Tudo começou com aquela lambisgoia da Taffara e tudo que ela odeia em mim. Não vou fazer você perder seu tempo elencando as piores características de outra menina porque 1) apesar dos pesares, eu sou uma feminista convicta (você já deve ter percebido isso pelas nossas conversas) e 2) não vale a pena. A garota é simplesmente frustrada e vive uma adolescência infeliz. Espero que quando ela cresça perceba isso em si mesma. Porque algum dia ela talvez não encontre alguém tão condescendente quanto eu.

Enfim, tudo começou com ela. Estávamos na escola e eu e Sara com H conversávamos sobre você, o aluno novo. Ela tinha percebido meu novo interesse amoroso assim como todas as outras meninas da sala e eu, a indefesa melhor amiga que não pode fazer nada além de ouvir e escutar tive que ouvir o intervalo todo as impressões que ela tinha sobre o seu interesse por mim ser reciproco.

Na época eu nem sonhava em concordar com ela.

— Você tá vendo coisa Sara – disse. – Ele só me olhou porque era o meu nome na chamada. Se fosse a sua vez ele teria olhado também e se fosse a vez de fulana teria olhado também. Acho que até se fosse a vez de algum menino ele teria olhado, então menos, por favor. Bem menos.

— Alana, Alana. Minha amiga você é muito humilde – ela bebericou o suco que tinha comprado fora da escola em uma dessas lojinhas de um real a cada esquina. Sara, assim como eu, era pobre e não podia pagar por ter coisa melhor diferente de algumas pessoas. – Ou iludida. Você acha mesmo que o Thomas não ia olhar você? Uma menina bonita dessas. Tudo bem que ele não tá apaixonado nem nada, mas que você foi notada a senhora foi.

Tentei não ficar assustada com o fato de Sara com H já saber o seu nome. Você tinha chegado a dois períodos atrás. Mas eu devia ter esperado por isso. Quando um menino louro dos olhos azuis, típico alemão husky siberiano chega numa sala o mínimo é que gere um pouco de assunto.

— Discussão inútil – eu sempre dizia isso a Sara quando não queria ficar girando em torno de uma questão que nós duas vamos continuar discordando mesmo quando acabar. Sara com H, assim como eu, é teimosa e acho que por isso sempre gostei dela como amiga.

— E não me vem com essa de 'discussão inútil'. Discussão inútil é você ficar negando uma coisa tão obvia pra mim. O que tá acontecendo com você amiga? Você não era assim.

Sara estava falando sobre os últimos meses, alguma parte de Junho quando eu mudei completamente. No começo do ano eu estava eufórica sobre garotos, ainda caçando namorados, suspirando com romances platônicos e sonhando acordada com o dia que alguém me amaria na mesma intensidade que você me amou antes de tudo ir por água abaixo. Eu tinha dezesseis anos, Thomas. Não acredito até hoje que você me levou a sério.

Assim como nunca acreditei que Sara com H podia me levar a sério por tanto tempo. Eu tinha lido Jane Austen, Stephenie Meyer, Cassandra Clare. E então numa mudança drástica de eventos mudei para Sara Shepard, Gillian Flynn, Isabela Freitas. Até passeei por alguns exemplares de Agatha Christie quando passei duas semanas das férias na casa da minha avó. Mas então voltei pra casa com as malas e tudo mudou. Eu já não era mais a mesma garota sonhadora e essas coisas podiam ser sentidas no meu humor que estava mais ácido, na minha capacidade de ser irônica sem ser muito maldosa. Estava realmente virando uma mulher que ria das coisas bobas quando elas tinham hora para serem bobas. Que via as coisas sérias do jeito que elas eram (sérias).

E Sara com H tinha ficado presa naquele sonho adolescente. Escrevendo frases bonitinhas nas margens do caderno, colando adesivos da Moranguinho no começo de cada matéria. Ela até cheirava a Honey Baby, a fragrância mais famosa para meninas que queriam ser bonitinhas e fru frus. Não que eu tivesse me tornando uma moça truncada. Eu ainda passava desodorante, shampoos, sabonetes cremes & afins. Mas eu já não tinha mais aquela aureola que as meninas da minha idade são obrigadas pela sociedade a ter. Minha inocência tinha sido perdida nas páginas de alguns calhamaços que devorei nas férias.

