𝙲𝚊𝚙í𝚝𝚞𝚕𝚘 𝚅

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Tudo nela doía. Da cabeça aos pés à carne e ossos, conforme as escadas de pedra espiralavam sob seus pés, ascendendo do coração das masmorras ao salão principal. Ela duvidava que pudesse comer mesmo que uma ervilha, mas precisava subir. Respirar ar que não fosse estagnado e velho.

Mas antes, ela precisava subir.

Os ossos do castelo eram gélidos abaixo de seus dedos, dormentes e antigos e ancestrais, vibrando com um poder centenário através de sua pele, incitando-a a subir, subir subir subir subir, até que seu sangue fervesse e os pulmões inchassem. Mas ela obedeceu, ouviu a pedra, subiu e se arrastou e escalou os degraus até que uma pequena portinhola de carvalho antigo engolisse a escuridão.

A porta se abriu num sussurro, como se estivesse esperando-a.

Mas não era o salão principal.

Árvores mortas e galhos decadentes curvavam-se ao seu encalço, terra fria e seca enroscando-se aos seus pés, raízes secas abraçando seus dedos conforme ela cambaleava através do bosque enquadrado por morte e esquecimento.

O vento cortava as copas das árvores num grunhido, um suspiro rascante e moribundo e sombrio, embalando-a numa canção de nomes antigos e rostos esquecidos. Mas era uma brisa viva, apesar de tudo. Feroz e selvagem e límpida, verdadeira através da podridão, e se enroscou através de seus pulmões com garras doces e amorosas.

- Eu não ficaria aí parada se fosse você.

A voz quase a fizera engasgar e vomitar no mesmo instante, mas ela engoliu a bile com força. Já estava cansada de pessoas espreitando por trás de suas costas.

Mas quando ela se virou, não era uma pessoa. Ou alguém, ou algo ou o quê.

Sentado às suas costas, havia um garoto de cachos escuros e pena em mãos, sentado com os olhos baixos para o caderno em suas pernas, despreocupado e confortável através da terra morta em seus pés.

E à frente dele, um corcel tecido de morte e sombras.

Ela cambaleou para trás, amassando e destruindo as raízes sob seus pés conforme se afastava daquilo, os olhos presos sob a escuridão infindável daquele olhar, a tempestade com cor de meia-noite que se remexia e revoltava através do sangue, abaixo dos ossos, sob a pele.

Ele empinou o focinho em sua direção, a crina de escuridão tecida caindo sobre pele morta e ossos alquebrados conforme ela se arrastava. Reconhecendo-a. Cumprimentando-a.

Ela apenas pôde fechar os olhos e esperar.

Um baque soara ao seu lado, e ela abrira os olhos para ver asas de ardósia abrirem-se antes do corcel atacar o pedaço de carne atirado ao seu lado. Ela o observara, trêmula e assustada e estagnada.

- Ela não vai te machucar.

Ela torceu o pescoço por um instante, um ínfimo segundo onde o garoto levantara os olhos para ela e assentira. Ela não ousou se mover conforme o corcel trotou até ele, cutucando os cachos, as mãos do garoto em busca de mais.

- Como sabe disso? - ela levantou-se, trêmula, limpando a terra das calças com dedos gélidos.

Ele apenas olhara para ela, indicando com a pena de ponta fina a criatura mastigando seu cabelo, as orelhas caídas como em deleite. Ela não pôde evitar sorrir.

- O que ele é? - ela não ousou se aproximar. Apenas observou de longe, admirada.

- Um testrálio. E é ela.

O garoto esticou à mão até a bolsa em seu lado, retirando um pedaço de carne crua antes de atirar à ela.

Ela odiava ter reflexos rápidos. O pedaço de carne chocou-se contra sua mão, fria, gelada, gosmenta. A bile ameaçou subir novamente.

O testrálio voou em sua direção, pulando sobre as patas traseiras com o focinho apontando o pedaço de carne, ansiosa e faminta e alegre, como se embriagada pela satisfação. Bruna apenas pôde estender a carne bem longe do rosto e deixar que o bicho levasse parte de sua mão junto.

Mas ela não o fez. Apenas abocanhara a carne com a ponta dos dentes, devagar e hesitante e cuidadosa, como se sentisse o cheiro de seu medo e não quisesse assustá-la. Ela sorriu novamente.

A testrálio ergueu o rosto à ela, e ela pôde notar a beleza sepulcral intrínseca no ângulo dos ossos espreitando a pele negra, semimorta, a escuridão absoluta dos olhos e a imensidão das assas, encobrindo sombras e trevas e vento.

Ela estendeu uma mão, trêmula, hesitante, bem longe de seu corpo. A criatura pareceu compreender e abaixou as orelhas até seus dedos, esfregando o focinho em sua palma. A pele parecia quente sob sua mão, viva, apesar da morte que a espreitava.

Fascinante.

- Como ninguém a domesticou ainda? - ela acariciava a crina negra sob seus dedos, ondulando como fitas de ar na escuridão.

- Não são todos que podem vê-la. Apenas aqueles que viram a morte de perto.

Ah, fora tudo que preenchera sua mente. Ah.

- E mesmo que pudessem, estamos na floresta proibida. Não têm permissão de estar aqui.

Seus dedos travaram sobre a pele da testrálio, um pequeno suspiro de irritação ondulando de seu nariz.

- Estamos na floresta proibida?

O garoto apenas assentiu, os olhos ainda colados no caderno em seu colo.

- Uhum.

- Não devíamos estar aqui.

- U-hum.

- Por que você está aqui?

Seus olhos ascenderam até ela, um tom de imensidade oculta e intensidade ondulante afundando-a naquele olhar. Como uma pedra de jade afogada pelas águas dormentes no inverno.

- Gosto de ver a vida neste castelo. Observá-la. Existe muito mais do que pedra e feitiços aqui.

Ela concordou. Havia, de fato, uma presença constante em Hogwarts. Uma vida que respirava através da pedra, além da rocha.

Ela assentiu em silêncio, ainda acariciando o focinho da testrálio.

- Meu nome é Bruna.

Ela pôde ver os olhos do garoto ascendendo do papel através da escuridão infindável nos olhos do corcel.

- Kaio. Severo.

Severo, como a garota em seu dormitório. Deviam ser parentes.

Os dois mantiveram-se em silêncio, apesar de sentir a atenção do garoto fulminando suas costas. Após um instante, ela disparou.

- Vou chamá-la de Docinho.

O garoto apenas sorriu, rabiscando algo em seu caderno antes de se levantar e ir em direção à ela.

Ela aceitou o pedaço de papel dobrado, e então assistiu-o ir embora, atravessando a mesma porta coberta pelas sombras da qual ela viera. Apenas quando o som de seus passos foram engolidos pela escuridão, ela olhou para o papel.

Seu rosto era feito de luz e beleza sóbrias através de seus traços, agraciados por um sol pálido cortando as copas das árvores, cintilando sobre a pele negra da testrálio sob seus braços numa profusão de vida e luz e morte e sombras, ambas entrelaçando-se sob o testemunho do bosque e da terra como joias de uma existência além de sua pele e ossos.

E então uma palavra rasurada acima, grafada e enquadrada como uma sentença.

Docinho.

𝔖𝔢𝔤𝔯𝔢𝔡𝔬𝔰 𝔡𝔢 𝔖𝔞𝔫𝔤𝔲𝔢 & 𝔖𝔦𝔫𝔞Where stories live. Discover now