O ANO DO PORCO

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Eram quase nove horas da manhã, quando Min estacionou o carro que tinha os bancos mais confortáveis que pôde encontrar disponível na delegacia. Como se estivessem combinado o horário, Pimentel apareceu na porta do seu prédio. Min se surpreendeu com essa sincronicidade, sabia quer era um dos segredos que o inspetor possuía, um dos seus truques criados para impressionar, e que não iria revelar.

Estava de camisa nova, banho tomado, uma cor boa na cara, barba feita, e uma gravata que Min não poderia afirmar se já tinha visto ou não. É... realmente ele precisava melhorar muito ainda.

– Bom dia, senhor. O senhor prefere ir ao necrotério ou...

– Vamos para a Paulicéia primeiro. Se tivermos sorte, não precisaremos voltar tão cedo para aquele lugar horrível.

E pensando de qual lugar horrível ele estaria falando, Min deu a partida. Não havia muita diferença entre os dois.

Enquanto dirigia, pensou que talvez não houvesse mais motivos para ficar esperando alguma manifestação; afinal nunca haviam ficado tanto tempo sem se verem, desde que se conheceram. Então, quebrando a regra não verbalizada de não puxar assunto – o que era um dos maiores charmes que ele possuía, segundo Pimentel – Min perguntou:

– De qual lugar horrível o senhor está falando?

Pimentel olhou para seu motorista com um imperceptível microgesto de decepção em uma pálpebra, e após dois segundos, ou menos, respondeu:

– Faz diferença?

O inspetor nunca havia respondido uma pergunta com outra pergunta. Sim. Alguma coisa havia mudado. O melhor que Min poderia fazer era aprender pelo exemplo, e se manter calado.

Foi isso que ele fez.

A pedido do inspetor, entraram no bairro "por baixo", ou seja, seguindo o fluxo dos carros que se aproximavam pelo caminho mais próximo a Avenida Anchieta. Pimentel pediu para que Min dirigisse tranquilamente por entre as paralelas daquele lugar. Constatou algo que já sabia, mas que não havia se atentado: não havia pracinhas nas grandes ruas paralelas, apenas nas transversais. Ou, no máximo, em alguns cruzamentos. Mas eram poucas: duas. E nas duas ele havia encontrado Khali.

Sim. Khali. A gente precisa chamar nossos demônios pelo nome, para sabermos como lidar com eles.

Quem mais ele havia conhecido? Tosca. Que também era uma vítima. Um exemplo do que a maldade humana pode provocar. Um estandarte. E aquele que ele chamava com nomes de montanhas aleatórias; apesar de manter a ideia fixa de algo havaiano, para variar, ele o nomeia hoje como: "Kilimanjaro".

Kilimanjaro... engraçado. A montanha mais alta do continente africano. Aquela que deu o mesmo nome a dois filmes que não tinham nada a ver um com outro. Um deles ele assistiu acompanhado. Tanto o filme quanto ele julgavam todos os personagens. Ambos, a película e o espectador tinham profundas opiniões sobre cada uma daquelas palavras, ações e atitudes. Ela não. Ela só comentou que o livro era melhor. Mas também que era outra história. Só haviam usado o título, e ela não entendia o porquê.

Depois do cinema, uma das poucas vezes que ele se permitiu compartilhar a existência dela com o mundo, ela disse algo ainda sobre "não perder tempo com perguntas sem respostas..." algo assim, que no outro filme, que não era original a obra, "a fixação levava sempre o homem a ruína".

"Obrigado". Ele disse baixinho, para ela. Por não permitir que ele se perdesse no fanatismo de qualquer coisa. Pimentel percebeu, rodando sobre aquele asfalto desvairado, que aquele caso era uma excelente situação para tornar qualquer um, maníaco. Como naquele filme que o policial faz uma promessa e fica doidinho tentando cumprir, e passa o resto da vida buscando um criminoso que já estava morto.

Mau SúbitoWhere stories live. Discover now