equinócio

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Pimentel acordou devido a um gosto amargo na boca. Achou que ia vomitar algo e correu para o banheiro. Nada. Apenas aquela sensação ácida e azeda no fim da língua. Onde a escova de dente não alcança. Ele olhou para o sabonete na pia e pensou em fazer aquele gargarejo nojento mais uma vez. Decidiu por uma bala de hortelã e abriu uma gaveta que ficava debaixo da pia. Ajudava, aliviava, e já era quase uma refeição. Perfeito. O melhor jeito de começar aquele domingo.

Olhou pela janela, e apesar do sol claro, uma desculpa impalpável de que "a sua cara estava melhor do que o céu, então era melhor nem sair de casa", surgiu do nada na sua cabeça. Era um pensamento tão sem fundamento claro, que nem mesmo ele quis dar atenção.

Andou até o quarto, e não viu sentido em tentar dormir de novo. A sala era escura demais, e por mais que gostaria de ser um adolescente dramático e dark, ele já não tinha idade pra isso, e precisava de um pouco de sol. Mesmo que filtrado pelos vidros engordurados da cozinha.

Ao se sentar à mesa, agradeceu mentalmente por ser uma pessoa limpa. Seria um ótimo clichê ter uma louça suja, ou pacotes de comida congelada, espalhados pelo lugar. Mas para isso era necessário comer. "Tudo tem seu lado bom, não é mesmo?". "Até mesmo um espelho..."

Ele ainda tentou continuar a frase. Imaginava que sairia algo bom dali, uma tirada genial, uma fala ótima num filme perfeito. Seu sonho.

"Qual o lado bom do espelho?"

"Antigamente um espelho era um pedaço de vidro com uma camada de uma espécie de tinta feita de prata, atrás. Será que ainda é assim?"

"Se for, o lado bom do espelho é o lado que tem valor..."

Queria ter continuado a pensar no assunto, mas logo uma lembrança invadiu a sua mente, sem pedir licença e tomando todo o espaço disponível:

Ele estava andando numa avenida, no centro da cidade, e viu um mendigo de longe, que parecia dizer algo para alguém. Como havia um fluxo razoável de pessoas, ele conseguiu ouvir melhor antes de ver tudo o que estava acontecendo. O mendigo estava dizendo alto, quase gritando, coisas como: "Eu te amo! Mas eu te odeio! Porque você faz isso comigo? Eu te amo tanto. Eu beijo os teus pés, beijo o teu chão. E você faz isso comigo? Eu te odeio! Te odeio sua maldita! Te odeio! Você não reconhece meu valor! Mas eu te amo! Te amo tanto que não consigo ir embora!..."

Quando Pimentel se aproximou, esperava ver um casal de sujos e esfarrapados. Mas não. Era só um homem, falando para um espelho. Achando graça e se lembrando de como os doidos eram importantes para as comunidades antigas, quando as cidades eram menores, Pimentel continuou o seu caminho sem deixar de olhar para aquela cena.

E quando passou na frente do homem, viu que o espelho não estava virado para o mendigo, mas para a cidade. Pimentel passou na frente daquele ser sujo que dizia palavras de amor e reflexões de ódio, e se viu refletido no espelho. Não só ele, mas todos os que passavam ao seu lado. E os carros atrás dele. E os prédios do outro lado da rua.

O mendigo. Aquele homem sujo, com menos dentes do que o necessário, estava gritando os seus sentimentos para a cidade inteira.

Pimentel sentiu o peito doer e diminuiu sem saber porquê, a velocidade, que já era lenta, dos seus passos, e não conseguiu tirar os olhos para aquela cena.

Aquilo era uma performance, era um ato filosófico, era a poética da vida se manifestando a céu aberto, e para todos.

E tudo que é para todos, é para ninguém em especial, então ninguém o via.

Aquele ato, para Pimentel, era como uma ferida aberta, algo criado para doer. Assim como a dor é algo para gerar atenção, e assim manter o organismo a salvo. Tudo o que dói, é para não morrer.

Mau SúbitoWhere stories live. Discover now