-- De onde aqueles grandalhões vieram? E por que nos atacaram? – Sahira não parava de perguntar. Ela e Iana estavam andando há um bom tempo, e Bast até já desaparecera no horizonte – Desde quando leões e tigres vivem juntos?
Iana suspirou, percebendo que a gata não desistiria até obter respostas, e resolveu explicar:
-- É uma longa história, mas também é um longo caminho que temos à frente, o bastante para eu contar. Há alguns anos, bem antes de você nascer, leões do reino de Xangô e tigres de um território chamado Brahma travaram uma guerra. Não importa porque começou ou terminou, mas após um tempo de conflito, eles fizeram as pazes, e para firmar isso a princesa leoa casou com o príncipe tigre, e a princesa tigresa se casou com o príncipe leão.
"Pouco depois o príncipe leão se tornou rei, e com a princesa tigresa teve um filho."
-- Um leão teve filhote com uma tigresa? – Sahira indagou – Dá para fazer isso?
-- Sim, o príncipe ligre Ekom se tornou o felino mais forte da savana. Infelizmente ele também era o mais orgulhoso, e à medida que cresceu, começou a pensar que, como era um ligre de sangue real, tinha direito sobre terras de leões e tigres.
"Quando chegou à maturidade, falou com o pai e a mãe sobre isso, e ambos disseram que não devia ser feito, afinal os tigres com os quais aqueles leões guerrearam já tinham sua família real, com um príncipe e uma princesa tigreões."
-- Tigre o quê? – Sahira não entendera a palavra.
-- Se ligre é o filho de um leão e uma tigresa, um tigreão é filho de um tigre com uma leoa. Há muitos tipos diferentes de híbridos entre espécies, conheço até uma que inclui os gatos.
"Continuando, ambos os pais de Ekom disseram que a paz que se formara a tanto custo devia ser mantida, e quando o tempo deles chegasse ao fim, o príncipe reinaria apenas sobre os leões da terra de Xangô. Mas o ligre não aceitou o que ouviu."
"Ekom levou os pais até um local afastado dos outros leões, e lutou contra ambos. Normalmente um leão e uma tigresa adultos não teriam o que temer contra um só adversário, mas ligres são muito grandes, e o príncipe era o mais forte entre todos..."
Sahira não acreditava. Não conseguia imaginar que alguém fosse capaz de fazer algo tão terrível quanto matar os próprios pais. Iana prosseguiu:
-- Ele voltou para casa e disse aos outros que o pai caíra no rio enquanto caçavam, e a mãe pulou na água para ajuda-lo, e os dois acabaram se afogando.
-- E os outros leões acreditaram?
-- Acontece que Ekom foi esperto, jogou os corpos dos pais no rio para não haver provas.
"Eu fui ao local do crime e vi sinais da batalha na margem, mas quando chamei outros para ver, tudo tinha sido apagado. Sem provas, não tinha como contestar, e agora Ekom era rei, com um exército fiel a seu dispor.
"Como rei, ele veio até mim pedir que eu revelasse e ensinasse a ele a magia secreta dos leões."
-- Magia secreta? Como a que a mamãe ia me ensinar?
-- Sim. Minha família é de leões brancos, e ocupamos a mesma posição da sua em nossas terras: mestres feiticeiros guardiões das mágicas secretas. Ekom exigiu que eu o ensinasse, mas eu neguei, pois suspeitava que ele matara os pais, e com aquela sede de poder, eu sabia que não queria apenas o conhecimento.
"Ekom começou a expandir as fronteiras de Xangô e entrou em contato com os tigres de Brahma. Aqueles mais leais à princesa tigresa aderiram ao ligre, por isso havia leões e tigres juntos em Bast. Eu alertei Ekom que parasse, o que estava fazendo não era correto, e em resposta ele me acusou de traição por não lhe ensinar magia e por estar contra seus planos. Então fui exilada para sempre de minha terra."
"Fugi para o norte, acabei entrando muito profundamente no deserto e quase morri. Felizmente eu sabia por histórias de meu avô que uma espécie de pequenos felinos morava junto a um grande rio no leste, então para lá segui até encontrar a terra de Bast."
"Eu pensei que poderia viver pacificamente naquele oásis, mas meus piores temores se concretizaram. Ekom também deve ter ouvido falar dos gatos de Bast e resolveu estender as fronteiras para o norte também, por isso atacou a vila."
Ela estava cabisbaixa ao terminar de falar. Sahira perguntou:
-- E para onde estamos indo agora?
-- Além do deserto e da savana existe outra terra, separada por um largo rio, o Rio Verde.
-- Maior que o nosso Rio?
-- Muito maior. Além do Rio Verde, há grandes florestas e montanhas, e lá vivem muitas espécies de felinos. Aqueles que procuramos são as onças, ou jaguares. Elas podem ajudar.
-- São poderosas? Como elas são? – a gata nunca ouvira falar desse povo.
-- Tem pelo amarelado com manchas em forma de roseta, são pouco menores que os leões, mas rivalizam com eles em força, e possuem uma mágica muito poderosa. Elas são nossa melhor esperança contra aquele louco do Ekom.
-- Como sabe tanto sobre elas?
-- Eu e meu pai viajamos bastante quando eu era mais nova, ele queria que eu conhecesse um pouco do mundo inteiro, mas nunca nos arriscamos no deserto.
-- Por isso sabia tantas histórias sobre lugares diferentes.
-- Sim.
Quando Sahira percebeu, já estavam andando há horas, suas patas doíam e cada músculo pedia um descanso. Sem falar em seu estômago roncando e a sede que fazia sua garganta mais seca do que o solo do deserto.
-- Falta muito para chegarmos? – perguntou esperançosa.
-- Se tivermos andado o tanto que eu calculo, talvez estejamos no fim de um quarto do percurso – Iana respondeu.
Sahira olhou para todos os lados, vendo a mesma paisagem desolada e imutável que ainda se estenderia por sabe-se lá quanto tempo, e desabou na areia, cansada demais para continuar. Iana se agachou para que a gata subisse em suas costas.
A leoa ainda tinha força para andar mais um pouco, então Sahira se permitiu um breve cochilo.