Capítulo 1

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O céu nublado caía sobre a mais bela cidade do norte. A famosa invicta. O trânsito preenche as grandes estradas, as passadeiras pisadas por milhares e o vento empurra a esperança pela mudança. Os autocarros lotados pela guerra dos lugares, entre jovens e idosos, onde o calão libertado é poesia cultural. Uns apelam à sensibilidade pelos mais velhos, chamando-lhe de respeito. Outros, erguem os braços expressivos, dizendo que a nova geração lhes pertence, chamando-lhe de outros tempos. É conhecido por ser um lugar acolhedor para com os simpáticos visitantes mas desafiante para os que lá vivem. Todos os dias uma rotina de emoção se instala e não há quem se farte de lá estar. Aos olhos do mundo é esta a descrição, mas para Lara era bem mais simples. Tinha na sua cabeça uma única palavra: Porto.

Um novo ano acabava de se iniciar. Tinham passado essencialmente três dias desde o som da décima segunda badalada. Ouviu muitas promessas a serem feitas e deu por si, sozinha, na sua aconchegante cama, a pensar nas promessas que não foi capaz de cumprir. Preocupou-se apenas em entrar em 2017 de forma positiva, mas nem imaginava as voltas que a esperavam.
Levantou-se confiante e dirigiu-se à casa de banho que partilhava com Maria, a sua melhor amiga. Colocou a mão na maçaneta da porta branca, rodou e nada mudou. Estava trancada por dentro.
― Maria, despacha-te!
Do outro lado, ouviu uma música pop em volume elevado e uma voz esganiçada fora de tempo.
― Maria, juro que vou arrombar a porta!
― Estou mesmo quase!
― Porque raio trancaste a porta?
Num ápice, Maria abriu a porta repentinamente.
― É toda tua.
Lara confrontou-a com os olhos, irritando-se com o sorrisinho malicioso que a amiga expressava. Lamentou a situação com a cabeça. Apressada, entrou na casa de banho. Colocou-se à frente do lavatório, preparando-se para o grande dia. O dia que tanto esperava. Quando de repente, por trás do azul turquesa das cortinas corridas da banheira, ouviu alguém a falar.
― Desculpa, podes chegar-me a toalha?
Lara já sabia do que se tratava. Sem paciência, não respondeu. Permaneceu em silêncio, torturando quem a esperava do outro lado. Abriu a porta e gritou com ironia.
― Maria, esqueceste-te aqui do teu brinquedo!
― Deixei-o para ti!
― Anda cá buscá-lo!
Ordenou Lara, chateada com a situação. Furiosa, olhou para a cortina e correu-a sem misericórdia. Fazendo o homem perfeitamente definido saltar com o susto.
― Sou o ...
A tentativa de se explicar a Lara fez com que ela revirasse os olhos de julgamento.
― Sim, sim. Muito prazer. Toma a toalha. Agora sai da casa de banho, se fizeres o favor.
O homem baixou o olhar escuro para os seus pés. Estendeu a mão para pegar na toalha, deixando a mão direita a proteger o prazer que Lara não queria ver.
― Peço imensa desculpa ...
― Disse o Senhor Esquerdino.
Corado, enrolou a toalha à cintura, colou o olhar no chão e saiu da banheira com uma postura desanimada. Os chinelos arrastavam pelo chão enquanto se dirigia para o quarto da amiga, lamentando ter saído de lá. Lara bateu a porta com força e deixou o som da rádio tomar conta de si.

*

Lara e Maria atiraram-se para dentro do armário à procura do melhor conjunto possível para o grande dia. Experimentaram conjuntos a fio, sem pausas, sem descanso, e nada teve o agrado das duas. Quase a render-se ao desespero, Lara pegou numa peça que adorava e vestiu-a com rapidez. Um vestido preto sem silhueta. Os ombros pareciam demasiado pequenos para o manto que acabara de vestir. O peito desapareceu, tornando-a numa miúda de liceu. As pernas tornaram-se curtas e grossas, tirando-lhe quase dez centímetros de altura. Sem formas reveladas, Lara não passava de uma simples mulher numa entrevista de emprego. Olhou para Maria mas esta não se deixou conter, soltou gargalhadas até lhe doer a barriga, confrontando-a com a realidade.
― Vais conquistar o mundo assim nesses trajes? É assim que queres aparecer para o derradeiro início da tua vida?
― Eu visto-me assim todos os dias Maria ...
― Eu sei e devo-te dizer que vais ser aceite num convento de freiras. Parabéns, irmã!
― Maria ...
― É verdade, amiga. Desculpa, mas não te posso deixar ir assim. Tens de ir a bombar! Espera aqui.
Lara sentou-se na cama, ainda com os lençóis quentes e desajeitados. A vontade de regressar ao mundo dos sonhos começava a ganhar poder mas sabia que o dia seguinte seria o grande dia. Encostou-se para trás, fechou os olhos e deixou o pensamento voar para os possíveis cenários que poderiam acontecer na entrevista quando, de repente, foi interrompida pelos trambolhões de Maria carregada de peças de roupa que Lara nunca imaginou ter no seu corpo.
― Deixa passar Lara! Preciso de espaço aí na cama!
Com pronta agilidade e destreza feminina, Maria conseguiu selecionar do monte de roupa uma blusa branca de cetim de manga comprida, umas calças clássicas pretas justas, juntamente com um blazer do mesmo tom e um salto alto vermelho de dez centímetros com a frente pontiaguda.
― Veste isto!
Lara olhou uma vez mais para a amiga e sem se questionar, vestiu. A expressão de Maria gritava sucesso, transformou a dita "freira" numa mulher de negócios.
Uau! Isto sim. É isto que se quer! Agora vejo uma advogada. Ninguém te vai parar!
A senhora advogada queria ver o que a amiga lhe descrevia. Dirigiu-se ao espelho alto no canto do seu quarto, olhou para o reflexo que não parecia o dela e algo aconteceu no seu interior. A confiança ergueu trinta metros e o sorriso rasgou todas as paredes que a tentavam conter. Aquele momento revelou-lhe uma determinação de mil mulheres. Sentiu-se poderosa num ritmo que ninguém conseguia acompanhar. Nada alterou na forma como se olhava ao espelho. A sua beleza permaneceu igual aos seus olhos, mas por dentro a imagem que via era outra. Vislumbrou uma mulher que conseguiria contagiar todos aqueles que se chegassem perto. Uma mulher que vivia com extrema intensidade e transbordava paixão pela sua vida, uma mulher que procurava desafios e conquistava cada um deles. Lara estudou para provar que era capaz de alcançar a sua independência e, apesar de ainda não o ser naquele momento, viu-se como tal. Não foi fácil terminar o curso de direito, muito menos com tão boa nota, e naquela noite teve a certeza de que aquele seria o último dia como estagiária. O cargo seria seu, e Lara sabia-o com uma inexplicável certeza.

AINDA NÃO É DESTAOnde as histórias ganham vida. Descobre agora