Laços | RABIA

By misandieg

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A cidadezinha de Monte Verde sempre foi a casa de Rafaella, mas agora também abrigaria Bianca, recém chegada... More

1| Prólogo
2| se conhecer pra se gostar
3| sombra na tarde da paz
4| só sei falar de você
5| dançar até o dia amanhecer
6| abraçar o sol e fechar os olhos
7| pra lua brilhar em você
8| meus pés saíram do chão
9| vento que passa e que leva
10| quando quer outra mulher
11| não estamos mais como antes
12| me cansei de duvidar
14| ser livre pra sentir
15| pra tudo recomeçar
16| olhando o mesmo céu
17| no mar de lamentar
18| se perde aos poucos sem virar carinho
19| uma placa sem estrada
20| nós dois em um só
21| no interior do peito já bateu saudade
22| o nome do teu novo amor
23| acordar do teu lado pra te dizer
24| quando se encontra quem se ama
25| levou embora o meu pesar

13| quando a distância pesar

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By misandieg

Voltar no tempo não dá
Ficar no apego perdeu
Quando a distância pesar
Vou saber mais quem sou eu
- Duas Jornadas -

30 de Abril, 2020.
Monte Verde

O dia todo foi extremamente estressante. O humor bom que Bianca tinha pela manhã, quando conversou com Marcelo no mercado e no telefone com Miguel, se dissipou quase que completamente depois que chegou a vinícola.

Começando no primeiro andar, onde Gabi avisou que Sérgio passaria o dia fora resolvendo problemas pessoais; Bianca sabia que aquilo não era bom porque, de certa forma, era ele quem dividia e evitava discussões desnecessárias. Discussões essas que a carioca queria evitar também, mas simplesmente não conseguia. Essas coisas tiravam a sua paz.

Depois, no andar do marketing, foi recebida por uma Gizelly afoita falando dos feedbacks não tão bons que receberam sobre o tour novo.
A capixaba falou, e falou, e falou até que Bianca precisou interrompe-la e assegurar que ela mesma lidaria com tudo.

Ligou para os remetentes das reclamações e tentou entender ao máximo qual era a critica que fizeram. Para a sua surpresa, Bianca descobriu que a principal reclamação era a duração do tour; estava longo demais.

Anotou mentalmente que precisava trabalhar em uma modificação de rota, quando tivesse tempo.

Algumas horas depois do meio dia, Bianca desceu pro andar da produção, onde a parte executiva dessa sessão trabalhava, e encontrou com Miguel, que não tinha um semblante muito bom.

— Agora me conta direitinho o que aconteceu, amigo. — Bianca pediu sentando-se na lateral da mesa do rapaz.

— Quando eu me mudei pra cá o Sérgio me passou o contato dessa mulher que tava se mudando pra Bahia e queria alugar a casa... ele disse que se eu gostasse era só ajeitar tudo com ela que ele continuaria com a parte financeira. — Começou largando a caneta sobre a mesa e fitando Bianca. — Eu entendi que ela não voltaria nunca mais, sabe? Mas aí ontem, de uma hora pra outra, ela avisou que precisava da casa de volta pra domingo!

— Que situação, Miguel! Mas olha, não se preocupa tá? — Assegurou gesticulando. — Você fica lá em casa enquanto precisar, sem problema algum... você avisou o Sérgio?

— Eu avisaria hoje, mas ele não tá... já liguei também e nada. — Disse chateado e Bianca sorriu fraco afagando os ombros do amigo.

— Esse menina deve ter enlouquecido pra decidir voltar do nada! — Bianca pontuou duvidosa.

— Realmente, alguma coisa deve ter acontecido... e ela parecia tão tranquila sabe? Fez video-chamada pra mostrar a casa e tudo mais...

— Vai ver endoidou na Bahia, eu não julgo, eu fui pra lá e voltei doidinha de tão feliz... ela deve tá triste de ter que voltar.

— Não vou querer aprofundar nesses seus assuntos não. — Miguel afirmou com um sorriso sugestivo no rosto. — Gizelly já tá mais calma?

— Calma como um furacão! — Respondeu divertida. — Você por acaso conhece a filha do Marcelo? Ele me convidou pra jantar na casa dele depois da reunião porque disse que a filha está por aqui...

— Eu não conheço ela pessoalmente, não, mas o Marcelo já me contou dela... ela é carioca, acho. — Miguel revelou

— Hum... será que-

— Ah não, Bianca, nem continua! — Miguel interrompeu a voz sugestiva da publicitária. — Não quero escutar, e você não vale nada.

Bianca revirou os olhos rindo, já que aquilo se tratava apenas de uma brincadeira.

— O mau humor mata os gays, sabia? — Caçoou levantando-se da mesa pronta pra voltar ao trabalho. — Cuidado pra não morrer cedo...

Miguel apenas mostrou a lingua pra amiga e a assistiu sair de sua sala. Bianca era perfeita na arte de zoar pessoas e coloca-las pra cima.

Gostava muito da companhia dela.

{...}

Rafa estava em mais uma tarde tranquila na cafeteria. O fluxo de clientes continuava grande como sempre, e as coisas fluíam quase que naturalmente, permitindo que a mineira observasse tudo direto da ultima mesa no salão, onde fechava as contas do mês.

A calmaria, porém, foi interrompida pela voz apressada de Manoela, amiga que não via fazia tempo.

— Rafaella, Rafaella, por favor, larga isso, eu preciso desabafar agora, tem que ser agora! — A baixinha disse puxando a cadeira em frente a mineira e jogando-se apressada sobre ela.

— O que foi, Manu? — Rafa questionou atordoada retirando o óculos de leitura pra atender a amiga.

— Meu pai, meu pai acabou de ficar sabendo que... — Interrompeu a frase apressada na intenção de recuperar o fôlego. — A Mariana pediu a casa de volta!

Ãn? Que? — Indagou confusa.

— A Mari, Mari Gonzalez, Rafa... pediu a casa de volta, a casa onde o Miguel mora, meu pai ficou sabendo, eu tô nervosa, sabe o que isso significa, não sabe? — Explicou com a voz acelerada. — Ela tá voltando, sabe o que significa isso também?

— Significa que você tá feliz de ver ela?! — Mostrou toda sua confusão em sua entonação.

— Não! Significa que eu vou ver ela! — Respondeu deixando Rafaella ainda mais duvidosa.

— Não to entendendo... — Suspirou apoiando o rosto sobre as mãos e tentando entender a amiga.

— Eu tinha um queda gigantesca por ela, Rafa! Enorme, estrondosa, explosiva, exorbitante! — Fez drama, mas Rafa foi acometida pela saudade de Bianca ao escutar a palavra "exorbitante", já que a carioca sempre usava essa palavra pra descrever sua heterossexualidade, que agora nem sabia se era verdadeira. — Há cinco anos eu era assim, quando a gente ainda era meio feinha, meio bicho da goiaba, aí você imagina comigo como essa mulher vai estar hoje em dia?!? Eu tô passando mal! — Dramatizou ainda mais e Rafa não teve outra alternativa além de gargalhar alto.

— Ai mas você é muito dramática, e-

— Tô ainda mais agora que eu terminei com o Igor, parece que tudo em mim tá duzentos por cento mais forte! — Contou agora um pouco mais calma.

— E não ta grávida?

Há, há, há, que pergunta idiota de quinta série, Rafa, me poupe. — Pediu com a voz irônica e a mineira novamente segurou a risada.

— Eu não sabia que você gostava dela...

— Eu não gosto, era só... hum... atração sexual. — Explicou com um sorriso sem graça no rosto.

— Entendi... — Rafaella respondeu sem dar muito mais atenção ao assunto.

Manoela sempre foi meio reservada quanto a tudo que a rodeava. Nunca gostou muito de namorar, tanto que seu primeiro namoro sério, aos vinte e quatro anos, foi com Igor; e também não era de dar muita brecha pra comentários e fofocas, e nisso ela e Rafaella eram iguais.

Poderiam apostar que algumas más línguas acreditavam que Rafa nunca tinha beijado na boca e Manu ainda não tinha se permitido ir além dos beijos.

Era um claro exemplo de como as pessoas realmente desconhecem a vida alheia, mas ainda assim insistem em cuida-la.

