Águas de Março

By gisscabeyo

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Rio de Janeiro, berço do samba, das poesias de Drummond, da Boemia de Chico Buarque, das noites na Lapa, da G... More

Prólogo.
1 - Goodbye, USA. Olá, Brasil.
2 - Coisas que eu sei.
3 - Mais do que oculta.
4 - Não era pra ser tão fatal.
5- Oblíqua e Dissimulada
6 - Ano novo, desejo antigo.
7 - Nosso jogo é perigoso, menina.
8 - Infinito particular.
9 - Boemia Carioca
10 - Quebrando tabus.
11 - Bom dia.
12 - Canto de Oxum
13 - Agradável e lento.
14 - Tempo ao tempo.
15 - Menina veneno.
16 - Contrapartida
17 - O que é meu, é seu.
18 - Colo de menina.
19 - Meu Pavilhão.
20 - Rua Santa Clara, 33.
21 - Sensações extremas.
22 - Aos pés do Redentor.
23 - Codinome Beija-flor.
24 - Cuida bem dela.
25 - Luz em todo morro.
26 - Queime.
27 - Azul da cor do mar.
28 - Revival
29 - Desague.
30 - Axé!
31 - Vamos nos permitir - part1.
Vamos nos permitir - part2.
32 - Idas e Vindas.
33 - A lua e o sol - part1.
34 - A lua e o sol - part2.
Bônus - Part. 2
Spin off - part 1.
AVISO - LIVRO

Bônus - Part. 1

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By gisscabeyo

N/a: Oi, meus amores! Pensaram que aquele era o fim, né? SURPRISE! KKKKKKKKK voltamos com um bônus, muitas pessoas nos pediram no Twitter e resolvemos atender a esse pedido. Aqui está! Como ficou grande, dividi em duas partes, onde a primeira será postada hoje. Esperamos que gostem, pois foi escrito com muito carinho, só para mostrar um pouco do que se passou na vida do nosso casal favorito depois do casamento. Nos digam o que acharam depois. Ignorem os errinhos se eles existirem. Vou deixar nossos TT's aqui embaixo para caso queiram tirar alguma dúvida. Até e boa leitura!

@ gisscerqueira

@ HvonKaiser

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"Quanto ao tempo te esperei e o passado assim passou, hoje o céu mudou de tom pra falar do nosso amor. "

Quanto ao tempo – Ivete Sangalo e Carlinhos Brown.

5 anos depois.

Lauren POV

Dizem que o tempo é uma verdadeira caixinha de surpresas, recheada de emoções variadas, vagando entre a tristeza profunda e a felicidade extrema. O que é que o tempo não cura? O que é que o tempo não muda? Mas nem sempre a mudança é ruim, e posso afirmar que pra mim, em minha vida, todas as mudanças e novos ciclos eram profundamente satisfatórios. Eu havia tomado gosto pela vida, viver passou a ser um prazer pra mim e quanto mais os anos passavam, quanto mais velha eu ficava, mais jovem eu me sentia. Sentia-me mais bonita, mais gostosa, mais inteligente, mais humana, mais amada. Por que iria eu, no auge da felicidade, reclamar do tempo? Que fosse muito bem-vindo tudo o que os novos tempos tinham a oferecer pra mim.

Ah, e como aqueles anos haviam sido maravilhosos para nós. Tantas coisas boas aconteceram, tantas conquistas, tantas descobertas, tantos laços criados, tantas raízes fincadas. Vou começar falando sobre ela, é claro, minha esposa, o amor da minha vida;

Camila.

Ou como eu fazia questão de frisar, minha senhora Jauregui.

Que mulher! Você pode achar que existe nesse mundo mulher mais bonita que a minha, mas eu digo, não há. Ela estava magnífica em seus vinte e nove anos recém feitos, poderosíssima ocupando uma cadeira exclusiva em sua sala na sede da Petrobrás, no centro do Rio de Janeiro. Passou em um concurso em primeiro lugar logo após nosso casamento, para trabalhar na multinacional como Engenheira Química, e desde então, exercia sua função com maestria. A inteligência e a perspicácia eram seu ponto forte. Era ela quem estava a frente de grandes projetos de produtos petrolíferos, petroquímica, criando-os e executando-os de forma exemplar, sem deixar erros. Fez duas pós-graduações e já estava planejando mestrado e doutorado em engenharia bioquímica. Seu salário inicial? R$ 12,800.00, sofrendo ajustes todos os anos. Camila era ou não era uma mulher de alto patamar? Eu tinha muita, muita sorte.

Ela abriu mão dá herança da mãe e passou a dar esse dinheiro para Sofia, fazendo com que a jovem, já com dezenove anos e cursando contabilidade, recebesse duas pensões vitalícias. A família Cabello parecia gostar dos números.

Camila trabalhava de segunda á quinta-feira, as vezes visitava indústrias e plataformas de petróleo espalhadas pelo Brasil, acompanhando os processos de desenvolvimento dos seus projetos, armada com terninhos femininos de corte fino e seus sapatos de solas vermelhas Louboutin. Vestida para matar! E eu estava sempre disposta a morrer.

Nossa vida a dois era uma delícia, cada dia ao lado dela me dava mais certeza ainda de que nascemos uma para a outra. Dividíamos as contas, a cama e os problemas, raramente brigávamos, pois sabíamos conversar quando havia algo de errado antes de explodir e causar uma briga. Se a briga ocorresse, era sempre por ciúmes, tanto meu quanto dela, mas logo depois estávamos transando loucamente como se nada tivesse acontecido. Estar com Camila era uma aventura maravilhosa, ela me levava sempre para a borda, em todos os aspectos. Me mimava de todas as formas possíveis, fazendo com que eu me apaixonasse por ela todos os dias, mais uma vez. Havia eu, havia ela e havia o nós. Sabíamos quando queríamos estar juntas e quando queríamos estar sozinhas, fazendo algo individualmente. Respeitávamos nosso espaço acima de tudo, pois mesmo em um casamento, a individualidade precisa existir, para que as coisas sigam sempre saudáveis. E tudo com Camila era saudável, não havia nada no nosso relacionamento que fizesse com que eu me sentisse pressionada ou decepcionada. Eu era grata pelo meu casamento, grata pela minha esposa, com toda a certeza eu não tinha do que reclamar.

E a melhor parte, ah... Eu ainda nem cheguei nela.

Pois falando em Camila... ouvi meu celular tocar estridente enquanto eu saía do elevador, tentando equilibrar as sacolas do mercado, minha bolsa, meu tablete e o celular na curva do ombro e o ouvido, o atendendo meio atrapalhada.

: - Oi, vida! - cumprimentei-a, parando em frente a porta do nosso apartamento e colocando as sacolas no chão para procurar as chaves na bolsa. – Está tudo bem?

: - Oi, meu amor! – Sorri ao ouvi-la, mas sua voz um pouco fraquinha me deixou preocupada. Achei as chaves e abri a porta, pegando as sacolas. – Já chegou em casa?

: - Acabei de chegar, passei no mercado para comprar umas coisas pra você. – Fui recebida por Elis e seus dois filhotinhos, de pelagem tão negra quanto a dela. Lindos! Os acariciei e pus as sacolas sobre o balcão da cozinha. – Vou tomar um banho, descansar um pouco e vou praí te ver.

: - Amor... – Ela disse baixinho e meu coração acelerou no mesmo segundo. – Não quero te deixar nervosa, mas acho melhor você vir pra cá agora... Minha bolsa estourou, Lauren, chegou a hora.

Querem saber a melhor parte? A melhor parte é essa.

: - O quê? – Eu quase gritei, me sentindo tonta e tive que me apoiar com a mão livre na bancada da cozinha para não cair. – Estourou que horas? Você está bem? Por que não me ligou antes? Meu Deus, Camila! Eu estou indo praí, só preciso pegar umas coisas e...

: - Amor, calma, por favor! – Ela disse com a voz um pouco agitada e imaginei que estivesse sentindo dor. Comecei a suar e a andar pelo apartamento em passos rápidos, recolhendo algumas coisas pelo caminho. – Eu estou bem, comecei a ter contrações um pouquinho mais fortes só agora, e a Dra. Beth disse que muito provavelmente será um trabalho de parto longo, então dirija com calma, por favor!

: - Por que não me ligou assim que sua bolsa estourou, Camila? Que horas foi isso? – Entrei no closet que agora pertencia a ela também e peguei uma pequena mala, colocando as primeiras peças de roupas que achei pela frente dentro dela, ouvindo-a gemer de dor baixinho. Meu coração se apertou. – Amor?

: - Oi... desculpe, mas eu não queria te apavorar e te fazer abandonar o trabalho para vir correndo, você já faltou muito por minha causa essas semanas, então esperei até o horário em que você normalmente sai para te ligar. Tem três horas que entrei em trabalho de parto.

Fechei a mala com a mão livre e fui tirando os saltos apressada, junto com as roupas da forma que eu podia. Estava completamente apavorada, nervosa, ansiosa. Eu sentia que poderia infartar.

: - Eu já estou chegando, aguenta firme, está bem? – Ela concordou com um som nasal e eu entrei no banheiro tirando meu sutiã para tomar um banho rápido. – Quer que eu leve alguma coisa para você daqui? Alguma roupa?

: - Traz as mantas das meninas que eu esqueci no quartinho delas, por favor! – Entrei no box, fazendo tudo no automático. – E só vem... preciso de você. Estou com medo.

: - Eu estou indo, meu amor, estou indo. – Quis chorar. – Vou tomar um banho correndo e já já estou aí. Me espere! Eu te amo muito!

: - Eu também te amo!

Desliguei o celular e quase o taquei no chão, entrando embaixo da ducha quente e rompendo em um choro de pura alegria e ansiedade.

É, acho que já posso começar a contar sobre a melhor parte.

Camila e eu seríamos mães. Mães de gêmeas. Mães de duas meninas.

Não fazia muito tempo desde que resolvemos aumentar a nossa família, ter filhos sempre esteve em nossos planos, então decidimos que aquele era o momento perfeito para desejá-los, uma maré de felicidade era um bom cenário para o nascimento de uma criança.

Começamos a trilhar esse caminho no consultório da Dra. Beth, Ginecologista e Obstetra de Camila. Visitamos inúmeras clínicas de fertilização in vitro, pesquisamos confiáveis bancos de doação de sêmen e decidimos por um da Espanha, onde encontramos um doador com as características físicas bem parecidas com as de Camila. Logo, a Dra. Beth e sua equipe fertilizaram o meu óvulo com o espermatozoide do doador anônimo e transferiram o embrião para o útero de minha esposa. As chances de darem certo eram de cinquenta por cento, não sabíamos se o embrião iria se fixar no endométrio, se iria se desenvolver, então esperamos. E tamanha foi a surpresa quando descobrimos que sim, havia dado certo, Camila estava grávida e não apenas de um bebê, mas de dois. Gêmeos idênticos.

