𝙲𝚊𝚙í𝚝𝚞𝚕𝚘 𝙸𝚇

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Noite vazava por através das janelas. Gavinhas de sombras e escuridão tecendo-se às linhas de luz conforme a madrugada ascendia e a música cantava e cantava e cantava, infindável e dourada, erguendo-se ardente e infinita em seu sangue e entrelaçando-se em seus ossos. 

Não existia fogo e chamas comparável aquela luz. Não havia cantos ou voz semelhantes àquela música. 

Mas então uma nota soara através da taverna. Brilhante, fluída, murmurante. Rasgando ar e luz e cor ao afundar-se em seu peito, ecoando em seu corpo e preenchendo suas veias, acomodando-se em seus pulmões e entrelaçando-se aos cantos de sua mente numa reivindicação pura, cedendo-a completamente. 

E então outra nota. E outra. E mais uma. Tecidas em aço e bronze, derramando-se sobre o piso da taverna e serpenteando até seus pés, guiando-a naquela dança de alegria e chamas até o canto escuro do bar, guardado por sombras e tingido em noite. 

O garoto engolido pela escuridão tecia música em seus dedos. Moldando notas e acordes e ruídos com o seu nome, a sua forma, uma sinfonia tão sua que ela podia preludiar a próxima corda, o próximo murmúrio. 

Ela nunca soubera cantar. Nunca pressionara-se para aprender, apenas assentara-se com o fato de que a irmã nascera com o dom da música e lidara com isso. 

Mas aquela melodia, aquela lírica era dela. Pertencia à ela, tanto quanto qualquer coisa que ela reivindicara com aquela vontade irretratável e determinação férrea. 

Era sua. Ela lhe reivindicara, e quando abrira os lábios para cantar sua harmonia, ela a reivindicara de volta. 

As mãos do garoto fluíram através das cordas, derramando aquela música sobre seus pés, presenteando-a conforme ela fluía e ondulava e erguia-se sobre as notas, inventando rimas e vasculhando palavras no quebrar das ondas de sua sinfonia, nadando tão fundo através dos sons que encontrara ali uma parte enraizada de seu coração, afundada profundamente sob aquela raiva e ódio, reluzindo através das águas sombrias como sua absolvição. Seu cerne, guardado e protegido pela sua tormenta. 

E quando as cordas deixaram de vibrar, a luz deixara de brilhar e seu coração deixara de ruir, ela apenas pôde olhar para o garoto nascido da música e suspirar. 

- É sua, se quiser. 

Ela praguejara e balbuciara antes de as palavras fazerem sentido em sua cabeça, onde antes apenas luz e cor formavam sua língua. 

- O quê?

- A música. Não tem nome, nem nada. Só escrevi quando não conseguia tirar a melodia da cabeça - ele puxara pedaços de papel da capa do violão abaixo da cadeira. Ou podia ser uma guitarra. Talvez um cavaquinho. - É sua, se você quiser. 

- Eu não sei tocar...alaúde? 

Seus olhos se fecharam quando ele sorriu. Fofo. 

- É um baixo. E desculpe, às vezes esqueço disso. 

- Se esquece de que nem todo mundo sabe tocar banjo? 

- Me esqueço de que nem todo mundo se alimenta de música - o couro rangera sob seus dedos uma vez que erguera a capa do instrumento, as cordas odiosamente estagnadas e caladas quando ele deslizou uma palheta sob o aço.- E é um baixo. 

- Não guarda, não! 

Ele apenas parara no lugar, o baixo à meio caminho de sua sepultura de couro e veludo. 

Mas ela não se importara se ele iria embora por cansaço ou dever ou prioridade quando arrastara-o até onde aquele grupo estranho e destoante de pessoas gritava e pulava em harmonia, entrelaçando braços e mãos e dedos como uma fita única de cor e luz sob o vento. Leve e fluída, guiada pelo ímpeto. 

- Toque, aqui. Agora. 

Ela ainda fizera questão de puxar uma cadeira e abrir novamente a capa para ele. Fizera questão de puxar um candeeiro mais próximo e roubar a cerveja amanteigada de alguém. 

Tudo por aquele vislumbre de sol novamente. Tudo por aquela música. 

Ela o assistira tomar um gole e acomodar-se sobre a cadeira, apoiar a baixo sob o braço e posicionar os dedos, tensa e ansiosa e impaciente conforme ele suspirava, assoprando aquela ordem de vida e calor às notas. 

E então elas surgiram, e seu corpo rugira novamente. Embolara-se em alegria e felicidade e antecipação, vibrando-a até que ela estivesse pulando e gritando e girando em torno de Ray e Darkwood e Yara e Natalia e Kaio e Dessa e tudo e todos da taverna, da cidade, do mundo, embalando-os naquela luz que ela sentia nas veias, no peito. 

E a música continuara a ascender e queimar e mesclar-se umas às outras conforme ele não permitia espaço para o silêncio, e ela só sabia cantar e cantar e cantar, as vozes ao seu redor crescendo um coro desarmônico e esquisito ao seu redor, mas que ela acolhera de coração aberto. 

E mesmo quando Darkwood deitara a cabeça sobre uma mesa e não erguera-a mais, mesmo quando Ray juntara duas cadeiras para se deitar, mesmo quando Yara e Natalia encostaram-se juntas sob a parede e descasaram sob os ombros uma da outra, mesmo quando Kaio jogara um braço sobre os olhos e deitara sobre uma mesa qualquer, mesmo quando Dessa recostara-se sobre as costas de um assento e fechara os olhos, ela continuara a cantar, e ele continuara a tocar. 

E no fim da noite, quando seus pés não aguentavam mais sustentá-la e quando sua voz não erguia-se mais tão alta, ele ainda tecera as notas baixinho para ela, até que ela encostasse a cabeça sob uma cadeira alta e fechasse os olhos. 

Quando ela acordara de manhã, um sol tênue e pálido derramando-se sob as janelas, ela desceu os olhos até o colo e viu partituras recheadas de símbolos que ela não entendia, pausas que ela não podia ler. 

Mas bem ao alto, escritos numa caligrafia rebuscada e apressada, ela podia ler domina ferrea sobre as notas. 

E bem abaixo de tudo, quase oculto por entre rabiscos e erros, um nome para o qual ela sempre seria grata. 

- Daniel Marchesi. 

𝔖𝔢𝔤𝔯𝔢𝔡𝔬𝔰 𝔡𝔢 𝔖𝔞𝔫𝔤𝔲𝔢 & 𝔖𝔦𝔫𝔞Where stories live. Discover now