O Lado de Fora

By gabsel_

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------------------------------- *VENCEDOR DO WATTYS 2019 NA CATEGORIA FICÇÃO CIENTÍFICA* ... More

MAPA DE ANTÃ
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
CAPÍTULO TRINTA E SETE
CAPÍTULO TRINTA E OITO
CAPÍTULO TRINTA E NOVE (FINAL)

CAPÍTULO VINTE E DOIS

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By gabsel_

Hug repassou uma última vez o plano para todos, enfatizando os mínimos detalhes e checando se tudo estava em ordem. Ao confirmarem, deram início à primeira fase. Os cinco entraram na van. Ligaram os motores, colocando a rota no GPS para o Instituto Oficial de Tecnologia. O mais velho dirigiu.

As pernas de Kaya tremiam como varas verdes. Não conseguia se manter quieta no lugar. Além de tudo, ainda tinha que aguentar um clima estranho entre Gustavo, Leyr e ela. Não trocaram muitas palavras depois do acontecimento constrangedor. A garota se arrependia por ser tão bisbilhoteira.

No entanto, seus pensamentos continuavam focados em outra coisa. Não conseguia parar de verificar se o pen-drive continuava preso em seu sutiã e o ponto em sua luva. Precisava manter tudo em ordem. Precisava manter discrição. Ela não era mais Kaya, seu nome era Christina Gallemb, uma jornalista bem sucedida que trabalhava no noticiário Notícias & Informações, da emissora Rede Geral, encarregada de coletar algumas informações do evento daquele ano. Só deveria evitar ter contato com as pessoas que trabalhavam mesmo naquilo, o que não seria muito difícil; Chloe se certificara, na lista, que não haveria muitas pessoas da emissora no local.

Eles tiveram que se separar de Kaya antes mesmo de deixá-la no edifício. Pagaram — na verdade, manipularam — um táxi autônomo para a garota chegar até lá. Despediram-se com abraços e desejos de boa sorte; a garota já suava outra vez. Por fim, entrou no banco traseiro do carro e esperou até chegar ao seu destino: o enorme e brilhante prédio no centro da cidade.

Ela saiu do táxi e se deparou com uma escadaria, onde um mar de fotógrafos estava aberto por uma passagem pavimentada com um carpete vermelho. Flashes fortes explodiam de todas as direções, um falatório alto não deixava Kaya pensar, tudo parecia tão bagunçado, por mais que fosse o evento mais organizado do mundo. Seguranças ajudavam as barreiras a conter os jornalistas não convidados.

Com a cabeça baixa, a adolescente subiu as escadas para adentrar logo naquele gigantesco palácio. Um segurança a parou logo na entrada, pedindo para verificar seu Registro. O medo a fez sentir um nó na garganta. Tensa, a garota ergueu sua mão até o reconhecedor biométrico, colocando os cinco dedos sobre o painel quente. Seu coração apertava a cada segundo que passava.

Que Chloe esteja certa, que Chloe esteja certa, que Chloe esteja certa...

Já estava com os olhos cheios de lágrimas quando a máquina apitou, iluminando sua mão com uma luz verde forte.

— Seja bem-vinda ao EACEI — disse o segurança, simpático, dando espaço para ela passar.

***

O quarteto estacionou a van debaixo de uma ponte. Estavam próximos ao centro da cidade, o lugar mais perigoso para Insurgentes frequentarem. Não podiam ficar expostos nas ruas dali. Portanto, aquele local, escuro e vazio, era o adequado.

Estavam todos ao redor da escrivaninha onde Chloe trabalhava, olhando para as três telas recém-montadas na parede da van conectadas às CPUs envoltas na bagunça de fios. Mostravam um mapa com as rotas em tempo real dos possíveis caminhões. Leyr não podia negar que estava bem nervoso com o que estavam prestes a fazer. Estava crente de que tudo daria certo; confiava em Kaya o suficiente para a tarefa que lhe foi dada, com certeza se sairia bem lá dentro. Ela faria aquilo pensando no irmão. Isso era seu combustível para funcionar.