— E como você tá com o término? — Rafa decidiu manter a conversa com a amiga, mas ainda tentando adiantar o trabalho atrasado

— Não quero falar disso, quanto menos eu pensar melhor! Estou ótima, vivendo, tranquila, aproveitando! — Respondeu tudo muito rápido e Rafa apenas limitou-se a assentir na mesma velocidade. — Vamos falar de você!

— Vou me mudar, sabia? Hoje mesmo vou levar umas coisas pra lá... conversei com a minha mãe hoje de manhã. — Revelou sem fitar a amiga.

— Jura? Meu Deus, Rafa, eu tô muito feliz por você! Finalmente vai usar aquela casa linda e maravilhosa, tudo de bom! — Exclamou a baixinha animada.

— Sim... minha mãe não ficou muito contente, mas não posso fazer nada. — Disse como se fosse um mantra pra si mesma. Desde a manhã, quando conversou com a mãe e confirmou sua decisão, Rafa vem refletindo sobre isso ser o melhor caminho a ser tomado. Ficava um pouco insegura única, e exclusivamente, por causa de Genilda.

— Ai Rafa, já ta mais que na hora... e outra, dona Genildinha parece bem; eu mesma vi ela hoje quando tava vindo pra cá e ela tava conversando com Sebastião bem na frente da delegacia... toda sorridente! — Disse sugestiva e a mineira revirou os olhos.

— Ta bom, Manu...

— Meu pai falou que a Bianca vai apresentar um projeto na associação hoje... — Manu deixou a afirmação no ar pra ver se a amiga tinha mais alguma informação.

— Sim, ela vai. — Afirmou. Tinha ficado sabendo dessa informação através de Caon, que afirmou com todas as letras que achava que o projeto não passaria da associação. O rapaz tinha certeza que Sérgio tinha aprovado o projeto por pena, ainda mais tendo certeza que ele seria negado pelo prefeito.

— Eu amei o conceito, sabe? Um festival estilo Barretos, com lama, cerveja, gente bebada, todo mundo aglomerado... bem meu estilo! — Opinou com o tom dramático e irônico; Manu tinha um estilo de atriz.

— Como ficou sabendo da ideia?

— O Sérgio contou pro meu pai que contou pra mim! — Sorriu travessa.

— Sabe que não vai ser assim né? A ideia da Bia é realmente boa...

— Pode ser boa mas eu duvido que o prefeito aceite... ele não aceitou nem quando o Rodolffo quis fazer um showzinho com o Israel no centro da cidade, imagina um festival! — Disse incrédula. Manoela cruzou os braços abaixo dos seios e fechou os olhos respirando fundo. — Eu ia amar a cidade lotada... — Divagou.

— Isso foi há alguns anos, Manu, acho que agora eles já estão mais... liberais? — Indagou dando de ombros. — Eu com certeza votaria a favor-

— Mas sua mãe votaria contra.

— Infelizmente ela tem poder de voto e eu não... mas eu acredito no plano da Bia, entendeu? Ela parecia bem dedicada no Rio. — Opinou escondendo o sorriso de lado que queria tomar seu rosto.

— Você e ela... ? — Questionou sugestiva deixando no ar e Rafaella deixou que o semblante confuso demonstrasse o que sentia no momento.

Ãn?

— Olá, com licença... — Uma mulher jovem, com cabelos castanhos claro e olhos da mesma cor, se aproximou da mesa onde as duas estavam e sorriu timidamente. — Qual de vocês é a dona? Eu queria uma encomenda pra hoje a noite e lá no balcão me disseram pra falar com a dona que tava aqui nessa mesa... — Se explicou diante da confusão das duas.

— Ah, sim, sou eu! — Rafaella disse um pouco desconcertada levantando-se da cadeira. — Rafaella Kalimann. — Se apresentou estendendo a mão pra mulher, que sorriu curiosa mas repetiu o ato.

Mariana Saad. — Apertou a mão de Rafaella de maneira firme e depois desviou o olhar.

Foi estranho.

Hum... o que exatamente você precisa? — Indagou pronta pra atender a cliente.

— Ah, é que o meu pai vai fazer um jantar em casa hoje, um jantar muito importante pra ele, e ele me disse que adora as empadas de frango desse lugar, então eu queria ver se conseguia umas vinte unidades pra hoje a noite...? — Mariana falava tudo em tom de pergunta, como se estivesse se arriscando.

