Capítulo III: Um navio de histórias

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Não, não seria. Era um bardo e, conforme aprendera desde pequeno, bardos viviam para a música, a poesia e a retórica. Com a devida prática, era possível até conjurar certas magias e encantos com base em canções, poemas ou belos discursos. A palavra tinha poder – bastava saber utilizá-la. Um escolhido por Mager, íntimo das mais belas e inspiradoras musas, o bardo tinha como missão de vida influenciar o mundo ao redor de si através de sua arte. Dependendo do ofício que dominasse, cada um possuía algum pertence inseparável: determinado instrumento musical, cânticos e epopéias de autores célebres, manuais de argumentação... ou mesmo todos eles. Constituíam ferramentas para que o dono pudesse botar em prática seu talento, fascinando aqueles ao redor e muitas vezes sendo-lhes de inspiração nas mais variadas situações.

Os bardos tornavam o mundo mais alegre, interessante e motivado. Sua música acalentava os corações dos aflitos, seus versos encorajavam guerreiros no campo de batalha, seus discursos desmascaravam qualquer mentiroso ou charlatão. Como já dizia seu falecido pai, "um lugar que não conhece bardos é um lugar mudo".

Sorrindo, recordou-se de um antigo poema que ouvira quando criança, e que muito remetia ao teor de seus pensamentos naquele instante. Rimas singelas, estrutura simples, mas conteúdo sábio e verdadeiro:

Que seria de nós sem as palavras?

Exatas e inexatas, que correm em tropel

Sem elas seria inviável e impossível

Que das idéias surgisse a obra, o troféu!

Que seria de nós sem as palavras?

Doces como néctar, amargas como fel

Hoje este mundo cruel e insensível

Não vê através delas a poesia, o céu

Palavras que constroem

Palavras que destroem

Palavras que o coração remoem

Que seria de nós sem as palavras?

As doces, as amargas

As que correm em tropel?

Mais que a música, ele jamais conseguiria conceber uma existência sem palavras...

Killyk Eleniak nascera e crescera em Astar. Sua mãe morrera cedo, vítima dos sítios e saques realizados pelos soldados invasores da Liga do Norte. Fugindo com o filho, seu pai, Fertick Eleniak, do qual se orgulhava imensamente, passara então a viver de forma nômade pelas florestas, campos e vilas do continente. Mas, não cedendo ao impacto da tragédia, acabou dela tirando forças para compreender sua razão de existir: alegrar as pessoas do mundo, fazendo com que não se abalassem frente às penúrias e se reerguessem do solo quando caídas. De castelo em castelo, lugarejo em lugarejo, Fertick passou a levar esperança, paz e felicidade com sua música e sua poesia. E Killyk, junto a ele, foi gradativamente iniciado nas mesmas artes. Unidos, pai e filho deram forças aos elfos para que se curassem das terríveis pragas enviadas pelos deuses, emocionaram combatentes inimigos a ponto de desertarem de seu exército, apaziguaram sangrentas disputas entre nobres, inspiraram construtores enquanto povoados e cidades refloresciam... Num mundo abalado pela destruição, os Eleniak rumavam contra a maré e levavam tudo que existia de bom aos locais mais desolados, a magia das palavras sendo agente da mudança.

Até que, cerca de um ano antes, Fertick adoecera gravemente. Já não era tão jovem – encontrava-se, na verdade, às portas da velhice élfica – e fora vitimado por uma das moléstias mágicas que ainda assolavam Astar mesmo depois do Crepúsculo dos Deuses. Sua agonia fora lenta: perdera as forças aos poucos, sua voz tão vivaz se silenciando, seus gestos antes contagiantes cedendo lugar a membros em constante tremor, seu semblante sorridente perdendo espaço para um crânio pálido e sempre febril. Conseguira prosseguir em suas viagens com o filho ainda durante meses; porém quando caiu de cama, foi de forma definitiva. Tratado por caridosas sacerdotisas de Rimya ao norte de Astar, na companhia de Killyk até o derradeiro momento, tivera com este uma última conversa cujo conteúdo jamais seria esquecido:

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerWhere stories live. Discover now