Capítulo 2

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Capítulo 2

3 anos depois

Termino de passar pano no chão do espaço que fica do lado de dentro do balcão, e enquanto minha amiga Giovanna – carinhosamente conhecida como Gi – varre o salão, e o Luciano repõe o estoque de bebidas das geladeiras, saio para limpar as mesas que ficam do lado de fora e são delimitadas num deck de madeira com jardineiras de crisântemos vermelhos. O café Parada Obrigatória não é grande, mas tem seu charme. As mesas são pequenas, redondas e tem mosaicos de azulejos nos tampos. O enfeite fica por conta de pequenas garrafas de vidro envolvidas em uma camada de renda e que sustentam cada uma um raminho de flores pequenas. Faltando dez minutos para as 19:00hs, está tudo bagunçado, as mesas e o chão estão cheios de migalhas, há pratinhos com resto de salgados e sanduíches, e xícaras de café vazias por todo lado. Com um cesto plástico vou recolhendo tudo o que deve ser lavado, e com um pano começo a limpar as mesas.

Pouco tempo depois, já limpei todas as mesas e varri o deck. Estou prestes a entrar quando vejo um grupo de engravatados saindo animados do prédio à frente.

Meu coração falha uma batida como sempre acontece quando vejo um grupo daqueles. Detenho-me por alguns segundos, o suficiente para perceber que ele não está no meio. Eu o vi apenas algumas vezes depois da entrevista-monstro, mesmo assim, nunca perco a esperança que finjo não alimentar. A Gi vive dizendo para eu ir fazer entregas no prédio e assim poder conferir se ele ainda trabalha na editora. Mas desde que aquilo aconteceu, nunca mais entrei no prédio. Talvez eu deva fazer terapia para descobrir quão profundo é o meu trauma. Se bem que não preciso de inúmeras sessões de análise para saber que o trauma é terrível e irrecuperável. Sinto que se passar pelo saguão de entrada, vou vomitar. Literalmente, como da última vez. E uma única vez bastou, obrigada.

É uma ironia tremenda que no dia em que eu – desculpa o palavreado – fodi com a chance da minha vida de conseguir um emprego que eu sonhava e que me ajudaria a realizar meus outros sonhos, acabei conseguindo um trabalho no café que fica na mesma calçada, praticamente ao lado do edifício que guarda o maior mico que já paguei e que parece rir de mim toda vez que olho para ele.

A responsável por isso foi a Gi, que já trabalhava no café e me viu sair descalça, com as roupas arruinadas e chorando – o rímel escorrendo pelo rosto. Lembro bem da cara com que ela chegou até mim, os olhos esbugalhados se sobressaltando no rosto negro de expressão alegre, os cachos que ela usava coloridos na época escapando por baixo do boné.

Depois de me analisar por vários segundos, ela olhou para a portaria do prédio, novamente para mim, e perguntou: "Menina, o que fizeram com você lá dentro? Parece até que lutou com um tigre. Eu sempre achei que esses engomadinhos são na verdade um monte de bichos selvagens, só que bem vestidos".

Lembro de olhar para ela e rir. Sim, eu comecei a rir de verdade, não sei se de nervoso ou por achar realmente engraçado. Gi então se apresentou e me levou para o café, onde ouviu minha história – não que eu quisesse contar a alguém, mas ela era uma ótima ouvinte e quando vi, já tinha falado tudo –, me emprestou uma camiseta e um par de sandálias, mandou eu me limpar no banheiro e me serviu comida – dois salgados e um refrigerante. E quando Sr. Norberto, o proprietário, chegou, ela me apresentou a ele como sua amiga e insistiu que ele me contratasse. Simples assim. Nada de entrevistas assustadoras. Eles precisavam de alguém a mais, e eu, de um emprego. Sempre serei grata à Gi, que se tornou minha melhor amiga para toda a vida, por ter confiado e ajudado uma completa estranha que podia muito bem ser uma louca psicótica, para estar naquela situação.

Desde então eu trabalho no café. Com vinte e um anos, ainda não realizei vários dos meus sonhos, mas construí uma vida nova graças ao pior dia da minha vida, que acabou não sendo tão ruim graças à Gi e ao café. Alguém lá em cima deve ter sentido pena da minha humilhação e colocou esse anjo na minha vida.

Manu - Entrevistas, Pandemia e Amor (Capítulos de Degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora