Três - A bela que é uma fera

777 50 1
                                    

Nada naquele dia dava pistas do inferno que iria virar. A única preocupação de Melissa era encontrar o ativista conhecido como “Start”.

Start era o alvo das atenções, em qualquer mobilização que havia no estado, até porque geralmente era ele quem organizava. Sujeito descolado, de barba grande e cabelo curto. Costumava usar alargadores nas orelhas e sempre vestia uma dessas camisas, com frases e retratos de pensadores e revolucionários, como o Che Guevara ou Marx por exemplo. Ele era tudo que uma garota rica e rebelde poderia querer.

Infelizmente para Melissa, Start já estava cercado de pessoas, a maioria delas mulheres. Isso a desapontou, mas não a desanimou. Ela caminhou a passos tímidos em direção ao rapaz. Não dava para acreditar na quantidade de pessoas que estavam se aglomerando naquele local. Melissa desviou de alguns e precisou dar empurrões, mas chegou perto o suficiente para chamar a atenção de Start.

Ele sorriu para ela, fazendo o coração da garota derreter. O rapaz mexia com ela, mas Melissa não sabia em que estado estava a relação dos dois. Eles saíram algumas vezes, geralmente após algumas mobilizações, mas oficialmente nunca namoraram. Trocaram beijos e dormiram juntos uma vez, e só. Ela queria algo maior… Todo que ela mais queria do fundo de seu coração era…

— Melhores salários para os professores – seus pensamentos foram subitamente cortados pela voz do rapaz. Start havia corrido em sua direção, assim que a viu. Ele estava lá, na frente dela sorrindo. — Entendeu?

— Como? – Melissa ainda estava confusa. Apenas não sabia se era por ter sido arrebatada de seus pensamentos, ou por conta da poluição sonora no meio da multidão.

— Nosso foco hoje, vai ser melhores salários para os professores – reforçou o rapaz, falando um pouco mais alto. Melissa concordou com a cabeça. — Ótimo. – Sorriu antes de continuar, desta vez sussurrando em seu ouvido. – Aqui… Você está afim de me ver mais tarde?

— Talvez… — Ela sabia da fama dele, e não podia parecer fácil.

Start sorriu de forma maliciosa. Ambos trocaram olhares quase telepáticos, onde um falava para outro tudo aquilo que palavras não podem descrever. Isso não durou muito, pois o rapaz foi abordado por um sujeito magro, vestindo uma camisa com o desenho de um cogumelo verde, desenhado em 16 bits.

— Vermes – gritou. – Malditos escravos do sistema. Eles não vão ferrar com a nossa manifestação. Esse é um direito legitimo do povo – ele garrou Melissa pelo braço e arrastou para longe da multidão enquanto falava. – A PM está cercando a praça. Não vão deixar agente marchar até a prefeitura.

A medida que a garota era levada para longe de tudo, ela pode notar os cartazes. Grande parte deles pediam por melhores salários para os professores, mas haviam outros. Alguns pediam mais segurança, ou um basta na corrupção, mesmo que não especificassem um exemplo, outros eram irônicos. Enfim, muitos não estavam dentro da proposta da mobilização, mas Start encorajava todos expressarem suas reivindicações, mesmo que não fossem a proposta central do protesto.

Eles saíram da praça, arrastando um bom grupo de manifestante com eles, em direção à avenida principal. Start sabia que a Policia Militar costuma se colocar no caminho das manifestações, mas dificilmente flanqueava a mesma.

— Ei Start – disse Melissa. – Não estamos saindo muito do caminho?

— Não se preocupe docinho. Se a prefeitura não está afim de ouvir a gente, vamos gritar para os amiguinhos ricos dela. Vamos entrar em cada bairro burguês dessa cidade, e tirar a paz deles.

Não se sabe como começou, ou quando foi que descobriram a manobra que o ativista estava fazendo, mas um estouro muito próximo ao grupo, seguida de uma sufocante nuvem branca, anunciou que o inevitável havia acontecido. Um grupo de soldados da tropa de choque, auxiliados pelo BOPE haviam antevisto o a mudança nos planos de Start.

Melissa sabia que esta era a hora de usar a tática de ação direta, conhecida como Black Bloc. Era esse o papel dela, de Start, e de todos os outros que estavam com eles. Se colocarem e desafiarem a ordem. Além de representar uma rebelião ao sistema contra qual protestam, tem também por afinidade, proteger os outros indivíduos do grupo que acabaram ficando na mira de policiais truculentos e mal preparados.

Alguém lança uma pedra contra os policiais, atraindo a atenção para o grupo de preto, enquanto os manifestantes, que nada querem ter com o incidente, fogem. A maioria já vestiu suas máscaras, ou cobriu o rosto com camisas, enquanto mais bombas estouravam. Melissa já está com o rosto coberto por uma máscara de gás, mas seus olhos ardem.

Outros membros, aparecem com placas, e pedaços de madeira que servem de escudo, enquanto os demais atiram pedras e pedaços de madeira. Alguém vai ao chão, atingido no peito por uma bala de borracha. Mais explosões, e a nuvem branca aumenta.

A confusão está instaurada. Os policiais saem de sua formação, a maioria se exalta. Tem mascarados de preto enfrentando a polícia, com chutes e socos. Também há policiais atirando balas de borracha e bombas, quase a queima roupa.

Melissa está confusa, seus olhos ainda ardem. Ela não foi rápida o suficiente para colocar a máscara. Não era para ser assim. Era para eles serem ouvidos, darem seu recardo, e por tabela cada um ia para sua casa ser feliz. Ela por sinal tinha um encontro marcado para mais tarde. Mas não, tinham que haver bombas e balas de borracha. Sempre eles, sempre os gorilas da polícia.

Melissa partiu em meio a uma espessa fumaça e sons de explosões, vestindo sua máscara de gás corria desesperada em busca de abrigo. Sem conseguir enxergar direito o que tinha pela frente, ela entrou de forma abrupta na primeira porta que encontrou aberta. A porta principal de um pequeno edifício comercial.

Apesar de parecer uma causalidade, ela não estava em um lugar estranho a si. Na verdade era muito familiar, ela já esteve ali antes. Se sentia segura, longe das bombas, de todo aquele gás e da confusão que estava fora do controle.

Ela encostou na parede, e se deu ao luxo de respirar fundo por alguns segundos. Em paz, como se não houvesse o caos que há lá fora, sozinha…

Não tão sozinha…

De súbito Melissa percebeu que não está exatamente só. Ali também, protegido da fumaça, um PM do batalhão especial estava perdido em seus próprios pensamentos, longe da mesma confusão da qual ela estava tentando escapar. A visita dela foi inesperada o suficiente para ele ficar fora de si por alguns segundos e esquecer diante de quem ele estava.

Era um policial, diante de um Black Bloc.

— Mas que droga… - o surpreendido e assustado sargento Batti tentou sacar a sua arma.

Apesar de surpreender a manifestante, que não tinha como reagir naquele instante, a momentânea imperícia do policial foi patética, ao ponto dele acidentalmente liberar o pente de balas de sua pistola.

Vendo que o policial estava despreparado e desarmado, a manifestante se agarrou a mão do policial, tentando lhe tirar a arma a qualquer custo. Se aproveitando do fator surpresa, e acrescentando um golpe com seu próprio ombro. O policial foi ao chão, desarmado.

— Que ótimo – lamentou Batti, com desprezo a si mesmo, e a situação em que se colocou.

Melissa rapidamente colocou o pente de balas na arma. Ela agora tinha um escravo do sistema em sua mira. Era uma situação nova, inusitada, mas que de alguma forma lhe agradava muito.

Ele estava a mercê dela, e sabia que esta era uma situação delicada. Só não sabia o quanto.

Cordão Negro - (completo)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora