Tomar um banho de chuva

3 0 0
                                    

— Ainda te deixo sem palavras? — disse ele sorrindo com os olhos. — Aproveitando a noite?

Ele apontou para a cama que mais parecia uma toalha de piquenique com os potes de doce e uma garrafa de espumante aberta.

— Estava. — respirei fundo e voltei para o que importava — O dono da casa disse que podemos ficar aqui até liberarem a estrada, tem toalha e roupa de cama extra no armário dos fundos.

Terminei de falar e ele assentiu coçando a nuca como se pouco importasse. Tentei fechar a porta não tão delicadamente dando um sorriso forçado, mas ele colocou o pé na frente. 

— O que você quer, Cauã? — perguntei impaciente.

— Você não vai perguntar como eu estou, não vai discutir como é uma puta coincidência sermos os padrinhos do mesmo casal? — ele se acomodou na parede de braços cruzados como se fossemos conversar por horas — Como você conheceu a Sabrina?

— Precisamos mesmo fazer isso? — perguntei ainda segurando a maçaneta.

— Você costumava ficar bravinha quando estava com fome mesmo. — ele estava tão confortável naquela situação que senti meu rosto queimar de raiva. 

— Boa noite, Cauã. — disse fechando e trancando a porta de vez.

— Tem certeza que vai dormir com fome? — eu ouvia sua voz abafada atrás da porta. — Eu ia fazer um sanduíche de ovo com bacon pra mim.

Pensei com os braços cruzados olhando para o chão. Eu realmente estava com fome. E o sanduíche de ovo com bacon dele era muito bom. 

— Não. — eu já havia virado a noite com fome por muito menos, e eu ainda tinha os docinhos da Bia e uma garrafa de espumante. 

Sentei na cama e ouvi os passos dele descendo a escada. Peguei meu celular e mandei mensagem no grupo com Cissa e Bia.

Gente, vocês não acreditam na MERDA de situação que eu tô  digitei.

AMO FOFOCA respondeu Cissa.

Contaaa!!

O padrinho é o Cauã — meus dedos tremiam.

OQ??? — chocou-se Cissa.

O SEU CAUÃ??? — perguntou Bia.

Uhum — não sabia o que contar além daquilo.

Ele te viu?? — perguntou Bia.

Não só me viu, como agiu como se nada tivesse acontecido.

Manda ele a merda — sugeriu Cissa. Não era uma má ideia.

Talvez amanhã, agora eu vou dormir — respondi.

Quero atualizações, gratidão — imperou Cissa.

Como você tá se sentindo, Liz? — perguntou Bia. 

Eu não sabia o que responder. Era como se eu queimasse de dentro pra fora, mas ficasse segurando para não dizer o que eu realmente queria dizer. Não era maduro ficar lavando roupa suja de tantos anos atrás, nem saudável, nem pra mim, nem pra ele. Eu só queria ele distante, queria nunca mais olhar pra cara dele, queria que ele desaparecesse e fosse viver qualquer vida que ele quisesse bem longe de mim. Era difícil colocar em palavras o que eu sentia. Raiva? Tristeza? Decepção? Nojo? Indignação? Nada disso parecia certo.

Eu vou ficar bem — foi a melhor mensagem que eu poderia ter enviado.

Decidi acender um incenso, colocar uma música para relaxar. Meditei com alguns mantras, cristais, mas eu estava tão fora de mim que nada iria me ajudar. Quando percebi já era o começo da madrugada e meus chakras desalinhados não me deixavam dormir. Desci até a cozinha e preparei um chá com a camomila que eu sempre levava para viagem na bolsa. Fui para o lado de fora da casa numa área coberta e deitei na rede que ali estava. 

Coloquei o fone e coloquei a primeira playlist para dias chuvosos. O som do piano acompanhava quase todas as músicas, assim como alguns violinos e uma voz principal sem quase nenhum efeito ou harmonia. Fazia tempo que eu eu não ficava assim, sozinha, sem nenhuma distração que não fossem meus próprios pensamentos. 

Inspirar o cheiro da grama molhada refrescava meus pulmões, limpando a tensão enquanto a caneca quente me confortava junto com o balanço da rede. A chuva forte agora era uma garoa tênue que descia de um céu estrelado que me chamava para aproveitar o momento. Lembrei de quando aprendi que banho de chuva era sagrado, eu ainda era uma criança. Minha avó me contava que a água devolve pra terra tudo o que não te pertence, que te ajuda nos momentos confusos, te deixando só com o mais puro sentimento. 

Decidi que tomaria um banho de chuva e, como todos estavam dormindo, eu o faria do melhor jeito possível, até porque eu não queria nenhuma roupa molhada. Tirei o moletom, as meias a calça, ficando de calcinha e com uma camiseta fina e entrei embaixo da garoa. Meus pés afundavam levemente na grama ainda encharcada, soltei meus cabelos e deixei que eles ficassem molhados, assim como meu rosto.

Reconheci Sirius, a estrela mais brilhante do céu, o cinturão de Órion e Marte, o planeta regido pelo deus da guerra, Ares. Ele era conhecido por ser agressivo, sangrento, quase odioso, mas as pessoas esquecem que guerras nunca são bonitas, principalmente as que travamos dentro de nós. Descobrir que precisamos ir contra tudo que fomos ensinados para ir em direção ao nosso próprio destino é se deixar em carne viva e se regenerar. Deixar algo que um dia foi tão importante ir embora é como tirar um membro de seu próprio corpo com uma navalha cega e depois se regenerar. Arriscar o que se tem para conquistar outra coisa é abrir mão de sua própria nação, do seu povo para andar sozinho em um deserto de pés descalços e depois se regenerar.

Com a lutam vem a vitória ou a derrota, mas dos dois lados, vem a regeneração. Não tem como aprender sem errar, não tem como melhorar sem arriscar, não tem como inovar sem a ação de colocar o primeiro plano em prática. Ares cria os mais resilientes dos devotos, ninguém que passasse por ele saia sem uma armadura mais grossa, sem uma lança mais afiada. Ele é a personificação de viver sem medo, de lutar com garra, de não se acomodar e de conquistar o que se quer com independência, sem medo do que os outros vão pensar ou fazer. 

Eu sentia que estava acomodada, como se uma parte de mim estivesse adormecida. Não tinha mais sonhos nem sangue nos olhos como eu costumava ter. Eu sabia que isso era uma benção pra vida adulta, ter emprego garantido, ter casa garantida e ainda conseguir ter hobbies produtivos, além de uma vida amorosa sem compromissos. Tudo que eu vivia era um sonho. Mas embaixo daquela chuva tênue, consegui ver que não era o meu.

Que o mundo vá à merda e outras expressõesNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