Ficamos completamente chocadas e radiantes, mal podíamos nos conter. A Dra. Beth ficou impressionada, disse que as chances de ocorrer uma gravidez gemelar ao se transferir apenas um embrião para o útero eram muito pequenas na fertilização in vitro, e que havíamos conseguido realizar algo muito especial, que ela viu acontecer poucas vezes em toda a sua carreira. Se aquilo não era uma benção dos céus, não sei o que poderia ser.

A gravidez de Camila foi completamente tranquila, sem nenhum problema ou mal estar. Ganhou um pouco de peso, seus seios aumentaram muito de tamanho, deixando-a ainda mais bonita e sexy. A maternidade lhe caía bem, eu amava fazer amor com ela enquanto a admirava, dizendo o quanto ela estava linda grávida, o quanto eu a desejava ainda mais naquele momento. Acariciava sua barriga o tempo todo, beijava, conversava com as meninas e elas respondiam a minha voz com pequenos chutes dentro do útero. Camila dizia que formaríamos uma gangue contra ela e acho que formaríamos mesmo. Eu amava Camila com tudo de mim, mas passei a ter dois maiores amores na vida. Minhas filhas, minhas garotinhas.

Eu estava realizada, prestes a ser mãe, casada com uma mulher maravilhosa, bem sucedida financeiramente, espiritualmente, vivendo num meio familiar estável, cheio de amor, carinho, respeito. O que mais eu poderia querer?

Já quase no final de sua gestação, eu comecei um tratamento de lactação induzida, para que também pudesse produzir leite e amamentar junto com Camila as nossas filhas. A amamentação é a etapa mais importante na vida de um bebê e eu queria poder desfrutar desse momento maravilhoso junto dela.

Quando Camila completou nove meses de gravidez, surpreendo a todos, pois gêmeos costumam nascer antes das quarenta semanas, ela tirou licença do trabalho oficialmente, estava bem inchada, a barriga tão grande e redondinha mal permitia que ela andasse por dez segundos sem se cansar. Mãe Vitória jogou Búzios para ela, a pedido da mesma, a fim de ter previsões sobre a segurança das bebês e seu parto. Oxum ordenou que ela se recolhesse ao terreiro para dar à luz as meninas lá, junto de seu povo e aos cuidados dos Orixás. E assim foi feito, no dia seguinte, Camila "mudou-se" para o terreiro, onde a acomodamos com todo o conforto possível em um dos quartos presentes naquele enorme sítio, atrás do barracão, que servia de descanso para os filhos de santo depois de longas jornadas de função. O quarto foi arrumado com toda a atenção necessária para recebê-la, com uma cama confortável, lençóis brancos, obviamente, suas camisolas de algodão brancas, os dois bercinhos de palha de nossas nenêns, feitos com todo o carinho do mundo por nossas irmãs de santo mais velhas, e todo o enxoval delas também foi feito pelas mãos daquelas senhoras, desde a mais simples costura até o mais bonito bordado. Camila estava sendo cuidada com muito amor, mimo e axé. Ali ela ficou por uma semana, até aquele exato momento em que nossas filhas resolveram que estava na hora de virem ao mundo.

Ela decidiu que queria um parto humanizado, pois sua gestação foi tranquila e sem problema algum. A Dra. Beth recomendou que o parto normal fosse realizado no hospital, por serem dois bebês e os riscos de complicações serem maiores. Mas Camila não abriu mão de ter nossas filhas dentro do nosso terreiro, se Oxum ordenou que o parto fosse realizado lá, era porque tudo daria certo. Sendo assim, ficou combinado que, quando chegasse a hora, a Dra. Beth faria o parto com o auxílio de duas enfermeiras obstétricas e com todo o equipamento necessário para monitorar Camila e as meninas o tempo todo, também deixaríamos uma ambulância a disposição do lado de fora, só por precaução. Seria um trabalho de parto longo, exaustivo, mas que valeria a pena, com toda a certeza do mundo.

Fizemos uma grande obra no apartamento para transformar o quarto de hóspedes no quarto das crianças. Escolhemos branco e lilás para as paredes e o enxoval. Havia desenhos feitos a mão em toda a extensão do quarto, como borboletas, pássaros, árvores, trazendo para aquele ambiente um pouco da natureza. Os berços eram brancos com dossel, as cômodas também eram brancas com portas de vidro, poltronas de balanço acolchoadas, também brancas e um grande tapete antialérgico cobria o chão, em lilás. O teto, branco fosco, foi decorado com diversas frases e rezas em yorubá, que festejavam o sagrado da vida e comemoravam o nascimento de gêmeos.

Para os Yorubás e para nós, de religião de matriz africana, o nascimento de gêmeos na família é um presente dos deuses, é um acontecimento sagrado. Os gêmeos são crianças sagradas e especiais e devem ser tratadas com todo o cuidado e adoração. É uma honra que precisa ser festejada todos os dias. Os Orixás gêmeos, Ibejí, haviam se materializado em nossa família, no útero de Camila e era nosso dever, como mães, zelar por eles com muita, muita alegria. Gêmeos trazem a sorte para as suas famílias, são a representação da fortuna, de tudo o que vem em dobro. Bejiróó!

Camila e eu ainda não havíamos escolhido os nomes das meninas, e essa escolha só aconteceria depois do primeiro jogo de Búzios delas, logo após seus nascimentos. Feito isso, seus nomes só seriam anunciados em voz alta diante de toda a comunidade numa cerimônia chama "Ikomojádè", que significa 'dar nome ao recém nascido', ao oitavo dia após o nascimento. É o batismo Yorubá. Só assim, após o ritual, Camila poderia ir para casa com nossas gêmeas, já batizadas e abençoadas.

Enquanto pensava em todos os presentes que o destino estava me dando, tomei o banho mais rápido de toda a minha vida. Sai do banheiro com pressa, me secando, enrolando o cabelo na toalha e correndo para o closet. Vesti uma calça jeans qualquer, uma regata branca, penteei o cabelo de qualquer forma e peguei a pequena mala que havia arrumado, me certificando de que minhas roupas de função e guias estivessem lá dentro. Não haveria função aquele dia, mas como eu estaria dentro do terreiro, precisava vestir minhas roupas brancas. Eu estava tão nervosa que já ia esquecendo as mantas das nenêns, que Camila pediu para que eu levasse. Fui até o quartinho, peguei os pequenos pacotes que embrulhavam as mantas e coloquei dentro da mala. Me senti tonta e parei, me apoiando com uma das mãos na cômoda bonita que tomava uma das paredes. Ergui a cabeça e respirei fundo.

: - Calma, Lauren, calma! – Eu disse para mim mesma, com a única intenção de me tranquilizar, pois aquele nervoso que me fazia tremer insanamente me atrapalharia de dirigir. – Está tudo bem, calma!

Deslizei a mão livre pelo cabelo e olhei ao meu redor. Senti medo, pela primeira vez na longa gestação de Camila, eu senti medo, medo de não ser uma boa mãe para aqueles bebês, medo de falhar como esposa, medo de não dar conta do trabalho, do terreiro, da casa. Senti medo e aquele sentimento perturbador me apavorou ao extremo. Seríamos mães de primeira viagem e confesso que a insegurança me dominou.

Sem ter mais tempo para pensar, sai do quartinho delas e passei quase correndo pelo corredor, tropeçando em Joker e quando cheguei na sala, quase morri de susto ao ver a Cigana parada lá, perto da porta da varanda. Chega perdi o ar dos pulmões.

: - Minha velha, que susto! – Eu disse ofegante, levando a mão ao peito, apoiando a mala no braço do sofá. – Me pegou de surpresa dessa vez.

A ouvi gargalhar, aquela gargalhada que espantava todos os males da minha vida. Ela me encarou com um sorriso grande, apoiando as costas dos dedos da mão direita no quadril.

: - Vai com calma, minha menina! – Ela disse com sua voz suave, se aproximando de mim. Eu estava tão acostumada com a presença dela, que era como se estivesse conversando com alguém de carne e osso. – Yemanjá quer calma agora, não pressa.

Soltei um suspiro longo, esfregando meu rosto com as mãos enquanto abaixava a cabeça. Meu coração batia tão rápido, eu mal podia conter as lágrimas de euforia em meus olhos.

: - Mas estou tão nervosa, tão... – A olhei de novo e ela não mais sorria, me encarava séria, em uma expressão acolhedora. – Não sei muito bem como agir, quero correr, não sei bem o que fazer. Serei mãe, não sei como é ser mãe, como cuidar de uma criança e esses sentimentos parecem me consumir. Felicidade, amor e medo.

: - Minha menina, não venha dizer pra mim que não sabe o que é ser mãe, pois você nasceu mãe. – Ela bateu em seu peito e depois apontou pra mim. – Sou tua pomba-gira, tua protetora e te conheço como conheço a minha mão. Você não será mãe, você é mãe. Tudo está aí, dentro de você.

Eu chorei em silêncio, mas não era um choro triste, era uma mistura de sentimentos novos, não sabia definir, tudo o que jamais senti. Talvez não pudesse viver, num futuro, algo melhor do que aquilo. Sentia que iria renascer naquelas crianças. Era o sentimento mais bonito da minha vida.

: - Obrigada, minha velha! – funguei baixinho e a vi sorrir. – Obrigada por estar sempre aqui por mim. Não sei o que seria de mim sem a senhora e meus Orixás.

: - Sempre estarei. – sua voz era como um cintilar de sinos tão suave, que me acalmava a alma. - Yemanjá mandou te avisar que quem manda na tua vida é ela e que filha dela nasceu com o dom de cuidar, proteger, criar. Falou para você não esquecer, minha menina, que ela estará lá nesse momento tão importante, assim como esteve em todos os outros. Pediu para que tenhas calma e confie nela, pois tudo dará certo. Hoje um novo ciclo começa na sua vida, e você tem a bênção e a ajuda dela. Apenas confie.

Dito isso, ela se foi, tão rápido como um sopro de vento. Fiquei ali parada, olhando para a porta da varanda, o coração aos prantos e a alegria me esmagando inteira. Fechei meus olhos e respirei fundo, agradecendo minha mãe em pensamento, pedindo força naquele momento, e entregando nas mãos dela minha segurança e a de minha família.

Que assim seja!


Já na estrada a caminho de São João de Meriti, liguei para minha família e avisei que Camila havia entrado em trabalho de parto. Eles enlouqueceram, queriam a todo custo ir para lá acompanhar o nascimento das netas, mas de nada adiantaria, já que eles não poderiam vê-las e pegá-las até o "Ikomojàdé", então os orientei a ficarem em casa e prometi que mandaria fotos assim que elas nascessem. Minha mãe já estava chorando, ao fundo, ouvi os berros de Ana ansiosa para ver as sobrinhas. Aquela alegria contagiava a todos, não só eu e Camila.

E por falar em Ana, ela estava linda, agora com dezesseis anos. Havia se tornado um mulherão, aparentando ter mais idade do que realmente tinha. Ganhou corpo, muita inteligência, era uma aluna exemplar e nunca tirava notas vermelhas ou ficava de recuperação. Muito bem educada, tomava bênção com meus pais ao acordar, ao dormir, já havia escolhido a faculdade que faria e estava envolvida em várias ONG's no Cantagalo e em outras comunidades, fazendo trabalho social. Eu tinha muito orgulho dela, nossa relação era linda e éramos muito grudadas. Ela estava sempre comigo e eu estava sempre com ela, se não fosse pessoalmente, era mentalmente. Eu a amava demais e cuidava dela como cuidei de Taylor. Irmã que a vida me deu, e que ocupava um espaço enorme no meu coração.

Quando parei em um sinal, já na avenida Brasil, me estiquei para ajeitar a guia da Cigana que estava pendurada no espelho retrovisor interno e tomei um susto quando meu celular começou a tocar, me fazendo atendê-lo no viva-voz. Eu mal pude falar, pois a pessoa me recepcionou gritando;

: - LAUREN, EU NÃO TÔ ACREDITANDO QUE MINHAS AFILHADAS VÃO NASCER, CARALHO. EU TÔ SURTADA!

Era Dinah, eu caí na gargalhada a ouvindo e sua alegria me trouxe sensações maravilhosas. O sinal abriu e eu avancei, me certificando de não correr no trânsito.

: - Imagina como eu estou, minha amiga, imagina como eu estou. – Apoiei o braço esquerdo na janela ao meu lado, dirigindo com apenas uma mão. – Não sei se choro, se rio, se grito... Não sei o que fazer.

: - Deixa que a gente grita por você, pois Normani e eu já demos cada berro aqui dentro de casa que mais um pouco e somos expulsas a tiros do Cantagalo.

Dinah ficava bastante tempo na casa de Normani, que não trabalhava mais na empresa comigo, já que havia se formado e, com o dinheiro da rescisão da Microsoft, abriu um pequeno negócio para si, como estilista. Ela tinha uma loja de roupas ali em Ipanema, uma loja grande, por sinal. Ela desenhava todas as peças que vendia e costurava muitas delas também, estava fazendo tanto sucesso que já planejava sua própria grife.

Ela e Dinah estavam noivas e pretendiam se casar no começo do próximo ano, em um sítio em Petrópolis, ao lado de uma casa de Serra que Dinah comprou para elas. As duas ajudavam mama Drea em sua pensão quando não estavam trabalhando, pois o negócio cresceu a tal ponto, que tiveram que comprar o terreno ao lado para dar continuidade. Era sucesso total, as pessoas da zona sul subiam o morro para provar a comida de mama Drea, fazendo dela uma senhora realizada sem motivos para reclamar de sua vida.

: - Eu juro que estou quase gritando aqui dentro do carro. – Eu ri ansiosa, mordendo o canto de minha bochecha. – Queria vocês lá pra me darem força, sinto como se fosse desmaiar a qualquer momento.

: - Pelo amor de Deus, Jauregui, não vai inventar moda de infartar agora e deixar Camila sozinha com duas crianças pra criar, eu te ressuscito na porrada, hein!

Dinah comentou risonha, me fazendo rir também e dissipando um pouco daquela tensão que se instalou em meu corpo.

: - Vira essa boca pra lá. – Suspirei, dobrando a esquerda e entrando na rodovia Presidente Dutra. – Eu tô velha, mas ainda tô inteira, okay? Não vou morrer tão cedo.

: - Não vai mesmo, tá gostosa a beça. E como dizia Normani, "panela velha é que faz comida boa". – Ela gargalhou.

: - Vai se foder, Dinah! – Eu não conseguia parar de rir. – Eu prestes a ser mãe e você me zoando. Agora você tem que me respeitar, serei chefe de família.

: - Que chefe? Quem manda na tua casa é a Camila, querida. Tu é chefe só nos teus sonhos mesmo, iludida. Você que lute!

: - Ah eu ó... tchau, sinceramente, viu! – Dinah gargalhava da minha cara e pela risada de Normani ao fundo, percebi que ela havia colocado no viva voz. – Eu vou desligar, já estou chegando... te aviso quando as meninas nascerem, está bem?

: - Tá bem, mamãe. Fica calma, okay? – soltei um suspiro longo, tentando trazer aquela calma que parecia não existir. – É sério, Lauren, fica calma, Camila precisa de você no momento e suas filhas também. Transmita calma a ela. Tente!

: - Eu vou tentar... – Eu iria mesmo, só não sabia se conseguiria. – Obrigada pelo apoio, eu te amo, você sabe.

Aquela era uma verdade absoluta.

: - Também te amo, Jauregui! Amamos, Normani e eu. Até mais tarde. Tranquilidade.

: - Até!

Dinah desligou e mais uma vez, fiquei só com meus pensamentos.

Era 17 de Agosto, dois dias depois do aniversário de Camila, isso significava que as meninas também seriam leoninas. Ah, meu Deus! O que faria eu com três leoninas dentro de casa? Mal conseguia lidar com uma quando ela resolvia rugir de todas as formas, imagina com três? Eu estava perdida. Felizmente perdida.

Quando estacionei no portão do terreiro, meu coração voltou a acelerar. Abri a porta do carro, peguei a mala no banco de trás e sai, sentindo o vento bagunçar meus cabelos. Olhei para o céu, estava feio, fechado, iria chover a qualquer momento. Contornei o veículo e entrei no sítio, observando como se encontrava todo iluminado mesmo naquele dia ausente de função.

Encontrei com Joyce, uma yawô recém-feita, filha de Oxóssi, no meio do caminho. Ela tomou minhas mãos e beijou, onde fiz o mesmo para com ela.

: - Bença, mãe ekedy! – Ela disse com um sorriso tímido, me fazendo sorrir também. "mãe", era assim que eu era chamada ali dentro e aquilo me fazia muito feliz. – Mãe Vitória mandou eu vir recebê-la.

Eu ia perguntar como ela sabia que eu estava chegando, mas logo ri, negando com a cabeça. Mãe Vitória sabia de tudo, não sei por que eu ainda me surpreendia com sua vidência.

Começamos a andar na direção do barracão, onde eu observava uma pequena movimentação.

: - Está tendo o que hoje? Não fui informada de nada. Trabalho de última hora? – Ergui as sobrancelhas, curiosa.

: - Mãe Vitória mandou arriar comida pra Oxum e Yemanjá, pra ajudar no parto de Camila. – Apenas fiz um sinal de concordância com a cabeça enquanto subíamos as escadas no barracão. Por isso não fui avisada, pois como a oferenda era de minha esposa, eu não podia tocar. – O banho da senhora está pronto, vou levar para o banheiro para que possa se banhar. Quer ajuda?

: - Não precisa, consigo sozinha. – Fiz um carinho em seu ombro, sorrindo para ela com ternura. Era uma boa menina. – Só leve para mim, está bem?

Joyce concordou e saiu, indo na direção da cozinha. Suspirei, cumprimentando algumas irmãs ekedys que estavam fazendo a oferenda de Camila e logo fui para o banheiro, aguardando meu banho. Normalmente, era mãe Vitória quem nos dava os banhos de ervas, que tomávamos sempre antes dos xirês ou de qualquer outra função. Mas naquele momento, imaginei que ela estivesse com Camila e por isso eu teria que tomar sozinha, respeitando e seguindo o ritual.

Após meu banho, já mais calma pelo poder daquelas folhas sagradas, coloquei minha roupa branca de função, saia simples e bata rendada, sem pano de cabeça, deslizando no pescoço uma única guia fina de minha mãe. Prendi o cabelo em um nó frouxo apenas para não me atrapalhar. Os fios estavam bem maiores, caindo até o meio de minhas costas, pois eu não podia mais cortá-los curto, só as pontas, precisava mantê-los longos e bem cuidados, por ordem de Yemanjá. Suas filhas não podem ter cabelo curto, é quizila dela. O cabelo é a vaidade de Yemanjá e dele precisamos cuidar muito bem para que estejam sempre belos. Nos traz sorte.

Já pronta, saí do barracão e dei a volta na construção com a pequena mala na mão, caminhando na direção dos quartos que ficavam mais afastados, no final no sítio, ao lado de um pequeno lago. Eu amava tanto aquele lugar, me trazia paz, muita paz.

Bati na porta antes de entrar e quando o fiz, meu coração disparou ao ver Camila, como se eu estivesse voltando para casa. Lá estava ela, sentada na beira da cama, um pouco curvada para frente, vestida numa camisola simples branca, cabelo preso também em um nó, no pescoço, sua guia de Oxum e em sua mão direita, segurava uma guia de Yemanjá. Mãe Vitória acariciava suas costas na altura da lombar, sussurrando uma reza muito bonita que eu amava demais. Ela sorriu ao me ver entrar, mas notei naquele sorriso todos os traços do incômodo e da dor.

: - Oi... – Eu disse baixo, fechando a porta atrás de mim. Antes de me aproximar dela, pedi bênção a mãe Vitória, que me abraçou com carinho e logo depois me ajoelhei aos pés de Camila, olhando para ela com amor. – Como está se sentindo?

: - Bem... – Ela fez uma careta e eu peguei sua mão esquerda nas minhas. Estávamos em solo sagrado e sempre evitávamos nos tocar, mas aquele era um momento especial e diferente, ela era minha esposa e daria a luz às minhas filhas, então eu podia e devia ampará-la, claro, com todo o respeito. – Com dor, mas bem. As contrações estão ficando mais frequentes e fortes.

: - Elas estão agitadas? – Perguntei ao acariciar sua barriga com a mão direita, mantendo a outra na sua. Meu coração estava aquecido, como eu amava aquela mulher e o que ela trazia pra minha vida.

: - Agora não, mas estavam. – Camila riu baixinho, fazendo mãe Vitória rir também. – Estavam me dando cada chute nas costelas que perdi o ar.

: - Tive que rezá-las, minha filha. – Mãe Vitória disse com um sorriso doce, massageando a lombar de Camila. – Elas estavam fazendo uma verdadeira bagunça aí dentro.

Me peguei sorrindo de forma boba, acariciando e adorando a barriga de Camila. As meninas eram agitadas, a que ficava do lado esquerdo era mais agitada do que a que ficava do lado direito. As vezes Camila não conseguia dormir, pois ambas se mexiam muito, se esticavam. Tinha vezes que ficávamos assustadas, pois a barriga dela ficava com uma forma estranha de tanto que as duas tentavam se virar, mas como não havia mais espaço, acabavam por ficar em posições incomodas para Camila.

: - Sinto que serão levadas... mas tudo bem, eu não vou reclamar. – Me curvei um pouco para frente e depositei um beijo doce em sua barriga coberta pelo tecido de algodão, para logo depois me levantar e me sentar ao seu lado. – Onde está a Dra. Beth?

Perguntei curiosa, pois não a vi no terreiro e nem as enfermeiras.

: - Está vindo, estava presa no trânsito, já começou a chover para aqueles lados de lá. – Camila gemeu baixinho de dor, esticando a coluna e apertando minha mão com força. – Ah, uma contração, uma contração daquelas...

Ela tentava não fazer barulho, mas falhava e eu via todo seu esforço para manter o controle. Se eu pudesse, passava sua dor pra mim. Acariciei sua mão.

: - Respira fundo, filha, puxa o ar bem devagar e solta pela boca... – Mãe Vitória dizia com ternura, mantendo uma mão na lombar de Camila e outra no pé de sua barriga. – Isso, assim, inspira, expira, inspira e expira. Respirar fundo alivia a dor e evita sofrimento nas nenêns.

: - Lauren... – Camila soltou um suspiro longo quando a contração se foi, e se ajeitou mais para trás na cama, ainda recebendo as massagens da mãe na barriga e nas costas. – Sabia que a mãe já fez vários partos onde ela morava lá na Bahia?

Fiquei surpresa com aquela informação, sabia que Mãe Vitória era Baiana, mas não que foi parteira.

: - É mesmo, mãe? – Abri um sorriso de canto. – A senhora é mesmo uma mulher que faz tudo, viu? Não há nada nesse mundo que a senhora não faça, incrível!

: - Ah, minha filha, lá na roça era assim, se a gente não fazia o parto das crianças, as mães morriam, pois não tinha hospital não. Já trouxe muita criança pra esse mundo, tantas que já até perdi a conta.

Ela contava com emoção, seus olhos brilhavam e eu notei naquelas palavras a saudade, a nostalgia. Admirava demais aquela mulher e sua força.

: - Só podia ser filha de quem? De Yemanjá. – Camila riu, tornando a respirar fundo.

: - Todos os bebês veem ao mundo pelas mãos de nossa mãe Yemanjá. É ela quem realiza todos os partos, que ampara as novas vidas. – Ela dizia me encarando, descansando a mão direita ao topo da barriga de Camila. – Quando nascem, mãe Yemanjá entrega os bebês nas mãos de seus pais Orixás. Mas independente de quais sejam os Orixás protetores desses bebês, Oxum também cuida e os protege desde o útero até que eles completem sete anos, pois ela é a deusa da maternidade, da fecundidade das mulheres e sendo assim, protege suas crias. Toda mulher grávida e toda criança é protegida por Oxum e Yemanjá. Elas são mãezinhas muito doces e zelosas, que não desamparam nunca.

Eu não conseguia colocar em palavras o quanto eu amava quando mãe Vitória começava a nos contar sobre os Orixás, a nos explicar por que faziam isso e aquilo, porque as coisas aconteciam dessa forma. Ela tinha uma paciência invejável com todos nós, sempre dispostas a tirar nossas dúvidas. Eu era iniciada há seis anos e mesmo assim sentia que não sabia de tudo sobre o Candomblé, e que nem mesmo um dia saberia. Aquela religião era um poço de mistérios que nem os mais antigos tinham total conhecimento. Sempre havia mais, muito mais para saber, aprender. Eu amava com tudo de mim estar ali, cuidando daquele povo, dos Orixás, de Obaluaiyê que me escolheu para ser mãe dele, sua ekedy e me abençoava profundamente com sua sabedoria, saúde, paciência, humildade. A meus pais, Yemanjá e Ogum, que eram por mim em todos os momentos, seja lá qual fosse a situação. A Olorun, também conhecido como Olodumarê, mundialmente adorado como Deus. Eu era grata a cada um deles por me permitirem viver aquela vida, por ter a honra de construir uma família e poder cuidar dela até meu último dia. Gratidão, gratidão e gratidão! Odoyá! Ogun iéè! Atôtô!

As horas foram passando devagar, parecia que o senhor tempo não tinha pressa. A última vez que olhei no relógio eram quase dez e meia, e a Dra. Beth junto das duas enfermeiras não saiam do lado de minha esposa, observando-a, monitorando os batimentos cardíacos das meninas, verificando suas posições no útero através de um aparelho de ultrassom portátil. Todos os olhos estavam voltados para elas.

Ela estava sentindo mais dores, as contrações continuavam indo e vindo no mesmo intervalo de tempo, e sua dilação estava em três centímetros, evoluindo devagar. Perguntei a Dra. Beth se era normal, ela disse que sim, pois era o primeiro parto que Camila enfrentava e as coisas costumam a se desenrolar mais devagar mesmo, e podia durar de 12 a 48 horas, que eu não precisava me preocupar porque estava tudo bem. Com isso, procurei me tranquilizar.

Meus pais, Ana, Taylor, Mani, Dinah, Sofia e Alejandro não paravam de mandar mensagens no grupo que fizemos no wpp, intitulado "Gêmeas babadeiras", que foi, obviamente, colocado por Normani.

Minhas filhas ainda nem haviam nascido e já tinham apelidos, mesmo sem nomes. Dinah já havia até planejado qual jogo no Maracanã levaria as afilhadas a primeira vez. Mas só se eu tivesse morta que deixaria ela levar minhas pequenas no Maracanã, nem por cima do meu cadáver.

Naomi me encheu de áudios pelo celular da mãe, animada com o nascimento das primas, ela era a criaturinha mais linda desse mundo todo, uma verdadeira japonesa. Ela já estava com quase 7 anos, era muito inteligente, falava japonês e português perfeitamente. Éramos muito grudadas, Taylor vinha com ela ao Brasil duas vezes por ano nos ver, e chegaria pela próxima semana para visitar Camila. Seu olhar, a forma que ela andava ou falava eram idênticas a ele... A Christopher, não havia dúvidas que possuíam a mesma alma. O amor que eu tinha por ela não era mesmo apenas dessa vida.

Em determinado momento, lá pela meia noite, a Dra. Beth orientou Camila a andar um pouco, para ajudar na dilatação e contrações. Mãe Vitória foi se deitar e disse que acordaria em pouco tempo, só precisava descansar, e só o fez pois Camila e eu insistimos para que ela fosse. Velhinha teimosa demais era ela, meu Deus!

Caminhando com Camila pelo sítio a passos lentos, mãos dadas, dedos entrelaçados, não dizíamos nada, apenas observávamos o céu que ameaçava chover, e aproveitávamos aquela energia de tranquilidade que nos envolvia. Quando ela tinha uma contração, como naquele momento, nós parávamos e eu a apoiava em mim, massageando suas costas com cuidado e a ajudando com a respiração, instruindo para inspirar e expirar.

: - Shiiiu, vai passar... – Eu dizia penosa, porque doía em mim vê-la sentindo dor. Ela tentava não gemer, mas não conseguia e meu coração apertava ao ouvir aquele som repleto de agonia. – Está tudo bem, já vai passar, respira... Eu tô aqui.

Sua testa estava encostada na minha clavícula, suas mãos em meus ombros. Encostei minha bochecha esquerda em sua cabeça e continue a acariciar suas costas, esperando que aquela contração fosse embora.

: - Não imaginei que seria tão doloroso assim... – Ela fungou um pouco e quando me olhou, vi seus olhos cobertos por lágrimas. Suspirei triste. – Dói demais, parece que está me rasgando por dentro. Depois que elas nascerem, não teremos mais filhos.

Ela disse rindo um pouco, onde voltamos a caminhar de mãos dadas. Ventava bastante, então comecei a nos guias de volta para o quarto, com medo do sereno deixá-la doente.

: - Poxa, pensei que teríamos metade de um time de futebol em casa. – Resmunguei, a olhando de canto. Ela abriu um sorriso pequeno, deslizando a mão livre por sua barriga. – Não vamos dar nenhum irmãozinho pras meninas?

: - Só se você engravidar dessa vez. - Camila me olhou com expectativa, me fazendo revirar os olhos para ela, pois eu sabia aonde aquela conversa terminaria.

: - Nem adianta me olhar assim, viu? Já disse que não vou ficar grávida, estou muito velha para isso.

Foi a vez dela revirar os olhos quando paramos perto da entrada do quarto, ao lado de um grande chafariz.

: - Que velha, Lauren? Você tem 42 anos, é perfeitamente saudável, tem uma saúde melhor do que a minha, ainda menstrua, tem o útero em perfeitas condições, qual é o problema? Além do mais, seria o meu óvulo aí na sua barriga.

: - Sim, mas você sabe que uma gravidez na minha idade torna-se de alto risco. – Acariciei sua barriga. – Prefiro deixar isso pra você que é mais jovem.

: - Então você não terá mais filhos, porque essa dor... – Ela gemeu outra vez, se apoiando em mim quando outra contração chegou. – Essa dor eu não quero sentir nunca mais, não quero não.

A abracei, massageando sua lombar, nos balançando suavemente de um lado para o outro. Era como se eu pudesse ouvir a voz de Oxum no meu ouvido dizendo "Não vai ter mais filhos? Tá bom, vamos ver se não vai...". Quis sorrir, pois eu sabia que teríamos mais filhos sim, mais cedo ou mais tarde.


Quando a madrugada chegou, um verdadeiro temporal desabou sobre a Cidade do Rio de Janeiro, com muita ventania, raios e chuva. Nunca vi tanta água caindo do céu antes, era assustador. Nos recolhemos dentro dos três quartos ali presentes, tirando o quarto de mãe Vitória. Fiquei com Camila, Dra. Beth e as duas enfermeiras no que estava preparado para receber minhas filhas. Seus bercinhos de palha no canto do quarto, arrumados com todo o conforto e cobertos por um véu, para evitar a entrada de insetos.

Camila já não conseguia ficar relaxada, estava agoniada, sentindo muita dor e eu só pedia aos Orixás que ela pudesse dar a luz logo, para aquela tormenta acabar.

Sentada ao seu lado, eu acariciava sua barriga, sentindo a agitação das meninas no útero. Suspirei.

: - Estão agitadas. – Comentei preocupada, fazendo carinho de um lado para o outro, com cuidado.

: - Sim, elas ficam assim quando chove, lembra? – Camila gemeu, fechando os olhos e colocando sua mão sobre a minha. – Continua, elas se acalmam quando você acaricia.

Era verdade, toda vez que eu passava um tempo acariciando a barriga de Camila, elas tendiam a se acalmar, me fazendo sorrir e ficar completamente abobalhada. Aquele amor em meu peito, a felicidade extrema, o êxtase, era culpa delas. Elas sabiam quem eu era, sabiam que quem acariciava era a outra mãe delas.

: - Estou tão ansiosa para vê-las. – Camila me olhava com encantamento, mesmo tentando tudo de si para controlar sua dor. Seus olhos não mentiam e me mostravam o tamanho do amor que ela tinha por mim, mais ainda naquele momento. - Amamentá-las, banhá-las, acordar de madrugada...

Ela riu, fechando os olhos e respirando fundo.

: - Acordar de madrugada com certeza, pois é você quem vai levantar quando elas chorarem de madrugada, não tenha dúvidas. – Me abaixei um pouco e beijei sua barriga, sem deixar de acariciar. Claro que eu sabia que seria eu a pessoa a levantar de madrugada e não havia do que reclamar. – Tenho certeza que ficarei morta o resto do dia inteiro cuidando delas, então a madrugada é sua.

: - Mal posso esperar pra isso. – Ela apertou com força minha mão quando outra contração chegou, e pulou em um leve susto ao ouvir um trovão estourar lá fora. Parecia que o mundo estava acabando. – Respira... quer mais massagem?

Perguntei preocupada, vendo Dra. Beth se levantar da poltrona na qual estava sentada. As enfermeiras descansavam um pouco nas esteiras, no chão, forradas com colchonetes finos para elas.

: - Vamos checar a dilatação de novo, okay? – Ela disse colocando um par de luvas e eu me levantei para que se sentasse ao meu lugar. Camila apenas concordou com a cabeça, prendendo a respiração quando a Dra. Beth verificou sua dilatação, arrancando um pequeno resmungo dela. – Desculpe, querida... pronto, já acabei. Seis centímetros, quase sete. Já já vamos entrar na parte final do parto, só mais um pouco, Camila, só mais um pouco.

Voltei a me sentar ao lado dela, segurando sua mão e colocando minha mão fria sobre sua testa, que suava um pouco. Dra. Beth voltou para sua poltrona, mexendo em seu notebook.

: - Lauren... Não aguento mais. – Ela resmungou tentando não chorar, apertando minha mão. – Não sei se eu vou conseguir...

: - É claro que você vai, você é forte. – Eu disse com convicção, afagando sua cabeça, admirando seu lindo rosto corado. – Você é a mulher mais forte que eu conheço, querida, se existe alguém nesse mundo que pode fazer isso, esse alguém é você. Estou muito orgulhosa da sua força, não desista, eu estou aqui.

Eu dizia para confortá-la, ajudá-la, mas aquela era uma verdade plena. Eu estava orgulhosa dela, orgulhosa de sua grande força por toda aquela gravidez. Orgulhosa da mãe que ela seria, orgulhosa de sua dedicação para comigo e nossas meninas. Eu tinha orgulho de quem ela era, e me empenharia para lembrá-la disso pelo resto da vida.

: - Eu te amo! – Ela sussurrou, tremendo um pouco.

: - Também te amo.

Eu respondi bem baixinho, apenas para ela, beijando sua testa suada. Passei a mão em seu rosto, limpando suas lágrimas enquanto ela gemia em mais uma contração. A dor parecia não dar trégua a ela, nem a chuva que caia lá fora, lavando tudo e levando minha insegurança embora.

: - Cante para mim. – Ela pediu se virando de lado na cama, segurando minha mão esquerda como se precisasse daquilo para se manter. – Canta aquela música que eu amo... por favor! Seu canto me acalma.

Eu sabia qual música ela se referia, pois a cantei para ela por sua gravidez inteira, todas as noites. Quando estávamos em nossa cama, com sua cabeça em meu peito, eu cantava, cantava e cantava bem baixinho, até vê-la dormir. Camila amava a minha voz, eu até que cantava bem, mas cantava só pra ela.

Me ajeitei ao seu lado, de forma que ficasse sentada de frente para seu rosto. Coloquei minha mão direita sobre sua barriga para acariciar, mantendo a outra no meu colo. Ela me olhava com aqueles olhos cansados, mas tão lindos, que eu jamais pararia de admirá-los.

: - Yalodê, olomi mã, olomi má yó, yalodê, yalodê iyá... – Comecei aquela canção tão terna que misturava o Yorubá ao português, cantada lindamente por Maria Bethânia, mas ali, naquele momento, era apenas a minha voz enfeitava pelo som da tempestade lá fora. – Mamãe Oxum pode acontecer pra qualquer um... – sorri para ela, correndo minha mão por sua barriga, mantendo seu olhar no meu, que parecia se segurar em mim para fugir da dor. - A cabeça tonta, a sedução e não dou conta nunca mais do coração... meu coração... – Camila fechou os olhos, respirando fundo, puxando minha mão que estava entrelaçada com a sua até seu rosto. Eu sentia a energia de Oxum, sabia que ela estava ali ao lado de sua filha. - ... Yalodê, olomi mã, olomi má yó, yalodê, yalodê iyá... – Com dificuldade por conta da contração, ela cantou essa parte comigo, chorando baixinho, mas com um pequeno sorriso no rosto. - Mamãe Oxum, não vá me dizer que isso é tão comum... – Meus olhos se encheram de lágrimas ao vê-la ali, tão vulnerável, mas demonstrando tanta força, tanto amor por mim, por aquelas vidas que cresciam dentro dela. Aquela energia avassaladora de proteção, harmonia, pura e infinita invadiu meu peito como um tiro, fazendo as lágrimas escorrem por minhas bochechas quando foi a minha vez de me silenciar, apenas para ouvi-la continuar. - Não existe amor que alucina assim. Oh, minha mamãe Oxum, não deixa de cuidar de mim em momento algum. Yalodê, olomi mã, olomi má yó. Yalodê, yalodê iyá... – Ela fungou e fechou os olhos, as lágrimas ganhavam seu rosto corado, contorcido numa expressão de dor, mas ao mesmo tempo havia gratidão em sua voz, havia felicidade lá. – Ah, minha mãe Oxum... que a senhora me ajude. Me ajude, mãe!

"Yalodê, olomi mã, olomi má yó, yalodê, yalodê iyá" (Mãe coroada, senhora das águas doces, senhora das águas sem sal. Sois a velha mãe do rio, rainha mais velha, mãe coroada)

Ali, naquele momento especial, não éramos as únicas que estávamos chorando, pois a Dra. Beth também estava, junto com as enfermeiras que acordaram ao nos ouvir cantar. Olhei para elas com muita emoção, que sorriram para mim de forma cúmplice, como se pudessem entender o que eu estava sentindo. Faltavam-me palavras para explicar o poder daquela energia, da energia de Orixá, energia do amor, energia da fé. Eu não sabia explicar, só sentia.

Ainda cantei mais algumas cantigas em Yorubá para ela, todas de Oxum e Yemanjá, para acalmá-la. As horas foram passando e quando dei por mim, já eram quatro horas da manhã. A chuva ainda caía do lado de fora e vi mãe Vitória entrar no quarto apressada, fechando a porta.

: - Mãe, a senhora veio na chuva? – Perguntei preocupada, vendo-a fazer um gesto com a mão indicando que não era nada.

: - Foi rapidinho, minha filha, acordei para ver essas meninas nascerem, já está na hora. – Ela disse com alegria, esfregando uma mão na outra, se aproximando da cama aonde estávamos.

Nem precisei perguntar como ela sabia que já estava na hora do nascimento, não é? Pois ela sabia de todas as coisas. E não é que ela estava certa, mais uma vez? Dra. Beth checou a dilatação de Camila e ela já estava com dez centímetros, agora as contrações não tinham muitas pausas e ela gemia de dor enquanto tremia ferozmente.

: - Preciso empurrar. – Camila se agitou, se erguendo um pouco na cama. Eu me levantei, fiquei nervosa. Havia chegado a hora. Comecei a andar pelo quarto, vendo a Dra. Beth e as enfermeiras se aprontando para a realização do parto. – Eu preciso fazer força agora... pelo amor de Deus! Eu não aguento mais.

: - Faça força, Camila. – Disse a Dra. Beth enquanto se aproximava da cama. Mãe Vitória sentou ao lado de Camila, perto da cabeceira e colocou a guia de Yemanjá sobre a barriga dela, formando um círculo. – Empurre para baixo com força, na direção dos meus dedos. Aqui, está sentindo?

Ela tinha seus dedos dentro da minha esposa, como se checasse algo. Camila fez um rápido movimento de afirmação com a cabeça, afastando as pernas o máximo que pode. Meu Deus! Eu fiquei tonta, parecia que eu ia desmaiar.

: - A primeira já está encaixadinha aqui, posso sentir a cabeça, querida, empurre com toda a sua força, vamos.

: - Empurra, filha! – Mãe Vitória acariciava a cabeça de Camila, sem parar de sorrir. – Você consegue, vamos!

: - LAUREN! – Ela gritou, estendendo a mão pra mim e eu parecia uma retardada sem saber o que fazer, sentindo meu coração querendo sair pela minha garganta. – Por favor!

Me coloquei ao seu lado, me ajoelhado no chão, segurando sua mão direita, encarando seu rosto suado e vermelho, sem saber se chorava ou se sorria. Aquele misto de sentimentos era uma loucura.

: - Eu estou aqui... Eu tô aqui com você. Vamos, amor... você consegue. – Beijei sua mão, me arrepiando com o som dos raios e trovões lá fora. Vi que a luz ameaçou apagar, alarmando todos dentro daquele pequeno quarto, não queríamos que a energia acabasse bem naquele momento. - Traz nossas filhas ao mundo.

Camila fazia força e quando eu digo força, é força de verdade. Toda vez que ela empurrava, eu prendia a minha respiração tamanha a minha agonia. Podia ver em seu rosto todo esforço e toda a dor, o desespero, o medo. Mãe Vitória acariciava sua barriga, fazendo rezas em Yorubá a minha mãe Yemanjá. Eu sentia sua presença, sua energia de tranquilidade, doçura, sabia que ela estava ali. Eu chorava, pois não aguentava aquela sensação sufocante que me dava vontade de gritar a plenos pulmões pra todo mundo ouvir que eu seria mãe.

: - Eu não vou aguentar, mãe. – Camila chorou, sacudindo a cabeça em negação. – Está doendo demais, eu não tenho mais forças...

: - Vamos, minha filha, empurre com toda a sua força. – Mãe Vitória incentivou, beijando a testa dela. Dra. Beth olhava para entre as pernas de minha esposa, me fazendo olhar também. Eu queria ver, mas também não queria. Eu não sabia o que estava realmente querendo naquele momento. – Mamãe está aqui e você vai trazer essas meninas ao mundo com a graça dos Orixás. Então empurre!

Camila empurrou, apertando minha mão com toda a força, soltando um gemido alto de dor que parecia um rugido e eu quase desmaiei quando vi a cabeça da bebê deslizar para fora. A Dra. Beth pediu que Camila relaxasse o corpo e fizesse uma força leve para que os ombros pudessem sair. E no momento seguinte, ao som de um raio e da tempestade lá fora, ela nasceu, a primeira, inundando aquele quarto com seu choro fino e alto, como se berrasse ao mundo a sua chegada.

Eu caí em lágrimas junto de Camila e mãe Vitória, completamente desacreditada, impressionada, apaixonada. Lá estava ela, minha primeira pequena, tão cabeludinha, gorducha, chorando alto sem parar, arrancando risos de alegria de todas nós. Dra. Beth cortou o cordão umbilical e a entregou nas mãos de uma das enfermeiras, incentivando Camila a trazer a outra gêmea ao mundo. E em quinze minutos, ela nasceu, chorando como a irmã, mas num tom mais baixo e se mexendo menos também, e logo ali já sabíamos quem era quem. Eu estava me sentindo realizada, nada, nada no mundo poderia se comparar a aquele momento.

: - Obrigada, meu amor! – Eu disse a Camila enquanto chorava, secando as lágrimas do rosto dela. – Você conseguiu, nós somos mães. Obrigada por essa felicidade, só obrigada!

Beijei sua testa, a abraçando de lado, deixando com que ela chorasse aquele choro de felicidade que inundava seu peito.

A Dra. Beth e as enfermeiras fizeram todos os procedimentos necessários, tanto nas gêmeas quanto em Camila e uma vez que estava tudo bem, mãe Vitória banhou as duas em água morna, sussurrou em seus pequenos ouvidos uma reza em Yorubá, saudando a Deus, para que aquele nome sagrado fosse a primeira palavra a ser ouvida por elas. As enrolou em suas mantas brancas e as colocou nos braços de Camila.

Aquela cena foi a mais bonita que eu já vi em toda a minha vida. Minha esposa com minhas filhas no colo, em lágrimas de alegria e amor, olhando para elas e para mim com devoção. Eu era a mulher mais abençoada do mundo.

Me juntei a elas como se tivesse medo de quebrá-las, tocando a cabecinha de cada uma com as pontas dos dedos, fungando um pouco, sem conseguir tirar meus olhos de seus lindos detalhes.

: - Elas são lindas e tão pequenas! – Camila chorou emocionada, colando sua testa na minha. – Seu nariz, seus olhos...

Eu sorri ao constatar que sim, ambas tinham os olhos verdes, como os meus. Um verde quase azulado, que despertou curiosidade. A Dra. Beth disse que era assim mesmo, que quando elas fossem crescendo, a cor ia acentuar.

: - Mas a boquinha... olha essas boquinhas... – Eu ri encantada, completamente apaixonada por elas. – é a sua boca, não tenho dúvidas.

Não era incrível? Elas tinham a boca de Camila. Okay que nós escolhemos um doador anônimo com as características bem parecidas com a dela, mas eu não imaginava que fosse tanto.

: - Eu estou tão feliz. – Beijei sua testa. – Eu amo tanto vocês, tanto. – Ela me olhava nos olhos, falando aquilo mais com o coração do que com a boca, me deixando ver o tamanho da gratidão que sentia.

: - E eu te amo! – Beijei sua testa e logo depois a cabecinha das minhas filhas. – Mamãe ama vocês demais.

Ficamos ali curtindo mais um pouco nosso momento e logo amamentamos as duas, Camila uma, eu a outra. Foi uma sensação única e muito especial, dar o meu leite a aquele serzinho tão pequeno que se agarrou ao meu seio como quem depende daquele alimento pra viver. Eu me sentia maravilhada, aquele instinto maternal se apossando de meu corpo como um vendaval. Minha pomba-gira estava certa, eu não havia me tornado mãe, eu nasci mãe.

Tirei fotos das meninas de todos os ângulos e enviei no grupo do wpp, e as mensagens foram as seguintes;

Dinah J: "JDKEHEPQNBDPWHAIBDPANDBNDPNQHSNOWNBSI MEU DEUS DO CÉU OLHA ESSAS PRINCESAS MACUMBEIRINHAS DE ARUANDA EU VOU MORRER"

Normani K: "AAAAAAAAAAAAAAAAAAAA LAUREEN EU TO CHORANDO MUITO SIM PUTA QUE PARIU OLHA AS BOCHECHAS EU VOU MORDER TUDO OS OLHOS VERDES MEU PAI AI MEU CU"

Sofia: "EU SOU A TIA MAIS FELIZ DESSA PORRA DE MUNDO"

Sister T: "Eu tô sem condição, gente, EU MAL POSSO ESPERAR PRA PEGAR NO COLO E APERTAR. NAOMI TÁ GRITANDO AQUI"

Sister A: "EU TO RINDO DE NERVOSO IRMÃ, ELAS SÃO LINDAS DEMAIS EU TOWNSOBOWHNWLUA FO WO DESESPERADA, PAPAI E MAMÃE TÃO QUASE PASSANDO MAL AQUI EM CASA."

Alejandro C: ~mensagem de áudio de 3 minutos.

Meu pai e minha mãe provavelmente estavam infartados sem condição de mandar áudio gritando e chorando como meu sogro mandou. Eu não conseguia parar de rir e chorar com aquelas mensagens desesperadas. Como eu amava a minha família.

~

Depois de amamentá-las, elas logo dormiram e as colocamos com cautela em seus bercinhos de palha. A Dra. Beth e as enfermeiras se retiraram para descansar, ao quarto do lado, me deixando sozinha com Camila, que já estava limpa e deitada. Mãe Vitória também se retirou e disse que logo pela manhã bem cedo viria até nós para que o primeiro jogo de Búzios das meninas fosse realizado. Sendo assim, depois de tomar um banho e me trocar, me ajeitei no meu colchão ao chão para dormir, mas antes, lembrei Camila do quão feliz ela me fazia e do quanto eu a amava. Adormecemos de mãos dadas, ela na cama, eu no chão e parecia que sempre havia sido assim, eu, ela e nossas filhas.

Não me lembro de ter sonhado aquela noite, estava tão cansada que sofri um apagão, apenas dormi feito uma pedra. Fui despertada algumas horas depois por um chorinho fino, gostoso, que me fez abrir os olhos já com um sorriso no rosto, lembrando-me que sim, eu era mãe. Novamente me senti eufórica e me levantei com cuidado, observando Camila dormindo tranquilamente em sua cama. Não iria acordá-la, ela teve uma noite exaustiva ontem e precisava descansar. Fui na direção dos bercinhos de palha para ver quem estava chorando, era a segunda gêmea, a que chorava mais baixinho. Meu coração se aqueceu, pois de alguma forma que não sabia explicar, eu já conseguia identificar quem era quem. Deve ser coisa de mãe.

A peguei no colo com cuidado, era tão pequena que eu tinha medo de deixá-la cair.

: - Shiiiu! – Beijei sua cabecinha, a sacudindo com delicadeza. – Assim vai acordar sua mãe e sua irmã, meu amorzinho.

Caminhei com ela pelo quarto até a cadeira de balanço, onde me sentei para poder amamentá-la. Ela me olhava com aqueles olhinhos verdes arregalados, e calou-se no mesmo instante quando a aconcheguei em meu peito.

: - Você está com fome, está? – Acariciei sua bochecha rosada, erguendo um pouco o braço para depositar um beijo suave em sua testa. Aquele cheirinho me acariciava a alma. Ela me olhava com atenção, mexendo a pequena língua dentro da boca como se procurasse algo. Eu sorri, a segurando com cuidado para abaixar a alça da minha blusa. Meus seios estavam cheios de leite, eu tirava bastante em casa porque ficavam muito inchados e doloridos. Eu não havia as gerado, mas sentia como se o tivesse feito, pois meu corpo estava preparado para alimentá-las assim como o de Camila estava. Aquela parte eu agradeceria a ciência. Com ela já mamando, me acarretando algumas caretas, pois doía um pouco, eu comecei a nos balançar na cadeira de balanço levemente, passando o dedo indicador por cima de suas sobrancelhas. – Sua mãe e eu vamos escolher um nome bem bonito para você e sua irmã. – Eu dizia bem baixinho, a admirando. – Depois vamos levar vocês pra conhecer a vovó, o vovô, as titias, as dindas, o Joker e a Elis. Todo mundo está ansioso para ver vocês, assim como eu e a mamãe estávamos.

E quem não estava, não é?

Camila POV

Meu corpo todo doía, não era uma dor insuportável, mas parecia que eu passei horas fazendo uma sessão intensa de alongamentos. Me mexi na cama devagar e ainda sem abrir os olhos, pude ouvir a voz de Lauren ao fundo, bem baixinha, como um sussurro. Não pude conter o sorriso que enfeitou o meu rosto.

Ao abrir meus olhos, a vi sentada na cadeira de balanço com uma de nossas filhas no colo, a amamentando enquanto conversava com ela com ternura. Meu coração se aqueceu, tinha certeza que nunca me acostumaria com a beleza daquela cena, com a magnitude daqueles momento em família. Eu estava feliz, eu era feliz e sempre seria.

: - Ei... – Eu chamei baixinho enquanto me sentava na cama com cuidado.

: - Ah, olha quem acordou, princesa... A mamãe. – Lauren disse me olhando, um sorriso doce nos lábios, se erguendo para caminhar a passos lentos na minha direção. – Você tem a mamãe mais bonita desse mundo todo, sabia?

Eu não conseguia parar de sorrir, nada podia se comparar a aquele sentimento único de renascer em outra pessoa, em outra vida.

: - Essa é uma ótima forma de acorda. – Lauren sentou-se ao meu lado na cama, ainda amamentando. – Bom dia!

: - Bom dia, querida! – Ela beijou a minha testa e eu beijei a cabecinha de nossa filha, sentindo aquele cheirinho tão gostoso. Ah, como era bom! – Como está se sentindo hoje?

: - Um pouco de dor, mas bem, muito bem. – Suspirei, passando os olhos pelos bercinhos de palha, erguendo as sobrancelhas. – A outra não acordou ainda?

: - Não, está dormindo desde a última vez que a amamentamos. – Com calma, Lauren retirou o seio da boca de nossa pequena, cobrindo com a blusa. Ergueu-a em seu ombro e começou a dar leves tapinhas em suas costas, para que arrotasse. Parecia que ela fazia aquilo há anos, tamanho era o seu jeito. – Já percebi que ela é a mais brava e a mais preguiçosa também.

Nós rimos juntas, pois era a verdade. Ao nascerem, logo ficou claro quem era a gêmea mais brava, obviamente, era a primeira a vir ao mundo, pois seu choro forte e alto anunciou que ela não seria nenhum pouco calma.

: - Ah mas essa aqui também não deixa por menos, viu? – Acariciei os pequenos pés cobertos por meias brancas, tão fofo. – Esse chorinho mais baixo não engana, acho que teremos duas tempestadezinhas pra criar. Uma mistura de nós duas, com seus olhos lindos e meu gênio tinhoso.

: - Ah, e coloca tinhoso nisso. – Lauren riu baixo, pois nossa filha dormiu em seu peito. Com calma, ela a passou para os meus braços, aonde a acomodei com carinho em meus seios cobertos pela camisola. – Vou pedir para prepararem seu banho e mando alguém vir te buscar, tenho que fazer algumas coisas lá dentro, pois hoje tem função. E já já mãe Vitória vai nos chamar para o jogo.

: - Tá bem, amor... peça para alguma mãe ekedy vir me ajudar com as meninas, por favor! – Beijei a testinha da pequena, admirando seu rostinho lindo de traços idênticos aos de Lauren, tirando o cabelinho que era castanho escuro como o meu.

: - Vou pedir. – Ela me jogou um beijo, sorrindo. – Amo vocês.

Eu retribuí com um sussurro e a vi me deixar ali sozinha com nossos pedacinhos de amor e bênção.

Logo eu já estava de banho tomado, alimentada e as meninas também, que mamaram mais um pouco e voltaram a dormir. Lauren foi fazer suas funções, pois como toda mãe ekedy, é ela quem arruma tudo, limpa, passa, lava e várias outras coisas que são orô "segredo".


No final da manhã, depois da Dra. Beth e as enfermeiras terem ido embora, mãe Vitória veio até nós no pequeno quarto, na companhia da mãe ekedy mais velha da casa, para montar uma pequena mesa aonde ela pudesse realizar o jogo. Uma vez organizado, nos sentamos de frente para o oráculo, ao outro lado da mesa. Eu segurava a gêmea mais nova nos braços e Lauren segurava a gêmea mais velha, ambas estavam vestindo batinhas brancas, cobertas por mantas rendadas da mesma cor. Mãe Vitória iniciou aquela consulta aos Búzios como sempre, saudando ao Orixá regente do dia e todos os outros, conduzindo rezas em Yorubá que Lauren e eu acompanhamos, pois sabíamos todas. Fiquei um pouco apreensiva, iria descobrir um pouco do caminho de minhas filhas, então a ansiedade logo tomou conta de mim.

Quando ela fez a primeira jogado de Búzios, eu me arrepiei inteira, não consigo expressar em palavras o tamanho da energia que aquele ritual trazia. Só sabia dizer que era bom, muito bom. Ela jogou mais vezes, perdi as contas e o tempo todo fazia anotações, murmurando frases incompreensíveis a nós de tão baixas. Depois de longos minutos, nos olhou com um sorriso, onde eu troquei um olhar com Lauren como se soubesse que coisa boa sairia daquela boca sábia.

: - Vocês vão ter trabalho com essas meninas, viu? Elas não serão mole não. – Mãe Vitória riu, sacudindo a cabeça em negação. Eu acabei rindo também, pois minha intuição dizia exatamente aquilo. – A primeira a vir ao mundo é filha de Oyá Petú com Exú Bará. Oyá é o Orixá de frente. – Nós arregalamos os olhos, pois aquela combinação era... quente, muito, muito quente. – A segunda a vir ao mundo é filha de Oxumarê Dan e Oyá Kará. Oxumarê é o Orixá de frente.

Fiquei sem palavras, e olhei para Lauren com um misto de surpresa e encantamento. Olhei para as meninas, que dormiam serenas e senti meu coração se aquecer naquela paixão desmedida e adoração por elas.

: - Ambas possuem uma cabecinha muito agitada, a primeira precisará sempre ser adoçada, acalmada, pois seus pais de cabeça são Orixás quentes. Oyá Petú é a senhora dos raios e ventanias... – Estava explicado por que elas haviam nascido sob uma tempestade e porque se agitavam na barriga quando chovia. Era incrível! – Exu Bará é o senhor do corpo, da sexualidade humana. Orixás que precisam ser muito bem cuidados para que mantenham a cabecinha dela o mais calma possível.

Soltei um suspiro, abraçando o pequeno corpinho em meu colo com um pouco mais de força. Meu coração estava acelerado.

: - Oxumarê é o senhor dos movimentos, dos ciclos, quem traz a chuva que molha a terra trazendo a riqueza, fartura. Senhor do arco-íris, cobra sagrada que participou da criação do mundo. – Um novo ciclo havia começado para nós com o nascimento daquelas crianças, a participação de Oxumarê em tudo aquilo também estava explicada, tudo passou a fazer sentido, não havia nada fora do lugar. – Oyá Kará é a senhora das chamas e do fogo, é uma qualidade de Iansã muito turbulenta e agitada. É uma das mais belas Oyá's. Oxumarê vai quebrar um pouco dessa natureza turbulenta de Oyá na cabeça dessa criança, dando um equilíbrio a ela. Fazendo assim, com que seja mais calma que a irmã, mas nem por isso, deixará de ser bravia quando passar a agir pela emoção. As duas possuem Oyá na cabeça, uma como Orixá de frente (orixá principal) e a outra como Orixá junto (segundo orixá) logo, terem nascido sob uma bela tempestade já mostra de quem são filhas.

Era isso, quando eu disse que Lauren e eu teríamos duas tempestadezinhas para criar, não estava brincando. Iansã era mãe das minhas filhas e mostrou sua presença em todos os momentos enquanto eu dava luz a elas.

: - As duas são rodantes (médiuns que incorporam), e vão desenvolver a mediunidade ainda na infância, pois possuem também o dom da visão e da audição. A mais nova tem cargo de Yalorixá (Mãe de santo), que um dia, no futuro, será assumido. Então estejam preparadas para lidar com esse lado delas que estará sempre aguçado. As duas herdaram muitas coisas de vocês, principalmente na questão da espiritualidade.

: - Vão precisar cuidar de seus santos logo? – Perguntei mordendo o lábio inferior, sentindo o pequeno serzinho em meu colo se esticar.

: - Sim, quanto mais cedo melhor, por conta da cabeça quente delas e desses dons que logo logo vão dar sinal de vida. Então vamos cuidar delas e de seus Orixás da melhor forma possível para que estejam sempre em harmonia e serenas.

: - E precisamos fazer algo nesse início de vida delas, mãe? – Lauren perguntou curiosa, sacudindo de leve os braços para ninar a pequena que havia acordado.

: - Sim, algumas oferendas para que tenham uma boa vida, bons caminhos, saúde, essas coisas... Mas tudo será feito essa semana, antes do ikomojàdé. Agora vocês precisam escolher os nomes, nomes que remetam a alegria, pois foram nascimentos que trouxeram muita alegria para esse mundo e para o outro também.

O registro funcionava assim; precisávamos escolher para elas um nome ocidental, para que elas se sentissem incluídas na sociedade na qual nasceram, seguido de um nome em Yorubá, para que mostrassem suas raízes na religião, formando assim um nome composto. Todo nome em Yorubá traz uma força, um significado que emana axé através dele, e não se pode colocar qualquer nome em uma criança, pois sua caminhada vai seguir a energia que ele emana. Então tudo precisa ser muito bem pensado.

Mas Lauren e eu já sabíamos o que queríamos, e o que queríamos seguiu assim;

A primeira a vir ao mundo se chamaria: Sol Ayòdélé. Ayòdélè significa "alegria chegou em minha casa".

A segunda a vir ao mundo se chamaria: Luna Ayòdéji. Ayòdeji significa "A alegria virou duas".

Dali à sete dias seus nomes seriam ditos em voz alta pela primeira vez para que todos da comunidade pudessem ouvir e saudá-las. Mas para nós, Lauren e eu, elas já eram Sol e Luna. Pequenos milagres que trouxerem muita, muita luz para nossas vidas.

A cerimônia do "ikomojàdé" foi linda e especial, ocorrendo naquela manhã quente e ensolarada. Todo o ritual é muito emocionante e levou lágrimas aos olhos de todos os presentes. Ao final daquela espécie de batismo Yorubá, Sol e Luna foram suspensas nas minhas costas e nas costas de Lauren, eu com a mais nova e ela com a mais velha, e deveriam ser carregadas dessa forma daquele dia em diante dentro do terreiro. Elas ficavam presas a nós por um longo e bonito tecido africano, que nos envolvia como se fossemos apenas uma. Assim, sendo carregadas em nossas costas, mantinham nossas mãos livres para que pudéssemos realizar nosso trabalho dentro do barracão. É assim que se carrega os bebês na África.

Todo mundo queria segurá-las um pouco, foram passando de braço em braço recebendo muito chamego e elogios. Uma grande festa acontecia no sítio, com muita comida para os convidados desse plano e do outro também. Havia muito fartura de tudo, principalmente de alegria, que era festejada a todo instante com cantos e danças.

Eu já havia perdido as contas de quantas vezes repeti o nome das meninas para Normani, que tentava, sem sucesso, pronunciar de maneira correta. Eu não conseguia parar de rir de sua expressão de frustração toda vez que errava.

: - Meu Deus, Camila! Por que colocou uns nomes tão complicados nas minhas bichinhas? Como eu vou chamar elas agora? – Ela bufou, soltando uma risada enquanto ninava Luna em seus braços. Sol estava com minha sogra em algum canto.

: - Vai chamar pelo primeiro nome, não precisa chamar pelo segundo. – Bebi um pouco do meu suco de laranja, ajeitando o laço vermelho no cabelinho de Luna. – E não são complicados, você que é lerda mesmo.

: - Eu só não te xingo porque estamos dentro de um local sagrado e eu não quero morrer.

Eu soltei uma gargalhada, vendo-a fazer cara feia pra mim.

: - Aí é minha vez de segurar essa bolinha. – Dinah disse ao se aproximar por trás de mim, estendendo os braços para que Mani passasse Luna para ela. Normani fez que não com a cabeça, virando de lado. – Oxe, para de monopolizar a criança, mulher, me dá ela aqui.

: - Caraca, eu acabei de pegar. – Ela resmungou.

: - Mentira, Mani, você está com ela há quase meia hora já. – Denunciei divertida, recebendo um olhar mortífero em resposta.

: - Olha, Camila, o que é teu tá guardado. Quando você pisar em casa, tu me aguarde. – Ela dizia em tom de ameaça, passando Luna para os braços de Dinah que sorria vitoriosa.

: - Para de reclamar e me dá um abraço. – A puxei para mim, fazendo-a rir alegre. Nos abraçamos com força, parecia que não nos víamos há muito tempo. – Você terá todo o tempo do mundo para carregar sua afilhada, não se preocupe.

: - Obrigada por isso, por me escolher para ser madrinha dela, nem sei como te agradecer. – Ela beijou meu rosto. – Te amo e isso nunca vai mudar, ouviu? Nunca.

: - Também te amo, nega. Pra sempre.

Normani agora, além de melhor amiga, era também minha comadre. Ela era madrinha de Luna junto de Sofia, e Dinah era madrinha de Sol junto de Taylor. Duas madrinhas de batismo e duas de consagração. Padrinhos? Nunca nem vi.

Fui cumprimentar algumas pessoas que chegaram, amigas do trabalho, e quando voltei para perto da grande mesa que estava arrumada com toda a fartura de comida, encontrei Normani se apoiando na mesma com a cara pálida, o semblante assustado. Ergui as sobrancelhas.

: - O que foi, nega? Que cara é essa? – Me aproximei mais dela, tocando em seu braço.

: - Camila, tô sentindo uma parada estranha, um bagulho doido. – Seus olhos estavam arregalados.

: - Que bagulho, nega? Tá passando mal? – Fiquei preocupada né, raramente a vi passar mal. Coloquei a mão na testa dela, estava fria.

: - Eu não sei não, eu só sei que é muito doido o que eu tô sentindo aqui, muito doido. – Ela me olhava apavorada.

: - Do que você tá falando, mulher? Tá sentindo o quê?

: - Um calor estranho no meu pé, que vai subindo nas minhas pernas e ao mesmo tempo frio, eu tô suando frio aqui. Arrepiando. Não sei se tô infartando ou o quê. Coração acelerado. Minha cabeça tá doendo pra caramba, fiquei tonta, normal, tonta, normal. Caraca, que bagulho doido é esse? Era só o que faltava eu me receber aqui.

Eu não aguentei e soltei uma gargalhada tão alta, que acabei chamando atenção das pessoas ao meu redor. Aqueles eram típicos sinais de incorporação mesmo, sinais que antecedem a incorporação, mas não são uma regra, varia de pessoa para pessoa.

: - São sintomas de incorporação sim, ou algum Orixá ou entidade sua tá encostadinha em você, por isso está se sentindo assim. É normal, a energia é forte.

: - PORRA, não me fala uma coisa dessa não. – Ela bateu na própria boca, agitada. – Olha aí, até xinguei em solo sagrado, tá vendo? Tu não pode me dizer que tem um espírito encostado em mim, tu quer me matar? Fica quietinha.

Eu não conseguia parar de rir da cara dela, que estava mais pálida ainda. Eu estava tentando tranquilizá-la, mas pelo visto só estava piorando. Com o canto dos olhos, vi Lauren se aproximar, ajeitando seu pano de cabeça verde água, tão bonito quanto ela.

: - Lauren, Normani tá passando mal, tá achando que vai incorporar aqui. – Comentei risonha, observando Lauren erguer a sobrancelha direita ao parar ao nosso lado. – Olha a cara dela, parece até que viu um fantasma.

: - Não vi não, mas tô sentindo ele. – Ela disse rindo de NERVOSO, fazendo Lauren explodir numa risada.

: - Calma, Normani, você não vai incorporar aqui, fica tranquila. – Lauren a tocou nos braços com delicadeza, olhando-a no fundo dos olhos. – Realmente, sinto a energia de Orixá em você, é Oyá... Mas ela só está perto, por isso você está se sentindo assim. Estamos a saudando hoje, colocando oferendas para ela, tocando para ela, cantando e dançando para ela, pois ela é a mãe de minhas filhas e deve ser saudada nessa cerimônia. Ela está aqui entre nós, é normal que você a sinta. Mas acredito que você tenha ligação com ela de uma maneira mais direta, por isso sente de forma mais aguçada.

Fiquei olhando aquela mulher linda dar aquela explicação mais linda ainda para a minha melhor amiga e quase babei. Como eu estava orgulhosa da grande sabedoria espiritual que ela ganhou, de como cumpria com sua missão de forma esplêndida. O sorriso em meu rosto deixava claro que eu a admirava e muito.

: - Mani, se a mãe ekedy está dizendo, então confie nela. – Sorri para confortá-la, observando o sorriso doce e maternal no rosto de Lauren. – Fica tranquila, nega, está tudo bem.

: - Quer se sentar? – Lauren perguntou, acariciando as costas dela. Mani respirou fundo e negou com a cabeça.

: - Não precisa, Lauren, obrigada! Já está passando, eu só fiquei muito assustada, pois nunca senti isso antes. É meio assustador.

: - Compreendo que seja mesmo. Nunca senti isso, não dessa forma tão intensa, pois não tenho o dom da incorporação, sinto apenas arrepios, mas o pouco que senti mexeu comigo, imagino que deva ser uma experiência assustadora de início.

: - De início? Você quer dizer que isso vai continuar? – Mani quase se engasgou com o suco que começou a beber.

: - Não, estou falando de uma forma geral. Não sei se é seu caminho estar aqui, na religião, como Camila e eu estávamos, só Orixá sabe. – Lauren sorriu para ela de maneira acolhedora, trocando um olhar carinhoso comigo. – Mas não se preocupe com isso, okay? Está tudo bem.

Mani apenas assentiu, trocando um abraço apertado com Lauren, que emanava uma energia boa de acolhimento e proteção. Era assim que Lauren fazia, era assim que ela era. Boa... Uma pessoa boa, que nasceu para cuidar.

Quando ela se retirou, Mani virou para mim, me olhando com um sorriso.

: - Ela é uma mãe mesmo, né? Não há dúvidas de que nasceu para fazer o que faz. As palavras dela me acalmaram de uma forma que o medo que eu estava sentindo foi embora na hora, e o abraço então? Que paz!

: - Ela é luz. – Sorri com a consciência de que aquelas palavras eram toda a realidade. – O quê ela toca, floresce. Ela cativa, ela conforta, ela ampara. Obaluaiyê a escolheu para cuidar dele e não foi a toa, e mesmo quando ela está cuidando dele, ela também está cuidando de nós, dos outros Orixás, das pessoas que vem visitar. Ela cuida de todo mundo. Eu tenho muito orgulho de quem ela é, Mani, muito orgulho.

~

Eu estava amamentando Luna, sentada em uma cadeira num local mais afastado da festa, quando vi Lauren se aproximar com Sol nos braços, que chorava alto, literalmente esperneando. Lá estava a barraqueirinha filha de Oyá. Soltei uma risadinha divertida.

: - Meu Deus, ela não pode esperar, se a gente não dá mamar na hora que ela começa a chorar, ela chora mais alto ainda e fica toda vermelha. – Lauren sentou-se ao meu lado com cuidando, se deixando rir da pirraça da filha, que era tão pequena, mas tão geniosa. – Shiiiu, pronto, já vai, já vai, meu pedacinho.

: - Claro, ela tá morrendo de fome. É esfomeada. – Me curvei um pouco para o lado e beijei sua cabecinha. – Coisinha mais brava da mamãe.

Lauren abaixou a alça da bata rendada que vestia e se pôs a dar de mama a ela, que sugava o leite desesperada como se não mamasse há anos. Ao contrário de Luna, que sugava com calma, dormindo e acordando durante o processo. Quando eu dava de mama a Sol, tinha que controlar e as vezes tirar o seio da boca dela, porque tinha medo dela se engasgar de tanta pressa que tinha. Aos pouquinhos, Lauren e eu íamos aprendendo a lidar com as diferenças das nossas meninas, pois elas eram iguais apenas na fisionomia, mas possuíam personalidades completamente distintas.

Ficamos ali conversando enquanto as amamentava, trocando olhares cúmplices, cheio de amor e felicidade, que denunciava o quanto nosso casamento era sólido e completo. Não faltava nada.

: - Ansiosa para ir pra casa hoje? – Lauren perguntou me olhando, deslizando o dedo indicador por cima das sobrancelhas de Sol, que ressonava tranquilamente em seus braços acolhedores.

: - Muito, nossa... Eu amo estar aqui no terreiro, amo essa energia, mas estou morrendo de saudade da minha cama, de Joker e Elis. Mal posso esperar.

Sorri para ela com ternura, me aproximando para colar nossas testas, mantendo Luna também adormecida em meus braços. Ficamos daquele jeito por algum tempo, testas grudadas, olhos fechados, transmitindo uma para a outra aquela energia de amor que dava sentido as nossas vidas.

: - Aí que família mais linda, meu Deus! – Ouvi a voz de Sofia, e me separei de Lauren muito a contra gosto. – Não aguentei a fofura e tirei uma foto dessa cena. Ficou linda! Vou postar no meu Instagram pra todo mundo babar no meu ship favorito.

: - Você é muito boba, sabia? – Lauren comentou sorrindo, mandando um beijinho para Sofia. Ela estava linda, muito parecida comigo na sua idade, só não tinha a minha bunda.

: - Que culpa eu tenho se vocês são lindas juntas e eu fico babando?

Sofia deu de ombros e se virou para sair, nos dando apenas uma piscadela sobre os ombros antes de ir atrás de Ana que passava ao fundo com uma bandeja de salgadinho.

: - Ela tem razão... – Eu disse sem conseguir parar de olhar para aquela mulher maravilhosa ao meu lado.

: - O quê? – Ela sorriu doce, acelerando as batidas do meu coração apaixonado.

: - Nós formamos uma família linda. – seus olhos brilharam e aquela frase significava tudo. – Obrigada por ela, obrigada por ser minha esposa, obrigada por ser mãe das minhas filhas, só... obrigada!

: - Eu te amo! – Ela declarou emocionada e colamos nossas testas outra vez, e de olhos fechados, não era preciso dizer mais nada para que soubéssemos o quanto aquele sentimento era verdadeiro e puro.

: - Eu te amo!

Eu só sabia agradecer, agradecer e agradecer a Deus e a Orixá por tudo, pela honra de ter uma esposa maravilhosa, que cuidava de mim com todo o amor do mundo, pelo prazer de ser mãe daquelas duas princesas lindas, pela paz de pertencer a uma religião tão acolhedora e bela como o Candomblé, e pelo privilégio de me tornar uma pessoa melhor a cada dia. Eu não tinha motivos para reclamar em minha vida, apenas para agradecer. Então que assim seja!

Ólorun modupé! (Deus, eu agradeço)

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