a hora da estrela - clarice lispector

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01. esse eu que é vós pois não ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. meditação não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. eu medito sem palavras e sobre o nada. o que me atrapalha a vida é escrever.

02. não esquecer que a estrutura do átomo não é vista mas sabe-se dela. sei de muita coisa que não vi. e vós também. não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar: acreditar chorando.

03. tudo no mundo começou com um sim. uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.

04. que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho.

05. enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.

06. como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? só não inicio pelo fim que justificaria o começo - como a morte parece dizer sobre a vida - porque preciso registrar os fatos antecedentes.

07. todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro.

08. quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?

09. as coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer.

10. escuridão? lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e que escuridão dentro de seu corpo. nunca a esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu. o acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror.

11. vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.

12. quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muito acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. porque parece. existir não é lógico.

13. a menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida.

14. quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer. então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão. do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas.

15. bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta.

16. é. eu me acostumo mas não amanso. por deus! eu me dou melhor com os bichos do que com gente. quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado - tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço e contar-lhe a minha vida. e quando acaricio a cabeça de meu cão - sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique.

17. quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido . culpada e contente. por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém. rezava mas sem deus, ela não sabia quem era ele e portanto ele não existia.

18. vez por outra ia para a zona sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas - só para se mortificar um pouco. é que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro.

19. e quando acordava? quando acordava não sabia mais quem era. só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.

20. não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela.

21. de nada sei. que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.

22. enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. quando ouviu começara chorar. era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era "assim". mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma. muitas coisas sabia que não sabia entender.

23. ela rezou automaticamente em agradecimento. não era agradecimento a deus, só estava repetindo o que aprendera na infância.

24. diálogo:
– por que é que você me pede tanta aspirina? não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
– é para eu não me doer.
– como é que é? hein? você se dói?
– eu me dôo o tempo todo.
– aonde?
– dentro, não sei explicar.

25. não se conta tudo porque o tudo é um oco nada.

26. esse médico não tinha objetivo nenhum. a medida era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor á profissão nem a doentes. era desatento e achava a pobreza uma coisa feia. trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também ele não pertencia. sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. o seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.

27. quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. por que as nuvens não caem, já que tudo cai? é que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. inteligente, não é? sim, mas caem um dia em chuva. é a minha vingança.

28. eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque ele era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. quando ele me dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. com ele era amor, com os outros eu trabalhava.

29. você sabe o que quer dizer caftina? eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras. tem gente que se assusta com o nome das coisas.

30. a verdade é sempre um contato interior inexplicável. a verdade é irreconhecível. portanto não existe? não, para os homens não existe.

31. pergunto: toda história que já se escreveu no mundo é história de aflições?

32. escrevo sobre o mínimo parco enfeitando-o com púrpura, jóias e esplendor. é assim que se escreve? não, não é acumulando e sim desnudando. mas tenho medo da nudez, pois ela é a palavra final.

33. eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. a vida é um soco no estômago.

passagensWhere stories live. Discover now