O tempo recalculou tudo de novo.  Geralmente, quando alguém escapava da morte, ganhava anos a mais. Meu chefe, tempo, podia ser generoso em casos muito específicos. Todavia, não foi isso que aconteceu com Kelly. O cálculo de dias e anos não se refez, a data permaneceu, só a causa da morte mudou.

Kelly Vasconcelos, 27 anos, 31 de outubro de 2021, bala perdida.

— Ei, Lucas!

As Arlequinas riram e fizeram piadinhas entre si, afastando-se do garoto,

— Kelly?

— Quantas garotas convidou para essa festa? — Enraivecida, seu rosto corou.

— Pensei que não vinha.

— Vá pro inferno!

E saiu batendo os pés, ignorando as zombarias das outras. Uma música de batida contagiante começou a tocar, agitando os jovens.

— Espera!

Um homem. Um homem fantasiado de policial bradava um revólver de verdade durante a dança, brincando. Poderia parecer uma fantasia inocente, mas não era. Tratava-se de um policial de verdade, bêbado. Ela apontou a arma de maneira aleatória e levou o dedo ao gatilho, divertindo-se com os colegas ao redor, todos embriagados. Em poucos segundos a cabeça de Kelly estaria na mira do revólver, me preparei mais uma vez.

Antes dela pisar no local certo, Eloá surgiu entre as fantasias e arrancou a arma da mão do homem, dando-lhe um esporro.

Eu falhei. Aquela simples e melancólica humana fugiu de mim mais uma vez, escapou da morte.

Kelly Vasconcelos estava atrasada para morrer.

Enquanto ela saía pelo portão para o breu lá fora, o cálculo de seus dias se refez novamente. Tive certeza de que o tempo se daria por vencido, ninguém jamais me deu bolo duas vezes, ninguém jamais me deixou assim, me driblou. Mesmo quando as pessoas acham que fogem de mim, é só questão de tempo. Ninguém escapa da morte quando a hora chega, exceto aquela garota.

Kelly Vasconcelos, 27 anos, 31 de outubro de 2021, sufocamento.

O tempo não estava de brincadeira com ela. Sou funcionária dele desde sempre, e nunca foi tão insistente com uma pessoa e uma data. Há três séculos, quando o último homem fugiu de mim, o tempo lhe presenteou com mais 30 anos, agora isso não acontecia.

Kelly saiu para fora do espaço, a avenida estava movimentada naquela noite de Halloween, os carros voavam, casas com luzes acesas festejavam de forma particular. Antes dela atravessar, Lucas segurou seu braço com um sorriso sem graça no rosto, sem fantasia, ele só carregava uma máscara de lobisomem pelo elástico no braço.

— Vamos conversar, por favor!

— Não! — Kelly quase lhe deu um tapa, parando a mão em pleno ar. — Você foi até meu trabalho me convidar, e então quando cheguei estava com outras ao seu redor.

— Sim, mas não recebi nenhuma resposta sua mais cedo, lembra? — Ele levantou o dedo de forma ameaçadora na frente do nariz da moça. — Está me envergonhando na frente dos meus amigos, como uma namorada maluca e ciumenta.

— Eu não sou mais a sua...

Me preparei outra vez, as mãos de Lucas foram parar no pescoço de Kelly, apertando-a com força, ela quis gritar, mas não conseguiu fôlego o suficiente. Levou ela para trás do poste de luz, as pessoas que passavam não viam, ninguém notou.

Por partir de alguém que dentro de um ano morreria em uma briga por políticos, uma forma bem idiota de morrer, diga-se de passagem, não me admirou. Kelly virou a cabeça de repente para o lado, em um ato esperto e ardiloso mordeu sua mão até o sangue escorrer por seu queixo. Lucas gritou e se afastou dela.

— Vadia!

— Nunca mais toque em mim. Seu monstro, assassino!

Fiquei preocupada, e desta vez o cálculo foi refeito em milésimos de segundo.

Kelly Vasconcelos, 27 anos, 31 de outubro de 2021, atropelamento.

Ela simplesmente atravessou a avenida no sinal verde, a moto passou raspando por suas costas, e quando viu já estava do outro lado, viva.

Transpassada, chocada. Kelly era imortal. Tive mais medo dela do que ela de mim, vi quando seguiu cambaleando pela calçada da rua. Limpando o sangue da boca com a manga do vestido.

Ela era tão comum, só uma garota assalariada, normal. Por que o tempo insistia? Como fugiu? Seria uma futura ditadora ou inventora revolucionária? Kelly não podia ser tão perigosa a ponto do tempo não desistir dela.

Não apareceu mais nenhuma data, nem causa. O cálculo cessou. Pela primeira vez na história da vida na terra, uma criatura não tinha dia marcado para morrer.

Foi quando recebi uma ordem direta do tempo.

Pegue-a.

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