se no traçado nítido das construções da cidade litorânea, e as antes indistintas ondulações esverdeadas tornaram-se colinas cobertas de grama e pequenos focos florestais junto ao solo. Mas, apesar de compor bela paisagem a ser admirada, não era isso que o embaixador de Glacis ansiava ver. Ouvira falar do tal monumento apenas em conversas de taverna, entre um gole e outro de cerveja – quando até os próprios anões começavam a sentir seus efeitos. Por conta disso suspeitava que vários dos relatos que escutara a respeito deviam ser por demais fantasiosos, e devido a isso desejava agora comprovar com os próprios olhos como era tal maravilha...

- O que está fazendo aí, Kal Sul, parado feito uma estátua? – perguntou, curioso, o imediato Kraivin, aproximando-se do amigo e capitão.

- O farol – ele respondeu sem tirar os olhos da costa. – Eu quero ver o farol!

Foi quando, como se materializada pelas palavras do anão, a dita estrutura pôde ser observada junto à cidade, mais precisamente ao norte do porto e, como o barco vinha pelo oeste, à esquerda da visão dos navegadores. Em seus imponentes trinta metros de altura, formato ligeiramente cônico e paredes erguidas na mais sólida pedra – as quais, inclusive, vinham durando milênios, pois haviam sido erguidas durante a Pax Borea e lograram resistir até ao Crepúsculo dos Deuses – o farol de Feritia vinha dar boas-vindas aos estrangeiros. E estes esperavam que aquela fosse somente a primeira dádiva das muitas daquela terra que muitos deles, incluindo Kal Sul e Kraivin, desconheciam.

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerWhere stories live. Discover now