CAPÍTULO UM

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Ninguém vai se preocupar, se notarem que eu parti
Eles não saberão que estou ausente
Até me puxarem para fora do místico
(the mystic - adam jensen)

MEARA –

Abro os olhos no mesmo momento que o som de um trovão corta os céus. E eu estou caindo. Consigo sentir a queda, a densidade do ar sendo cortado pelo meu corpo enquanto continuo no ritmo rápido para baixo e sei que não há nada em que eu possa me segurar para evitá-la.

Meus cabelos chicoteam contra meu rosto, as roupas grudam em meu corpo, o vento sendo ritmamente cortado e o céu acima me observa durante o voo.

Eu não consigo me lembrar de como eu cai, ou porque eu continuo em queda livre pelo que parece se arrastar por horas. Eu não me recordo de muito além de estar fugindo dos soldados de Vellamo após libertar Cain de uma execução em meu nome. Me recordo de roubar um dos cavalos da guarda e usa-lo para atrai-los para longe da multidão que aguardava ansiosa pelo enforcamento do macho que havia me salvado inúmeras vezes, meu amigo, a única criatura em Vellamo que me acolheu quando eu estava passando fome e frio e perigo nas ruas da Cidade do Comércio, e que havia sido preso por minha causa, e condenado em meu lugar.

Lembro de ter atirado uma flecha contra a corda suspensa que segurava seu pescoço, seguida de mais três contra o carrasco e o capitão da guarda. Lembro de fugir pela rota diferente em direção à Floresta Negra porque sabia que ninguém se atreveria a ir até lá por causa das lendas. Mas por Neeha, eu estava enganada nesse maldito dia. Os desgraçados realmente pareceram não se importar com as histórias sobre a floresta amaldiçoada enquanto me seguiram pela clareira que se estendia antes dos corpos enegrecidos, densos e retorcidas das árvores e atiravam flechas em meu cavalo, derrubando-me abaixo dele.

Foi quando tudo se tornou confuso. Uma confusão de cascos batendo ao redor, quando o céu se tornou tão escuro quanto a imensidão do Mar de Sangue e o barulho ensurdecedor dos trovões se fez presente. A nuvem de poeira densa desceu e tornou a subir e logo em seguida tudo era um completo nada e eu estava caindo nele.

Fecho meus olhos enquanto meu corpo despenca pela imensidão. Eu ouço algo, o som doce de um canto, quente e agradável e meu corpo parece se embolar nele e se deixa guiar pelas palavras que eu luto para tentar entender em meio ao torpor que se abate em minha mente, mas eu não consigo.

Minhas costas doem. O peso é insuportável, o vento cortando através é como milhares de pequenas facas cortando através da pele e eu apenas espero que meu corpo caia contra a terra firme e tudo isso pare. A voz soa mais alta contra as paredes do escudo em minha cabeça e então eu abro meus olhos para a procissão acima.

Centenas, se não milhares de estrelas brilhantes caem ao meu redor sob o céu escurecido. Rodopiando como se dançassem sobre o tapete negro, o silvo baixo das quedas como uma canção.

Algo me puxa para baixo e continua puxando pelas minhas costelas, uma força invisível me empurrando para longe enquanto eu sinto que estou caindo em câmera lenta cada vez mais que me aproximo do chão entre o espaço vazio de uma clareira. As copas das árvores de tom acobreado vivido amortece minha queda quando me choco contra elas antes do meu corpo despenscar no chão de folhas da mesma cor. Grito quando sinto o corte em meu estômago e o ruído de algo quebrando.

A sensação em minhas costelas se vai, junto com a canção suave, a voz e a procissão de estrelas  em queda acima de mim. Tudo desaparece quando o torpor ao redor da minha mente se sobressai e eu me permito deixar ser levada pela escuridão, dor e cansaço.

Fecho os olhos e um par de olhos âmbar avermelhados me recebem do outro lado.

