O ANO DO DRAGÃO

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Eu já estive aqui. Reconheço esse lugar. Aqui é... Eu não sei. Mas eu... Vejo o chão de pedras cortadas e encaixadas, já gastas de tantas sandálias que andaram por cima. Eu me lembro, eu olho e encontro a rua que já andei. Mas isso parece a tantas eras atrás. A visão gira em torno daquele espaço aberto, aquela praça pública antiga, aquela área circular onde as pessoas se reúnem para vender coisas, para discutirem, para... o que é aquilo, aquele... palco. Não. O nome é palanque. Não, não. Existem pessoas ali em cima, e tem eu. Eu estou ali em cima. Isso aqui não é um palanque é um patíbulo. É nesse lugar onde se matam os condenados. O que é isso na minha mão? Um machado? Eu nunca seria capaz de levantar algo tão pesado assim? Ele é enorme. Mas eu o levanto, e olho para baixo. Tem uma caixa de madeira, onde uma pessoa apoia o peito e segura nas bordas. A sua cabeça fica para fora da caixa, olhando o publico ali embaixo. Eu estou no público também. Eu me olho. Eu olho para baixo com o machado na mão e a pessoa que se deita é aquele com cabeça de leão. Ele olha para mim, e parece sorrir. Eu não sei o que fazer. Sei o que devo fazer, mas não quero. Eu olho para mim na plateia. Me procuro. Querendo um apoio, querendo saber o devo fazer. Não me encontro. Eu olho para cima, e me vejo segurando o machado. Eu estou na caixa agora. Olhando para o público. As pessoas parecem gritar algo, mas uma delas não. Uma daquelas pessoas está me olhando. Não sorri, não me desafia, não... nada. Nada. Ela apenas me olha, com seus olhos de leão. Eu olho para baixo e me vejo sem saber o que fazer. Então eu levanto o machado descomunal e corto a minha cabeça fora. Ela rola, para perto da beirada, antes de cair no chão. A plateia delira. Eu olho para mim, sem corpo. Mas eu não me olho de volta. Gostaria de gritar, mas não tenho mais garganta.

E algo dentro de si também estava gritando, que ele era a causa e o efeito de uma tremenda injustiça. Como se não fosse justo ele poder acordar calmamente e tomar seu café da manhã, e caminhar ao sol, e poder sorrir de si e da vida.

Mesmo em sonho, Carlos Olavo Pimentel sentiu uma imensa angústia, que fez seu corpo suar e tremer. Uma angústia que nascia bem lá, onde os sonhos são fabricados, embalados, e entregues.

Mas a carga estava defeituosa, e o entregador estava bêbado.

Como se fosse vítima de um acidente, Pimentel acordou. Se sentia mal, grogue, com a boca seca, cansado, sujo, molhado, pontadas de dor na cabeça e pelo corpo. Ele era a própria carga, o próprio entregador bêbado, e o próprio acidente.

Pimentel saiu da cama para o seu pesadelo lúcido.

Dessa vez o corpo foi encontrado no chão. Eram 05h da manhã, quando um telefonema de Min encontrou um Pimentel se olhando no espelho do banheiro. Se olhando, não. Porque no momento ele estava de olhos fechados. Olhos e punhos. Ambos vermelhos. Um de tanto bater na parede, o outro de tanto não conseguir se fechar por tempo suficiente. A sua voz pastosa nem se preocupou em esconder que não era um bom momento. Mas os mortos não esperavam por um bom momento. Esperavam por ele.

Conseguiu dar as ordens certas na ordem correta, descobriu que o rabecão só iria chegar ao local por volta das 08h, mas os peritos já haviam sido acionados. Fingiu que calculava algo e pediu para Min o buscar em casa ás 07h.

O tal corpo não estava amarrado a um poste, apesar de haver alguns ali, fortes candidatos para o serviço. Qualquer um poderia achar que não fazia parte do caso do inspetor Pimentel. Ele mesmo gostaria que não fizesse. Aquele corpo jogado no chão, de bruços, com as calças arriadas, revelando uma feroz dilatação anal, e alguns hematomas que Pimentel não quis nem se ocupar.

Mas ele sabia. Sabia que aquilo ali era mais um morto nas suas costas. Bastava olhar para o chão e ver a faixa amarela seguindo o meio-fio. Irritando ainda mais as entranhas do inspetor.

Mau SúbitoWhere stories live. Discover now