— O caminhão mais provável de estar transportando as crianças é esse — falou a garota, apontando na tela para um dos veículos que saia do Centro de Pesquisas e seguia a rota para o prédio oficial do governo. — Eu consigo hackear o sistema de GPS deles para mudar as ruas que eles vão seguir. Podemos encurralá-los.

— É melhor fazer isso logo, então — disse Hug. — Não temos muito tempo.

Chloe se voltou para o teclado e começou a digitar furiosamente, abrindo diversos códigos grandes e complicados.

***

Kaya teve que passar por um corredor extenso antes de chegar ao salão onde o evento realmente acontecia. Era um lugar amplo, lotado com mesas circulares cobertas por toalhas brancas e douradas; todo o ambiente era enfeitado com essas cores. No centro do teto, havia uma cúpula de vidro, onde podia se ver o céu estrelado. Ao redor, lustres feitos com pedras preciosas davam luminosidade ao local, mantendo sempre um tom voltado para o amarelo. Havia um laguinho de água cristalina decorativo circulando o espaço, com pequenas pontes de madeira para a passagem. Os pilares que davam sustento à estrutura estavam enfeitados com fitas de luz de LED, envolvendo o cilindro de forma espiral por eles. Era interessante, pois havia um ponto dourado um pouco mais forte em cada um dos fios, que se movimentava como um vórtice, subindo até o teto e reaparecendo no chão.

Kaya estava encantada. Nenhum material ali era usado em Antã, nem mesmo o que compunha o chão, onde tudo era refletido como um espelho meio opaco e distorcido. Quase tudo no salão parecia ser feito de ouro. Bem acima das cabeças, num lugar inalcançável, drones ocupavam o ar com quatro ganchos metálicos carregando bandejas com comida e bebida; abaixavam a altitude de pouco em pouco, normalmente em cima de uma mesa ou na frente de alguém, oferecendo o que traziam.

De repente, viu pássaros verdes — reconheceu como maitacas —, batendo as asas e circulando no alto. Levou um susto quando um deles simplesmente atravessou os objetos voadores que ofereciam comida e bebida, como se fosse um fantasma. Projeções no ar... Imagens em 3D. Coisas que você consegue ver, mas elas não estão realmente ali. Eram hologramas...

O falatório e as risadas eram os culpados pela barulheira — além da música que parecia ser ao vivo, apesar de Kaya não ver ninguém tocando por perto. E, mesmo com diversas mesas desocupadas, as pessoas preferiam ficar de pé, criando movimento por entre os espaços vazios, caçando coisas interessantes para fazer. Sempre mantendo um sorriso no rosto, com suas roupas exuberantes, contendo fitas de LED colorido em qualquer ponto possível do tecido.

Depois de passar um longo tempo apenas admirando o salão, ela começou a andar. Enquanto atravessava a ponte do laguinho, olhou para os cantos mais discretos que conseguia enxergar, em busca de câmeras. Encontrou apenas uma, no entanto, tinha certeza que existiam mais por ali. Precisava de um ponto cego para se comunicar com os outros. Perguntou-se se os drones também eram espiões no ambiente.

Com os olhos voltados para cima, não prestou atenção e esbarrou contra uma garota. Ela não parecia ter muito mais do que a idade de Kaya, mas, pela sua maquiagem exagerada e seu vestido feito com penas artificiais e fios finos de LED, estava claro o quão rica deveria ser. A desconhecida se virou irritada em direção à adolescente, com o celular na mão e o cabelo rosa caído sobre os ombros.

— Olha pra frente! Eu tô tirando foto!

A garota conseguiu ver a imagem tirada na tela de seu celular: estava borrada por causa do esbarrão, mas ainda era distinguível o sorriso da garota e como a câmera de seu aparelho conseguia a deixar mais bonita. Kaya não entendeu as outras coisas envolvidas na foto; eram como imagens adicionais. Em um deles, estava escrito o nome do evento em letras douradas e brilhantes, mexendo com animação.

— Desculpa — falou, voltando a andar.

Chegou perto de onde estava mais lotado, onde havia um quadrado isolado por balcões de madeira e mármore. Era um bar. Várias pessoas estavam reunidas ao redor para conseguir bebidas com aqueles homens incrivelmente bonitos. Usavam uma faixa dourada de LED na cabeça para distinguir quem é trabalhador.