— Só vinte? Acho que conseguimos sim... você é daqui? — Perguntou mudando um pouco o assunto. Não se lembrava de ter conhecido a mulher antes.

— É, mais ou menos, eu moro em Uberlândia mas meu pai mora aqui... ele tem um mercado num bairro próximo. — Revelou com um sorriso sem mostrar os dentes.

— Sério? Como é o nome dele?

— Marcelo, o nome dele é Marcelo, conhecem? — Questionou fitando Manu também, mesmo que não tivessem sido apresentadas.

— Seu Marcelo? Nossa, ele é sensacional! — Manoela se intrometeu com um sorriso no rosto. — Ele é a pessoa mais gente boa dessa cidade inteirinha! — Disse com um dedo indicador levantado.

— Ah, que bom saber que meu pai é adorado na cidade... ele é realmente uma boa pessoa. — Saad elogiou. Para ela, não haviam duvidas que seu pai era, realmente, uma das melhores pessoas que habitavam a cidade; estava sempre com um sorriso no rosto e não tinha mau tempo que o fizesse ficar triste.

— Eu adoro ele, também. — Rafa concordou sorrindo de lado na direção da mulher e travando o olhar por alguns segundos. — Enfim, você pode pegar aqui no final da tarde? Acho que conseguimos as vinte empadas pro horário das sete... — Rafaella afirmou analisando a agenda de pedidos e percebendo a disponibilidade.

— Nossa, fica ótimo! Muito obrigada, viu, Rafa... — Agradeceu fitando a mineira com um sorriso largo. Mariana realmente não parava de sorrir. — Qual o seu nome mesmo? — Questionou agora virando pra baixinha.

— Manu, de Manoela. — Se apresentou sorrindo fraco.

— Um prazer conhecer vocês! Vejo você as sete, Rafa! — Declarou antes de se afastar acenando.

Rafaella gostou de ouvir a menina a chamando pelo apelido, e gostou do sorriso dela também. Já era a segunda mulher recém chegada na cidade que deixava a mineira desconcentrada; primeiro Bianca, que ainda tinha um efeito estranho sob si, mesmo que distante, e agora a segunda, Mariana, parecia ter um imã que atraia o olhar de Rafa.

— Meu Deus, Rafaella, você entrou pro vale? — Manoela questionou com a expressão surpresa enquanto assistia a amiga sentar-se novamente, mas com o olhar preso na cliente nova, que caminhava até a porta.

— Eu preciso te falar uma coisa, Manu.

{...}

— E o que o Marcos falou? — Marcelo questionou oferecendo uma garrafa long-neck de cerveja a Bianca.

— Ele e a delegada odiaram a ideia, eu senti isso durante a apresentação toda... — Contou um pouco chateada. — mas aí o Sérgio se meteu um pouco e ele acabou dizendo que pensaria até segunda-feira. — Explicou bebericando a cerveja.

— Se tivesse esse festival eu com certeza traria todos os meus amigos de Uberlândia. — Mariana afirmou sorrindo na direção de Bianca.

Quando a reunião da associação acabou, Bianca foi direto pra casa de Marcelo, onde tinha combinado de jantar. Conheceu Mariana, a filha do dono do mercadinho, e desde então tinha sido envolvida em um assunto bem legal. Contou mais sobre sua jornada de vida á Mariana e Marcelo, escutou as aventuras da menina que também era carioca, e sentiu seu coração apertar um pouco ao ver a ótima relação de pai e filha que os dois tinham.

— Vamos ver o que o prefeito vai falar... eu sei que tem mais gente contra que a favor, mas nada que eu não esteja acostumada, sabe? — Comentou Bianca dando de ombros. — Mas enfim, vai ficar até quando, Mari? Você podia aproveitar pra conhecer umas pessoas daqui...

— Ah, eu vou embora amanhã a tarde já... esse final de semana preciso colocar algumas coisas em dia. — Respondeu sorrindo sem mostrar os dentes. — Eu vou tentar voltar mais vezes porque gostei muito... ah, pai! Esqueci de falar, mas conheci a dona da cafeteria e ela rasgou elogios pro senhor! — Mari revelou feliz, arrancando um sorriso tímido do pai.