E eu estava mais velha. Dezessete anos. Pequena diferença, grandes mudanças.

— Não era, mas graças a Deus agora eu sou – disse. – Você não sabe o quanto é bom não ter que ficar mais pensando em macho, me sentindo na obrigação de falar sobre eles o tempo todo. Não tem nem ideia do quanto isso é libertador, Sara.

Nessa hora, ouvindo aquelas palavras saindo da minha boca de forma natural, Sara com H me olhou assustada.

— Amiga você é lésbica? É isso que você tá tentando me dizer? Nada contra, até apoio e tals. Mas assim você vai me deixar confusa. Eu te vi ou não te vi olhando pro aluno novo quando ele chegou?

Ok, aquela era uma verdade. Eu tinha pegado cada borboleta que atravessou meu estomago e colado nas paredes do meu coração só pra deixar de enfeite, só pra não ter mais que sofrer. Afoguei minhas lágrimas em livros, mas voltei pra superfície quando aqueles olhos profundos e azuis se escancararam nos meus de forma tão abrupta. É claro que eu estava tão louca quanto as outras meninas. Você foi que nem uma febre ou uma monocleose, Thomas – atingiu a todas nós que nem um surto. Porque você era lindo, hipnotizante. Quando falava, todas as cabeças se viravam na sua direção e acho que até interceptei alguns olhares masculinos.

A sua chegada trouxe vida a todos nós. Assim como continua fazendo até hoje.

Mas nem morta eu falaria isso pra Sara com H. Me declarar pra ela e estragar a imagem séria e culta que eu tinha construído aquele tempo todo? Nem ferrando. Era mais fácil atuar. E como você sabe até hoje depois de tanto tempo eu era muito boa nisso pra perder a oportunidade.

— É que ele chegou do nada – respondi. – Todo mundo olhou. Ele nem pediu licença pro Álvaro pra entrar. Dá pra acreditar na ousadia do menino?

— É mesmo, foi muito ousado da parte dele. Não é qualquer um que faz isso com o Álvaro. Então você não tá afim? – ela ficou decepcionada. – Não aceito isso. Quero minha amiga de volta. Se fosse o Luan-

— Não fala esse nome, esse menino morreu pra mim.

E a surpresa voltou para o rosto dela e eu tinha minha velha amiga de quem tanto sentiria saudade por anos sem saber.

— Você ainda gosta dele né?

— Não tem como gostar de alguém que é o próprio capeta, Sara.

— É, mas você gosta dele mesmo assim. Me conta, vocês se falaram? Ele te mandou mensagem? Voltou pra você com o rabo entre as pernas?

E nessa hora Taffara finalmente entrou. Só mesmo essa garota pra passar por nós duas no pátio despercebida. Talvez eu estivesse mesmo com a cabeça nas nuvens por você porque nem me dei conta que ela estava nos rondando aquele tempo todo, arregalando os olhos com o rumo da nossa conversa.

Quando finalmente percebi, já era tarde demais.

— Não. E nem quero.

Era mentira. Eu e Luan, meu ex-namorado, trocamos mensagem por três vezes nas férias e até rolou uma ligação acalorada. Ele me queria de volta, já eu... eu tinha certeza absoluta que queria também. A única coisa que atrapalhava era aquela bruaca de ex-namorada rondando nós dois. Por que as coisas são sempre assim? Por que os garotos não podiam simplesmente vir sem nenhum histórico de bagagem? Ex-namoradas que aprendemos a fazer de inimigas pelo simples fato de terem sido usadas primeiro. Tudo muito cansativo.

— Pela sua voz não parece – respondeu Sara com H como quem sabia das coisas. Ela não tinha percebido a víbora se aproximando, balançando o rabo e preparando o bote. – Me fala, ele disse que te ama? Que vai terminar de vez com a outra lá?

A outra lá estava rondando nós duas, mas antes que eu pudesse ter a oportunidade de apontar isso, uma figura surgiu no pátio pronta para salvar nossas vidas da cascavel. Meu melhor amigo Telanius, o garoto com quem você me viu agarrada quinta-feira à noite.

Invisible StringsWhere stories live. Discover now