Ao entrar no meio das pessoas, se sentiu mais segura para colocar a mão no ouvido, pressionar e dizer:

— Estou aqui. Pra onde devo ir?

Numa tentativa de sair da muvuca, ela trombou outra vez com alguém. Agora era uma mulher mais velha, estava com uma taça cheia de bebida na mão. Derramou algumas gotas no chão e em seus dedos. No entanto, ao contrário do esperado, não ficou brava. Na verdade, acabou soltando uma gargalhada.

Kaya olhou para ela, constrangida. Vestia um vestido azul com um decote amplo, os ornamentos brilhando com as luzes. Seu rosto, por algum motivo, parecia ter sofrido alterações além da maquiagem. Era fino demais.

— Desculpa, garotinha. Estava empolgada demais tomando isso aqui. — Ergueu sua taça como se fosse um prêmio. Depois, depositou os olhos na roupa dela, os esbugalhando. — Mas que vestido deslumbrante! Onde comprou?

A garota foi pega de surpresa; não se lembrava o nome da loja.

— Ér... foi...

— Por que nunca nos vimos? — indagou a senhora. — Parece muito nova. É blogueira?

— Não, sou jornalista — se apressou em dizer, não fazendo a mínima ideia do que é uma blogueira. — Christina Gallemb, do Notícias & Informações. Preciso ir agora, meu chefe está me procurando.

Era a desculpa que mais treinara para usar nesse tipo de situação. No entanto, foi agarrada no pulso quando tentou se afastar.

— Espere, meu marido também trabalha nisso! — ela revelou, animada. Kaya gelou. — Humber Collor, conhece? — A menina balançou a cabeça para os lados. — Vou chamá-lo. Você já deve tê-lo visto... espere aqui um minuto!

A mulher soltou a adolescente, dando as costas e indo com rapidez em direção a uma das mesas. Foi a chance que Kaya teve para fugir.

— Maldito seja, me falem logo pra onde devo seguir! — exclamou, com o ponto no ouvido.

***

Escoltada por dois soldados, Lynn chegou ao evento, girando o "L" de seu colar. Não demorou para uma multidão de fotógrafos e entrevistadores se aglomerar ao seu redor. Mantinha um sorriso falso no rosto enquanto respondia o máximo de perguntas possíveis.

Entrou no edifício mais tarde do que previa, no entanto, não seguiu para o salão principal. Ao invés disso, foi para uma sala particular, no intuito de treinar seu discurso. Espero que passe rápido dessa vez, pensava, com a paciência já esgotando. Não tinha a intenção de ficar muito tempo, mesmo que o evento durasse a noite inteira. Entraria no palco, discursaria, anunciaria o vencedor e, enfim, iria embora.

Estava muito estressada para curtir o momento. Aquele EACEI caíra bem no dia do transporte da nova leva de crianças para o laboratório. Examinariam cada uma delas com precisão, coletariam a medula óssea para a produção de Imunitórios e as devolveriam ao prédio do governo. Por algum motivo, a mulher sentia que algo daria errado naquela noite. Estava com um pressentimento ruim.

No entanto, tentava o ignorar pelo menos por ora.

***

Leyr assistia Chloe trabalhar com fervor: ao mesmo tempo em que mantinha hackeado o sistema de um dos caminhões, ainda dava instruções a Kaya. Em um dos monitores, via-se a planta do Instituto Oficial de Tecnologia, onde se destacava um ponto vermelho, indicando a adolescente lá dentro.

A van agora estava parada em um beco vazio entre duas casas; além da voz da garota conversando com Kaya, não se ouvia nada. Gustavo e Hug estavam sentados nos bancos da frente, olhando em direção à rua estreita e sem saída no final da viela, para onde eles haviam mandado o caminhão seguir. Leyr olhou para a tela onde mostrava o mapa da cidade, vendo o alvo se aproximar da armadilha. Com a ansiedade o tomando, se levantou e foi até os garotos na frente.

— Estão chegando — falou.

Hug colocou suas mãos sobre o volante e apertou a borracha. Os três esperaram, quietos, até o veículo surgir.