— É? Eu adoro a Rafaella, é uma menina muito boa, muito gentil! — Afirmou relaxando a coluna contra a cadeira e tentando encontrar um bom momento pra revelar toda a verdade.

— Nossa, sim, a Rafa é muito maneira! — Bianca se intrometeu no assunto sorrindo forçada, mas tinha esperanças que o assunto continuasse, já que amava falar sobre a mineira.

Não se viam praticamente desde o dia que Rafa levou Bianca Venturotti á vinícola e ficou por lá conversando com Caon. Não foi o tipo de encontro que agradava a carioca, mas até disso sentiu falta.

— Ela parecia bem gentil, foi muito simpática, gostei dela. — Saad elogiou desviando o olhar pra taça de vinho. Bianca conseguiria conhecer aquele tipo de olhar em qualquer pessoa, ela mesma já havia reproduzido esse sinal típico algumas poucas vezes. É praticamente uma regra: quando você olha pra alguma coisa com um sorriso meio bobo, os olhos brilham, e o pensamento voa, é porque rolou interesse.

Bianca olhou exatamente dessa forma pro abajur ao lado de sua cama na noite em que beijou Rafaella no Rio de Janeiro. Lembra-se bem que perdeu alguns minutos olhando pro nada e com um sorrisinho no rosto.

— Você podia sair com a gente, Mari, só conheço gente legal. — Bianca afirmou dando um piscadinha e sorrindo de lado.

Via uma possível amizade legal e verdadeira em Mariana.

— Bianca... — Marcelo chamou com a voz mansa e conseguindo a atenção da carioca.

— Eu vou ali dentro atender um telefonema e já volto. — Mariana avisou mostrando o celular que não parecia mostrar nenhuma ligação. Bianca deu de ombros e acenou de leve.

— E então? Você pesca? — Bianca tentou continuar um assunto apontando pra rede de pesca em um canto da parte externa.

— Ah? Não, não, eu comprei pra pescar uma vez mas nunca continuei... — Revelou meio desconcentrado. — Bianca eu queria falar um assunto serio com você, na verdade. — E agora não tinha mais como voltar atrás.

Ou tinha?

— O que? Quer patrocinar o festival? — Indagou divertida e Marcelo riu negando com a cabeça.

— Infelizmente não, seria legal mas é um assunto mais delicado... Você já veio a Monte Verde antes...

— Não, essa é minha primeira vez na verdade.

— É uma afirmação, Bianca. — Marcelo confirmou desviando o olhar do rosto surpreso da publicitária.

— Afirmação? Como sabe? Só se a minha mãe me trouxe aqui quando eu era bem pequena porque eu nem lembro... — Respondeu dando de ombros e bebendo mais da cerveja; não estava entendendo completamente onde Marcelo queria chegar.

— Sua mãe e seu pai. — Corrigiu passando a mão sobre o queixo.

— Meu pai? Você conhece o meu pai? — Bianca questionou semicerrando os olhos. — Esquece, eu não quero saber.

— Seu pai nasceu em Monte Verde, na verdade, ele se mudou pro Rio de Janeiro, onde conheceu a sua mãe e casou.

— Eu disse que não quero saber! — Alterou-se batendo na mesa mas logo respirando fundo. — Desculpa, seu Marcelo, eu só... só não quero saber.

— Bianca, você provavelmente sabe apenas um lado da história, tem muitas coisas que você nem imagina que são igualmente importantes, e-

Para! — Gritou interrompendo o homem, que se assustou.

Bianca não era o tipo que se estressava facilmente, na verdade era necessário um volume alto de irritação pra tirar a morena de cabelos curtos do sério, mas Marcelo estava conseguindo tudo isso em um simples dialogo.

Seu pai nunca fez questão de conhece-la, nunca fez questão de encontra-la e contar essas histórias que Marcelo estava querendo contar agora. Não interessava saber se seu pai tinha nascido na mesma cidade que estava morando agora, não interessava porque já tinha um mês que estava ali e, se ele tivesse interesse, já teria a contatado.

— Me escuta, por favor, isso é importante pra você e é importante pra mim também! — Marcelo exclamou levantando-se da cadeira, gesto copiado de Bianca.

Importante como? — Indagou confusa franzindo o cenho.

