Capítulo II: Aqueles que vão a Feritia

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Kal Sul, sorrindo, adentrava naquele momento o quarto em que repousava a esposa. Beirando os cento e cinqüenta anos de idade, o anão via surgir os primeiros fios esbranquiçados em suas longas cabeleira e barba. Possuía corpo forte e bem-constituído, característico dos bem-treinados guerreiros de seu povo. Mesmo em casa, raramente retirava sua detalhada e resistente armadura de combate – obra-prima que herdara dos ancestrais de sua família – e os três machados sempre presos estrategicamente a ela. O maior e mais afiado, com uma lâmina quase das dimensões de seu tórax e corte afiadíssimo, sem contar o rubi incrustado junto ao cabo, ficava-lhe fixo às costas, através de um suporte de couro. Sua arma principal. Outro machado, de haste mais comprida e lâmina menor, também era carregado em suas costas, em posição cruzada com o primeiro. Arma secundária. O último, menor, bem mais leve e facilmente arremessável, era trazido por Kal Sul numa tira de couro colada ao lado direito da armadura, junto ao abdômen. Arma emergencial. Além deles, havia, é claro, seu arco longo. Esse, porém, costumava portar somente no campo de batalha. Ele não era como seus fiéis machados...

Terno e feliz, o anão da Liga dos Diplomatas abaixou-se junto a Keylia. A anã rechonchuda de cabelos castanhos riu, o marido então erguendo uma das mãos e massageando com carinho seu ventre. Como ansiava pelo nascimento daquela criança! A herdeira de sua corajosa linhagem!

- Minha irmã disse que perecem ser gêmeos... – falou a mulher.

- Que a bondosa Shakrut a escute, meu amor! – exclamou Kal Sul, sempre com um jeito irreverente em sua voz. – Assim esta casa ficará bem mais feliz! E, como o pai, esses pestinhas saberão empunhar muito bem um machado e beberão tanto hidromel a ponto de nossas reservas se esgotarem!

- E se forem meninas?

- Então terão a mesma incrível vocação para o lar que a mãe!

O casal trocou breve beijo, ao término do qual Kal Sul levantou-se, fitou a amada nos olhos durante alguns instantes, e então retirou algo de dentro de sua armadura. Um envelope, um tanto amassado, possuindo um selo vermelho com o emblema de uma coroa. Estendeu-o a Keyla, que o apanhou, abriu-o e, conforme lia o conteúdo do papel em seu interior, ouviu a explicação do esposo referente ao mesmo:

- Recebi essa correspondência pela manhã, vinda do palácio. O rei requisita minha presença o quanto antes. Creio que vossa majestade tenha algum trabalho para mim.

- Vá então, Kal Sul! – falou a anã, olhos brilhando. – Estarei aqui aguardando seu retorno, o qual, espero, trará boas notícias. Muito me orgulho de você, meu marido!

- E você é minha maior jóia!

Os dois se beijaram novamente e, despedindo-se num aceno, o anão deixou a casa.

A cidade de Tbrisk – "A Invencível", em língua anã – era uma verdadeira gema preciosa cravada no seio das cordilheiras de Glacis. Semi-subterrânea, fora entalhada junto à encosta de uma grande montanha, o Monte Grushk, local associado tradicionalmente ao nascimento do deus Bragondir. Assim, para o mundo exterior pendiam diversas torres imponentes e estátuas gigantescas, representando diversos heróis anões do passado e reis célebres, sem contar as altas e grossas muralhas circundando a área exposta de um lado a outro do monte – tudo erguido em mais puro mármore. Já dentro da montanha, onde a porção central da cidade se situava, palácios inteiros haviam sido erigidos em meio a imensas cavernas e galerias. Paredões de rocha adentro, iluminação provida por lampiões e tochas, encontravam-se túneis que serviam de becos e grutas correspondendo a pátios, com múltiplos caminhos levando aos mais diversos destinos. Tudo um verdadeiro labirinto, dentro do qual, todavia, os nativos jamais se perdiam.

As edificações no subsolo abrigavam os mais variados tipos de atividades. Em amplas oficinas e ferrarias, as belas e mortais armas anãs eram diariamente confeccionadas em meio a batidas incessantes de ferramentas e a uma chuva quase interminável de faíscas. Invocando Tradir, Senhor da Forja, os artífices lapidavam perfeitas obras-primas, utilizadas tanto pelos guerreiros anões quanto exportadas para ricos compradores de toda Boreatia. Além dos armamentos, resistentes armaduras eram moldadas a partir do mais puro metal, suas dimensões sendo adaptadas a diversas criaturas e suas superfícies adornadas com impecáveis contornos e desenhos. Também existiam os ourives, que, trabalhando com os valiosos minérios e jóias encontrados nas abundantes minas do continente, produziam colares, pulseiras, tiaras, braceletes, brincos e todo tipo de adereços que, fora de Glacis, valeriam uma fortuna. Como dizia o velho ditado: "Reis já abriram mão de seus domínios e comerciantes de suas companhias apenas para terem uma jóia anã".

Heróis de Boreatia: A Perfídia de MackerWhere stories live. Discover now