Andava com lentidão e, assim que passou na frente do beco, deu para ver nitidamente que não havia motorista, nem mesmo alguém para cuidar da carga. Eles se entreolharam, confusos. Especulavam que poderia conter pelo menos um soldado dentro para proteger as crianças. Afinal, o caminhão carregava as melhores provas da existência do Lado de Fora. Era de se esperar que tivesse ninguém.

Enfim, passou a carroceria, fazendo Hug arrancar no mesmo instante. Parou poucos segundos depois, prendendo o caminhão no final da rua. Eles recolheram suas armas clandestinas, passaram por Chloe e saíram da van. Pularam para o asfalto, no escuro da noite úmida, mirando os fuzis em direção ao objetivo.

Leyr e Gustavo foram verificar se não havia realmente ninguém nos bancos da frente, enquanto Hug quebrava a tranca da porta da carroceria para abri-la. O rapaz olhou pela janela, checando os cantos mais escuros de dentro da cabine do motorista. Absolutamente vazio. Sem sinal de vida.

— Rapazes, venham aqui! — chamou o mais velho, fazendo os garotos correrem até ele.

Então, reunidos na traseira do caminhão, eles olharam para dentro do grande e escuro contêiner. Não havia criança alguma ali dentro. Só caixas e mais caixas contendo o que havia de mais mortal a sociedade deles: armas. Eles pegaram o caminhão errado.

— Ah, merda... — falou Leyr, decepcionado. — O que faremos agora?

Os dois olharam para ele, também com o desapontamento nos olhos.

— Acho melhor pegarmos esse caminhão e levarmos para o estacionamento onde guardamos a van. São muitas armas... — sugeriu Hug.

— O quê? — retrucou o garoto, indignado. — Não está se esquecendo de que prometemos àquela garota que iríamos recuperar Guto?

Você prometeu — falou Gustavo, enfatizando a primeira palavra.

Leyr ficou irritado. Estava frustrado. Não iria voltar ao subsolo até encontrarem outro jeito de realizarem a missão. Não podia fazer isso. Kaya almejava ter seu irmão de volta e eles a colocaram numa missão em troca disso. Precisava tentar alguma outra coisa.

— Isso não vem ao caso — disse o mais velho para o mais novo, ignorando o comentário de Gustavo. — Dissemos a ela que não era uma certeza.

— E só por isso devemos desistir agora? Sem fazer nada? Só por cima do meu cadáver — falou o garoto. — Você sabe que eu não sou assim, Hug.

Eles ficaram se encarando por um tempo, em silêncio. Quando Hug fez menção de voltar a falar, a atenção deles se voltou para a van, onde Chloe saia com seus fones enormes pendurados em seu pescoço.

— O que aconteceu? — perguntou, se aproximando deles.

O trio esperou a garota chegar mais perto.

— Era o caminhão errado — Hug explicou. — Acha que ainda consegue encontrar o certo?

Leyr se sentiu um pouco mais aliviado ao receber o apoio dele.

Chloe olhou para as armas dentro da carroceria, exibindo uma expressão surpresa e, ao mesmo tempo, de compreensão.

— Ah, droga... Devo ter confundido os caminhões — admitiu seu erro, colocando a mão na testa. — As crianças não estão saindo do Centro de Pesquisas nesse horário... elas estão saindo do prédio do governo...

Um suspiro coletivo ocorreu. O adolescente fechou os olhos, em busca de algum plano de última hora. Não culpava a garota por ter cometido esse erro; deveria estar sendo torturante para ela: cuidar dos caminhões e, ao mesmo tempo, de Kaya no EACEI.

— Eles ainda estão em movimento? — perguntou Hug.

Chloe colocou as mãos na cintura, pensativa.

— Ele ainda não chegou ao seu objetivo — explicou. — Deve estar perto do Instituto Oficial de Tecnologia, indo para o Centro de Pesquisas... Não sei se consigo hackeá-lo a tempo.

— Deve ter algum jeito... — disse Leyr, agitado.

O silêncio perdurou. O garoto tentava fazer sua cabeça funcionar, procurando com perseverança algum jeito de continuar a missão, qualquer coisa que viesse em mente. O cérebro fervilhava. No entanto, Gustavo, estrategista como sempre, foi o mais rápido:

— Acho que podemos roubar esse caminhão pra bloquear o caminho deles e usamos a van para tampar a rua por trás, assim não conseguem nem acelerar ou dar ré... — Fez uma pausa, olhando para o veículo. — Eu só não sei se conseguiremos sair vivos depois dessa...