— Se importa de sentar? — Bianca o fez. — Tem muitas coisas que aconteceram... desde o inicio o seu pai queria mais, ele sentia falta de Monte Verde, dessa cidade, das pessoas, de tudo! Ele se mudou pro Rio de Janeiro pra fazer faculdade e acabou conhecendo a Monica, — Revelou deixando Bianca um pouco mais assustada, já que o homem sabia o nome de sua mãe. — seu pai sempre teve sonhos mas nunca conseguiu um emprego que o satisfizesse, por isso ele praticamente estava sempre em casa.

— Como você sabe tudo isso? — Bianca colocou suas duvidas em palavras.

— Seu pai ficou insatisfeito e decidiu seguir o sonho dele, que estava aqui em Monte Verde, mas sua mãe não aceitou, não quis dividir a guarda e então se separaram... — Continuou ignorando a pergunta de Bianca.

— Ah, e vai me dizer que guarda compartilhada não existia na época? Que ele não teve a opção de aparecer pelo menos uma vez por ano, no meu aniversário que fosse? Uma ligação, Marcelo!

— Sua mãe não deixou, Bianca! Ela proibiu o seu pai de te ver e falar com você até que completasse vinte anos!

— Que tipo de história absurda é essa? — Disse ríspida. — Minha mãe nunca faria isso! Nunca!

De todas as pessoas do mundo, Monica era uma das poucas que Bianca acreditava ter sido boa durante toda a sua vida. Não conseguia sequer imaginar Monica ordenando qualquer coisa, muito menos proibindo seu marido, e pai de Bianca, de ver a filha; sua mãe nunca faria isso, ainda mais sabendo a dor que Bianca sentiu quando se deu conta que não tinha uma figura paterna.

— E outra, eu já tenho vinte e três anos, cade ele?

— Vocês não tiveram oportunidades... — Falou com a voz meio triste.

— Ele sabe quem eu sou, Marcelo, ele provavelmente sabe como chegar até mim, e eu? Meu registro foi mudado pro nome do meu padrasto porque eu pedi, porque ele me criou! — Afirmou enfática e Marcelo quis desistir daquele assunto naquele momento.

— Sua mãe ordenou que ninguém falasse com você, que ninguém aqui de Monte Verde, pessoas que seu pai gostava, tentasse contato... todos nós ficamos em silêncio te acompanhando de longe.

— Você me conhecia? Como?

— Uma vez sua mãe veio até Monte Verde pra tentar me convencer a voltar pro Rio de Janeiro e largar tudo que tinha por aqui... foi em 2006, um tempo depois que voltei pra cá, mas eu decidi não seguir a ordem dela, o divórcio já tinha sido assinado. Monica fez um escarcéu na cidade, gritou com todo mundo que estava perto, pessoas que você conhece, e-

— Pera aí, você tá falando em primeira pessoa como se... — Respirou fundo fechando os olhos, sem querer constatar o que achava ser verdade. — como se...

— Sim, você entendeu certo, Bianca. — Marcelo confirmou baixando a cabeça sem conseguir fitar a garota.

— Como você...? Como teve coragem de falar comigo desde o primeiro dia e me esconder isso? Coragem de perguntar sobre a minha mãe como se não soubesse! — Bianca questionou aumentando o tom de voz e mostrando toda a sua fúria.

— Havia um pacto, na cidade, um pacto que não nos permitia fazer isso... — Pontuou ainda sem fitar a carioca.

— Você só pode tá de brincadeira, né? Isso não é um filme, Marcelo, não é uma serie! — Rebateu nervosa. — E se for verdade, como vocês tiveram coragem de esconder isso? Porque não me falar desde o começo?

— Bianca, por favor! — Pediu tornando-se a olhar a carioca.

— Você pediu pro Sérgio, não é? Pediu que ele fosse até o Rio de Janeiro e me recrutasse, que eu viesse trabalhar aqui, não foi? Você disse que eram amigos desde muito cedo. — Exclamou pegando Marcelo de surpresa, aquilo não tinha nada a ver, mas muitas coisas já haviam saído dos trilhos, aquela poderia ser outra.

— Era uma chance de acabar com o pacto, de ter você de volta!

— Você podia ter aparecido quando a minha mãe morreu! Podia ter aparecido antes até, mas aquele era um bom momento de me apoiar! — Xingou levando as mãos aos cabelos.

— Desculpa, Bianca, desculpa manter isso de você por tanto tempo...

— Eu não consigo entender! A Mariana é sua filha de...

— De outro relacionamento. — Se apressou em responder. — Foi logo depois que eu me separei da sua mãe.

— Como ela nasceu no Rio de Janeiro então?

— Você quer mesmo falar disso? Ela é sua meia-irmã, Bianca! — Disse convicto.

— Eu não acredito em nada disso! Além de me deixar largada desde que eu tinha cinco anos, você ainda teve outra filha, filha essa que você criou, que você deu amor, que você ligou! Como você espera que agora eu aceite tudo isso?

— Não foi fácil assim desde o começo, minha filha! — Marcelo argumentou usando a expressão de afago como sempre usava, num tom de carinho, para todos.

— Eu sinceramente não quero saber, não quero mesmo. Quem mais nessa cidade sabia de tudo? Sabia do meu passado? — Questionou nervosa caminhando de um lado pro outro, como sempre fazia quando estava preocupada com algo. — O Sérgio sabia, não sabia? Ele sabia quando me trouxe pra cá!

— Ele é um dos únicos que sabia, Bianca.

— Que ótimo! Muito bom, nota dez pro show de atuação de vocês! — Elogiou irônica batendo as palmas. — Eu vou embora. — Determinou pegando a bolsa que estava em uma cadeira e atravessando o lugar.

— Bianca, não! — O homem pediu caminhando atrás da carioca, que já sentia os olhos molharem.

Sai de perto de mim! — Disse levantando a mão e virando-se na direção de Marcelo. — Você tirou a minha paz!

— O que foi que aconteceu? — Mariana questionou se aproximando com o cenho franzido. Não entendia porque a conversa tinha tomado aquele rumo.

— Me desculpa, Mariana, mas o seu pai é um mentiroso! — Falou saindo logo em seguida.

Mariana fitou o pai com curiosidade, mas Marcelo não conseguiu olhar na direção da filha.

Pai? — Chamou passando a mão pelo ombro do homem. — Você falou? — Questionou recebendo um aceno com a cabeça, junto de um sinal de "mais ou menos".

Bianca sempre gostou do filme A Vida em Si, mas não imaginou que em algum ponto da sua vida fosse viver experiências similares a ele. Obviamente que o filme é realista, mas a tal ponto de fazer Bianca questionar o que é verdade e o que não é? Isso já ultrapassava um pouco dos limites da realidade.

Um homem, aparentemente do bem, é capaz de deixar o ciúmes e a ira subirem a cabeça, mas mesmo assim é pintado como herói em certa realidade. Já um outro individuo, pintado como vilão, é quem realmente faz o bem, deixando suas próprias inseguranças e medo de lado, assumindo as consequências de outrem.

Até que ponto somos os vilões de nossas próprias histórias? Será que precisamos de alguém pra fazer a vilania quando cada um de nós tem a capacidade de se auto-sabotar?

O ponto de vista também influencia muito na forma como os eventos são contados, assim como o filme retrata. Numa briga, por exemplo, uma pessoa vai narrar os fatos de uma maneira, enquanto a outra pode ter uma percepção diferente.

Um menino que cresceu com uma "culpa" que não era inteiramente sua, afinal, era muito pequeno pra saber que uma pequena distração causaria a morte de alguém e a infelicidade de outra; ele pintado como vilão por alguém que sequer o conhece. Por outro lado, porém, uma menina que só é quem é hoje por razão dessa infeliz coincidência.

Quem é certo e quem é errado? Quem é vilão e quem é mocinho?

E isso também influencia na verdade absoluta. Algumas pessoas simplesmente não tem coragem de falar a verdade, de colocar os fatos sobre a mesa e encarar as consequências, e por isso, temos que nos atentar aos detalhes.

Talvez algum dia, juntando todos os pedaços, fragmentos, e pistas, você chega na verdade.

Se você vai gostar dela? Bom, aí depende do ponto de vista.

_____

Eai? Me contem! Eu tava muito ansiosa pra soltar esse cap há tempo, então por favor me deem feedback 🤠

Quero escutar algumas teorias, quem vai contar?

Spoiler: 👍🏼🎨🗼🚮

Até breve!

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