Quarto andar

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Para todos aqueles que mentiram, eu os entendo.

Ela aprendeu quando criança que mentiras nunca eram boas, então tentou ser sempre sincera consigo mesma e com os outros. E ela conseguiu, por um tempo. Mas, naquele dia, quando gritou "eu estou bem" para a pessoa do outro lado da porta trancada e encarou o próprio reflexo no espelho, encontrando seu rosto molhado de lágrimas, ela percebeu que mentir não parecia tão errado agora.

Quarto andar

O elevador subia pelos andares tão lentamente quanto era possível, as pessoas entravam e saiam, perdidas dentro de seus próprios mundos. Mas para mim, era diferente. O caos dentro da minha cabeça era tão barulhento que eu não aguentava ficar lá por muito tempo. Quarto andar. A voz robótica anunciou a chegada do meu destino.

Como instinto, minhas mãos começaram a suar e seu corpo pesou, fazendo com que cada passo pelo corredor, cheio de enfeites natalinos, fosse doloroso. A porta numerada na minha frente parecia gritar e, apesar de desejar ir embora, eu a cruzei, encontrando dois rostos conhecidos.

Bem mais do que eu gostaria.

"Você veio..." Disse a mulher, levantando-se da cadeira perto da cama, andando em minha direção com passos hesitantes.

"Sabe que eu não..." Olho para a cama ocupada, torcendo para que ela me entenda.

Ela o faz. "Sim, eu sei...nós dois sabemos." E nosso diálogo termina assim, no meio de frases não ditas por inteiro.

"Eu...hm, acho melhor eu ir." Seu sorriso triste é uma resposta boa o bastante para que eu alcance a saída em passos largos.

Quinto andar

A decisão de ir até o terraço ao invés do estacionamento não foi, de fato, minha. Eu só entrei no elevador desnorteada o bastante pra não prestar atenção no que estava fazendo. É claro que ficar ali olhando o céu escuro tinha sido verdadeiramente minha escolha.

"Uma bem estúpida", eu penso quando a corrente de ar gelado me atinge. Ele, entretanto, teria chamado isso de destino. Perceber isso faz com que eu sinta o vazio no meu peito cobrindo mais espaço dentro de mim.

É o som da porta de metal se abrindo que rouba minha atenção. Há alguém ali. Um homem, alto. Ele solta o cabelo, do coque firme no alto da sua cabeça, que cai lentamente pelas suas costas, e eu sinto uma pontada de inveja, alisando meu próprio cabelo, que em um corte pixie não chega perto de ser tão sedoso quanto o do desconhecido.

Sua presença, apesar de sinuosa, é cativante. De alguma forma, não consigo parar de olhá-lo, de admirar como ele, em movimentos leves, traga o cigarro e expira a fumaça. Antes mesmo que eu possa falar algo, ele para e apaga o cigarro. Ele encara a noite com intensidade, tanta que me sinto constrangida em presenciar um momento tão íntimo, e, por fim, ele vai embora. A porta de metal batendo nas suas costas.

Após alguns minutos de silêncio, eu me movo, tomando o lugar que uma vez foi dele e tento, mesmo que por um segundo, entender o que ele sentiu. Não dá certo, é claro, mas eu ainda fico ali, parada, esperando por algo. Qualquer coisa.

Vai subir?

Hoje é a primeira vez em muito tempo que eu acordo verdadeiramente de bom humor. Então, quando sinto o calor aconchegante do sol batendo no meu rosto pela manhã, eu penso que esse vai ser um dia de sorte e felicidade.

Ao chegar no hospital, compreendo que me enganei.

O rosto inchado que me recebe não diz muito, entretanto, suas poucas palavras são o suficiente para me abalar. "Uma semana", ela repete entre soluços, "Eles vão desligar... eu preciso... tantas coisas..."

Eu entendo quando ela sai do quarto sem olhar pra trás, entendo como dói encarar a verdade, e por isso eu fico. Pois, também entendi o pedido silencioso que ela me fez.