🍁🍁🍁

Abrir os olhos foi doloroso. Mover meu corpo ainda mais quando os raios solares invadiram através das minhas pálpebras e eu tentei manter-me sentada. Meu estômago dói, a fisgada excruciante subindo através da ferida aberta com sangue seco grudado no tecido da armadura — se é que o trapo velho que um dia pertenceu a Cain poderia ser chamado disso. Meu tornozelo esquerdo reclama com outra fisgada dolorosa quando eu tento mover o corpo para uma posição que eu possa ver melhor a ferida em meu estômago.

Trinco os dentes com força para a dor acumulada e olho ao redor, questionando onde diabos eu estava. Tudo parecia brilhante. Como pedras preciosas lapidadas ao seu brilho extremo; desde as copas das árvores em tons bonitos de vermelho vivido ao laranja queimado das folhas secas no chão. O cheiro era diferente, mais forte que qualquer outro e até o ar parecia mais limpo. Era uma certeza inegável: eu não estava em nenhum local de Vellamo. A pergunta entretanto, era onde eu estava.

Minhas têmporas doem quando eu tento forçar-me a lembrar de algo além de estar despencando no vazio, embora seja um esforço inútil. Ignorando a dor quente se alastrando pela minha perna através do meu tornozelo torcido, movo meu corpo para sentar-me contra a base da pedra as minhas costas, decidindo que preciso me concentrar na ferida aberta em minha barriga, antes que eu morra com uma hemorragia. Puxo uma das luvas negras com os dentes, antes de mover a bainha da camisa negra ensopada e grudada para  longe da pele machucada, arfando quando o tecido repuxou ao redor com sangue seco.

Respiro fundo. O corte foi profundo e eu consigo ver a ponta de algo completamente enfiado contra a carne, provavelmente um galho de uma das árvores que eu havia batido ao cair. Puxo uma nova respiração trêmula e enrolo os dedos contra a ponta exposta. Aperto a mandíbula firmemente para segurar o grito que sobe pela minha garganta quando eu puxo para fora  sangue fluindo quente através da ferida aberta. Engulo em seco pressionando a ferida com a plama da mão, orando a Neeha que eu ainda tivesse alguma magia para conseguir parar o sangramento, e torcendo para nenhum animal tenha farejado o cheiro de sangue fresco através da floresta.

Meus dentes doem devido a pressão do aperto em minha mandíbula, enquanto pressiono o corte e reúno a pouca magia que me resta contra a palma apertando a ferida. O grito de dor me escapa enquanto eu sinto o calor se alastrar pela carne, suturando o que eu consigo do ferimento até ter forças o suficiente para fecha-lo completamente depois. 

O foco se vai dos meus olhos e a dor me entorpece novamente.

Pisco com força.

Você não pode desmaiar. Não aqui! Encontre algum local seguro e depois desmaie, Inferno!

Engulo a dor que corta minha perna quando eu seguro e me arrasto para cima, apoiando o corpo contra a pedra grande quando ele cai. Olho ao redor novamente, tudo parecendo queito demais, brilhante demais. O cheiro do meu sangue se misturando ao de terra molhada, carvalho, frutas e folhas secas. Minhas costas doem tão insuportavelmente quanto meu tornozelo, o peso delas fazendo-me chiar quando me arrasto para longe da clareira a procura que qualquer buraco que eu pudesse passar a noite.

Avisto meu arco caído no centro do lugar, minha espada de aço valquírio não muito longe, mas não avisto nenhuma das flechas. Meu tornozelo reclama com o peso do meu corpo enquanto me arrasto para cima de um declive, o sopé de uma montanha revelando uma caverna a qual eu torço para não conter nenhum animal. Agradeço a Neeha pelas preces ouvidas quando não encontro nenhuma ameaça no buraco para dentro da pedra quando eu me encolho novamente. A dor finalmente me levando e tomando minha visão novamente quando eu caio em escuridão.

Corte de Almas e ChamasWhere stories live. Discover now