A moça

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    Ela andava apressadamente em direção à janela. Quem era ela? Não faço ideia. Um segundo atrás eu estava sozinho em casa, no sofá, triste e solitário. Ela surgiu assim, um corre corre, nunca sei pra onde vai nem de onde veio. Sempre bem vestida. Sempre secreta. E eu sempre indiferente.

    Porque não me importa nada disso. Não importa o porque ela corre. Onde ela iria com aquelas roupas tão elegantes sem mim. Mal sei quem ela é. Ela só existe. Eu a assisto. Ela não me assiste. Talvez ela nem note minha existência.

   Nós dividimos um teto. Ela tem a própria comida, toda diferente, meio esquisita. Eu tenho a minha, comida normal de pobre.

    É como se eu ainda estivesse sozinho, mas eu vejo ela todos os dias. Ela tá sempre aqui. Eu não direciono uma palavra sequer à ela. Eu achava que era porque simplesmente não me importava. Não era isso, eu me importo muito. Eu tenho medo. Tenho medo de ela perceber que não deveria estar aqui. De ela perceber minha existência e fugir, correr como sempre, mas nunca voltar. Então eu fico em silêncio.

    E me dói ela não se importar. Porque ela não me pergunta algo? Ela não me vê? Ela não sente minha presença? Não me ouve murmurar músicas que ouvi em algum comercial inconveniente? Ela não vê minha bagunça pela casa? Não vê meus pratos sujos na pia? Não ouve meus passos?  

    Talvez ela tema o mesmo que eu. Talvez tudo isso tenha passado pela cabeça dela também. Talvez ela não ligue. Afinal, ela tem tanta vida. Tem sempre um lugar pra ir. Eu não tenho, eu tô sempre aqui. É claro, eu trabalho, eu tenho família, tenho amigos. Mas eu sempre volto pra cá, pra ver ela viver. Ver a vida dela é melhor do que viver a minha. Eu moro com ela, mas não vivo com ela. Minha vida é só minha, mas eu nunca tô sozinho. Ela sempre volta no final da noite. E de manhã tá aqui. 

    Ela é minha única companhia, mas ela não me acompanha. 

    Teve um dia, uns anos atrás, que minha mãe veio me ver e entusiasmada me perguntou quem era a moça. Eu disse que não fazia ideia. Ela teve a reação normal, ficou indignada, achou que eu tava brincando. E foi nesse dia, que ouvi a voz da moça pela primeira vez.

   Minha mãe andou delicadamente até ela: 

    "Com licença, você conhece meu filho?" Ela apontou pra mim, do outro lado da minha sala de estar. A moça sorriu e assentiu: 

    "Sim, ele já tava aqui quando cheguei" Era a voz mais doce que já ouvi. 

   Minha mãe só sorriu, e aceitou. Acho que ela também teve medo. Medo que eu ficasse sozinho. Então ela deixou a moça ficar. 

   Depois disso, ela se abriu mais. Um dia cheguei em casa e ouvi a mais terna melodia em violino. Ela tocava sem me notar. Eu parei e a observei. Delicada, mas as vezes severa. Ao final da música ela apenas se levantou e foi dormir. Sem uma palavra, nem um sorriso.

   Assim os dias se passavam com a minha moça. Sim, agora ela era minha. Ela sabia que eu estava ali, e ficou. Eu não a incomodava. Era quase como se eu nem existisse, mas ela sabia que eu existia. Agora eu sabia que eu existia.

   Um dia ela tocou meu ombro, pra que eu abrisse espaço pra ela passar pelo corredor. Em outro eu posso jurar que ela me deu bom dia. Teve até um em que ela dobrou meu cobertor. Era como se eu existisse cada vez mais. Um dia ela me sorriu o sorriso mais gostoso.

    Aos poucos, eu começava a ser parte da vida dela, não só ela da minha. E notei rapidamente que a cada dia que isso aumentava, menos eu gostava da vida dela. Eu era a pior parte dela, e parecia que cada vez mais eu crescia nela, virava uma parte maior. Ela me contava tudo o que fez. Eu contava tudo que fiz a ela. Eu sabia tudo sobre ela, ela sobre mim. Não tinha mais segredo. Ela era minha vida e eu era a dela. Eu era chato. Ela era chata. Eu era sozinho.

   Um dia mandei ela embora. Não quis ser cruel, mas ela me lembrava de mim, e isso doía. Ela pareceu entender, e foi embora. E era igual.

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