Me aproximo da cama, alcançando o banco duro ao seu lado. "Sabe, a última vez que estivemos juntos no hospital eu tinha acabado de quebrar a perna por sua culpa. Você se lembra disso?" Encaro o homem deitado, seu rosto parece bem mais magro do que eu me lembro. Ele continua inexpressivo. "É, eu imaginei que não. Enfim, sua memória nunca foi muito boa mesmo, ao contrário da sua barba, que por sinal está horrível." Procuro na minha bolsa um pequeno estojo de acessórios. "Mas pra sua sorte, eu estou sempre preparada."

Custam alguns longos minutos para que eu termine de ajeitar a barba arruivada do homem, mas assim que acontece, lhe dou um sorriso. "Olha só", puxo um espelho na sua direção, "ficou bonito, não acha?". O silêncio bate em mim com delicadeza, e sinto as lágrimas se acumulando no canto dos meus olhos. "Oras, não é como se eu tivesse arrancado suas sobrancelhas, tenho certeza que você iria adorar como ficou."

Eu suspiro, porque parece que essa é a única coisa que posso fazer. "Você sabe que não gosto do silêncio, então que tal eu te contar uma história, em? Brilhante, certo?! Vamos lá. começa assim, tem uma garota que tá procurando o amor da vida dela há muito tempo...."

Dessa vez, quando chego no terraço, ele já está lá, o homem misterioso, então me encosto em um canto e puxo um pouco de ar para meus pulmões, buscando coragem para chamar sua atenção. "O que você diria sobre uma pessoa de 27 anos que está morrendo?"

Ele me olha assustado e percebo que talvez essa seja a última forma que alguém deveria começar uma conversa.

"Você não pode ficar aqui." É, isso foi, definitivamente, muito caloroso.

Sexto andar

"Por que sempre voltamos pra essa pergunta?" Ele pergunta quando nossos encontros atingem o marco de duas semanas.

"Não sei." Eu vejo a dúvida em seus olhos. "É sério, eu realmente não sei. Acho que essa é a forma que eu encontrei de lidar com tudo isso."

"Tudo isso o que?"

"A vida. O fim dela. Essas coisas."

"Você perdeu alguém?" Eu soube reconhecer o que havia no seu tom de voz. Era pena, e eu odiava.

"De certa forma, meio que todos nós perdemos, não é mesmo?" Tento desconversar, mas ele não é a pessoa mais paciente do mundo. "Sim, mas não é só isso, é que agora acho que também estou me perdendo."

O médico misterioso ergue sua mão na minha direção. "Vem aqui", ele diz e, apesar dos apesares, eu a pego deixando-o me guiar até a beirada do terraço. "Vê aquele prédio ali?" Aponta. "Meu avô escreveu uma carta e pulou dele em uma manhã ensolarada." Minha respiração falha, eu fico chocada com a calma que ele fala. "Meu aniversário de dezoito anos era no mês seguinte e na carta ele fazia as felicitações adiantadas." Sinto seus dedos se movendo contra minha mão, em uma singela carícia. "Não soube lidar com isso por muito, muito, tempo. Então, um dia, meu pai estava chateado e eu achei que era porque eu não tinha cortado a grama como tinha prometido, quando pedi desculpas ele disse: 'O mundo não gira ao seu redor, filho, as vezes coisas acontecem e nem sempre elas tem haver com a gente'. Você entende onde quero chegar com isso?"

Concordo, vendo seus lábios subirem meio centímetro para cima. "Você não é o que acontece com os outros... quando se trata de empatia, existe uma linha ténue entre bom e perigoso." Ele completa.

"Nunca vi você falar tanto." Digo, sem saber mais como respondê-lo.

Ele ri, levemente, e não solta minha mão pelo resto do tempo em que ficamos ali.

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⏰ Last updated: Jan 02, 2021 ⏰

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