8. Recompensa

800 124 252
                                    

Terá que ser você agora, minha menina.

O mundo se tornou um borrão de entorpecimento. 

Lana não conseguia dizer com clareza o que havia acontecido com ela. Em um instante ela estava tombada no chão do quarto, chorando amargamente, e no momento seguinte mãos fortes a ergueram e ela estava de pé sob o pôr do sol, observando uma grande pilha de corpos queimando. Ao falecer, todos aqueles que foram tocados pela febre do inverno eram incinerados junto com os seus pertences. Como a doença era muito contagiosa, não era permitido manter nada do morto além de lembranças. 

Havia um buraco em seu peito deixado pela matrona, mas as sensações mais profundas remetiam ao seu encontro com aquela estranha criatura. As memórias se confundiam em sua mente e ela não conseguia afastar seus pensamentos desse assunto. A máscara paranormal parecia estar impressa nas nuvens e era como se a presença mística fosse saltar da chama das velas a qualquer momento. Lana compreendia que isso era pouco provável, mas entendia em seu íntimo o que aquele momento tinha significado. Ela tinha encontrado com a Morte e sobrevivido, talvez porque não fosse a primeira vez.

Você vai conseguir aquilo que eu sempre sonhei...

Os dias seguintes foram ainda mais estranhos. Com a morte da matrona, Lana passou a ser uma criada como qualquer outra, sem nenhuma investidura de autoridade. Apesar disso, ela não conseguia se lembrar das tarefas que executava e das partes do palácio que agora frequentava. Se alguém perguntasse, ela não saberia dizer se tinha comido, dormido ou apontar qual era o dia da semana. As faces amigas e as hostis se igualavam, e os seus portadores pareciam possuir o mesmo timbre vocal. Lana estava vivendo simplesmente como um ser deslocado da realidade, que observava todos os acontecimentos através de uma lente de torpor. Por causa disso, nada ao seu redor parecia ter importância ou significado. Viver era como levar um soco no estômago todos os dias.

Tudo que parecia ter restado era uma dor paralisante e, por causa disso, Lana chorava e pensava muito. O encontro (ou seria reencontro?) com a Morte fez com que ela passasse a questionar sua própria existência. Ela não conseguia supor nenhum motivo que justificasse seu renascimento além da injustiça de sua execução, mas essa conclusão parecia ser falha. Muitas pessoas morriam vítimas de injustiça todos os dias e nenhuma dela retornava dos  mortos. Devia haver muito mais, evidentemente.  Talvez ela sequer tivesse sido a única a regressar.

Terá que ser você, minha menina...

Ao longo de suas duas vidas, Lana presenciou a morte de causas naturais pouquíssimas vezes. Houve uma cozinheira idosa quando ela era ainda muito pequena, que faleceu enquanto dormia na frente da lareira. Por causa disso, Linete e sua família haviam se tornado servos da família Altharian. Em contrapartida, a criadagem começou a acreditar que a velha nunca tinha deixado as cozinhas, mas se tornado uma terrível assombração que deslocava as panelas durante a noite.

Um dia, o coração de sua avó materna havia parado de bater. A rainha Fenora havia entrado em um profundo luto e a lembrança de sua figura toda vestida de negro e vagando a esmo pelos corredores ainda causava arrepios em Lana. Às vezes, as pessoas enlouquecem em sua dor e se tornam estranhas até para elas mesmas. Vários médicos tentaram arrancar a rainha de seu estado catatônico, contudo seus esforços eram gastos em vão. Fenora só voltou ao normal quando trouxeram um místico versado nas artes lunares. Foi necessário executar um complexo ritual para recolar a alma da rainha em seu corpo, mas ela começou a melhorar quase que imediatamente após sua finalização. 

Quem sabe a alma de Lana também não estava descolada?

Havia ainda, é claro, o seu irmão mais velho. Oslo era filho da primeira esposa de seu pai e teria sido o herdeiro do trono no lugar dela. Era uma criança abençoada, e desde muito novo havia mostrado fortes sinais de seu espírito de liderança. Era espirituoso e muito inteligente, tanto que Lana só guardava dele as melhores lembranças. A pele corada, o manto azul oscilando sob o sol... Oslo nunca ficava doente. Nunca. Mesmo assim, um dia ele caiu de cama. Todos os sintomas apontavam para cólera e nenhuma tentativa de cura foi eficiente, mesmo as místicas. A família real teve que lidar com o fato de que seu herdeiro padecia, então Lana começou a ser tratada de uma forma diferente. No auge de seus sete anos de idade, era muito complicado entender o significado daquilo tudo. Apesar disso, seu coração se partiu quando o menino finalmente morreu. Os terríveis uivos de dor de seu pai ainda ecoavam em seus ouvidos e naquela noite, pela primeira vez em sua vida, Lana acreditou que o castelo era mesmo lar de fantasmas.

O Despertar da FênixOnde as histórias ganham vida. Descobre agora