Capítulo Seis

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Já passara muito do meio-dia quando ele despertou. Seu criado havia deslizado várias vezes para dentro do quarto, na ponta dos pés, para ver se ele estava levantando e se perguntava o que fizera seu jovem patrão dormir até tarde. Finalmente sua campainha soou e Victor entrou suavemente com uma xícara de chá e uma pilha de cartas, em uma pequena bandeja de velha porcelana Sèvres, e abriu as cortinas de cetim oliva, com seu cintilante forro azul, que pendia defronte a três altas janelas.

“Monsieur esteve dormindo por toda a manhã”, ele disse, sorridente.

“Que horas são, Victor?”, perguntou Dorian Gray, sonolento.

“Uma e quinze, monsieur”.

Como era tarde! Ele se levantou e, tendo bebido um pouco de chá, voltou-se para as suas cartas. Uma delas era de lorde Henry e fora entregue em mãos naquela manhã. Ele hesitou por um momento e então a deixou de lado. Ele abriu as outras indiferentemente. Continham a habitual coleção de cartões, convites para jantar, ingressos para vernissages, programas para concertos de caridade e similares, despejados em elegantes e jovens rapazes a cada manhã durante a estação. Havia uma conta bem salgada, de um conjunto para banho Louis XV de prata, gravado em relevo, que ele ainda não tivera a coragem de enviar para os seus guardiões, que eram pessoas extremamente antiquadas e não entendiam que vivemos em uma época onde apenas as coisas supérfluas nos são extremamente necessárias; e havia várias mensagens em tom muito cordial dos financistas de Jermyn Street oferecendo o adiantamento de qualquer soma de dinheiro a qualquer momento e com as mais razoáveis taxas de juros.

Depois de quase dez minutos ele se levantou e, vestindo um elaborado roupão, passou para o banheiro de piso de ônix. A água fria o refrescou depois de um longo sono. Ele parecia ter se esquecido de tudo o que passara. Um vago senso de ter tomado parte de alguma estranha tragédia lhe ocorreu uma ou duas vezes, mas era a irrealidade de um sonho tudo aquilo.

Assim que terminou de se vestir, foi até a biblioteca e sentou-se para um leve desjejum francês, que fora disposto para ele em uma pequena mesa circular próxima de uma janela aberta. Era um belo dia. O ar cálido parecia carregar temperos. Uma abelha voou adentro, zumbindo ao redor de uma cesta azul no formato de dragão, cheia de rosas amarelo-enxofre, que estava à frente dele. Ele se sentia perfeitamente feliz.

De repente, seus olhos pousaram sobre a tela que ele colocara defronte ao retrato e se assustou.

“Muito frio para o Monsieur?”, perguntou seu criado, colocando uma omelete sobre a mesa. “Devo fechar a janela?”

Dorian balançou sua cabeça. “Não estou com frio”, ele murmurou.

Era então verdade? O retrato tinha mesmo mudado? Ou era simplesmente a sua própria imaginação que o fizera ver um ar diabólico onde havia um tom de alegria? De fato uma tela pintada não poderia mudar? A coisa era absurda. Serviria como uma história para contar a Basil algum dia. Aquilo o faria sorrir.

E, ainda, como era vívida sua lembrança de tudo aquilo! Primeiro, à débil luz do alvorecer e então, na brilhante aurora, ele vira o toque de crueldade em seus lábios curvados. Ele quase temeu que seu criado abandonasse a sala. Ele sabia que, quando estivesse só, teria de examinar o retrato. Ele estava com medo da certeza. Quando o café e os cigarros foram trazidos, e o criado se virou para sair, ele sentiu um louco desejo de pedir para que ficasse. Assim que a porta se fechou atrás de si, ele o chamou de volta. O homem ficou esperando pelas suas ordens. Dorian olhou para ele por um momento. “Não estou em casa para ninguém, Victor”, ele disse com um suspiro. O homem se inclinou e saiu.

Ele ergueu-se da mesa, acendeu um cigarro e se jogou em um sofá luxuosamente almofadado que ficava em frente à tela. A tela era feita com um velho couro espanhol dourado, estampado e trabalhado com um padrão Louis XIV bem florido. Ele a observou curiosamente, se perguntando se a tela já cobrira o segredo da vida de um homem alguma vez.

O Retrato De Dorian GrayOù les histoires vivent. Découvrez maintenant