***

Kaya estava chegando ao seu objetivo. Chloe nem precisava mais lhe dar instruções, sabia exatamente por onde seguir. Tinha se afastado do salão, agora caminhava por um jardim externo; as pessoas se reuniam para fumar ou descansar longe da multidão. Atravessou a grama por um caminho de concreto, onde as gotas dos irrigadores ligados não atingiam.

Chegou num corredor nas margens do jardim, o qual era separado apenas com um muro de pedra e pilares de mármore. A iluminação ali provinha de uma fita de LED azul colada no teto, que seguia até o fim. Quando estava já bem perto de onde precisava chegar, olhou para trás, certificando-se de que não tinha ninguém por perto. Contudo, ao virar para frente, deu de cara com o que, de início, pensou que fosse uma parede. Com rapidez, andou um passo para trás e olhou para seu obstáculo, se deparando com um soldado sem o capacete.

O rosto era quadrado e ossudo, os olhos negros como carvão. Era um homem robusto por completo, dos pés à cabeça. Seu cabelo estava penteado num topete loiro imóvel. Assustava apenas com o olhar. Em seu traje, uma etiqueta: HOCK F.

— O que está fazendo aqui? — perguntou com a voz grossa.

Ela engoliu em seco, com medo.

— Estou procurando o banheiro — mentiu, sem gaguejar, sendo convincente.

O homem a olhou de cima a baixo, como se tivesse a reconhecido de algum lugar. Seus ossos estavam congelados dentro de seu corpo. O coração batia com força.

— Tem um no final do corredor — informou. — Volte para o salão depois. Não pode ficar por aqui.

Aliviada, a garota assentiu. O soldado saiu pisando forte no chão, sem voltar a olhá-la. Enfim, ela seguiu para a sala dos servidores, sem ser interrompida por mais ninguém. Para entrar, precisou utilizar sua digital, porém, como Chloe havia dado acesso geral dentro do prédio para seu Registro, não teve problemas ao passar pela porta.

O ambiente era cheio de máquinas retangulares, fixadas de pé no chão com pequenos corredores entre fileiras. Elas eram responsáveis por iluminar o local também, despejando uma luz azul forte por toda a escuridão. Kaya estava com a pele azulada ali dentro. Também produziam sons esquisitos, semelhantes a zumbidos. Eram os tais "servidores". Algum deles era o responsável pelos canais de televisão, o que os fazia funcionar por toda a cidade.

Ela caminhou por entre as máquinas, checando a porta de vidro de cada uma, procurando pela "G322". Não demorou para encontrar o servidor certo, abrindo a porta dupla e olhando para todos aqueles buracos contidos na máquina. Retirou o pen-drive de seu sutiã, checando a ponta e voltando a olhar para as entradas. Precisava encontrar onde enfiava aquilo. Começou a testar em todos os buracos que encontrou, um por um, até que conseguiu conectar.

Respirou fundo, tranquilizada. Colocou o comunicador no ouvido e anunciou:

— Está feito. Vou ir pro ponto de encontro.

Enfim, saiu da sala, voltando ao salão principal, onde Lynn iniciava seu discurso para a premiação no palco onde a banda tocava antes. Tentou sair por uma das saídas, porém soldados a tampavam. Ninguém poderia ir embora até o anúncio se concluir.

Com um suspiro de desistência, Kaya foi até a multidão e assistiu a governante. Assim que acabasse, precisaria sair o mais rápido possível.

***

A mulher estava defronte a um púlpito de vidro recém-colocado em cima do palco. O microfone já estava posicionado em sua boca e o grande telão atrás de si mostrava o nome do evento com imagens ilustrativas passando. Aos poucos, todos foram se reunindo na frente dela para assistir a premiação. Os imunologistas indicados estavam sentados ali em cima também, porém atrás de uma cortina.

Aquele evento sempre fora uma palhaçada. Uma simples distração para a população. Faziam todos os anos, homenageando alguém pelos estudos e descobertas que ajudavam a criar remédios mais eficazes usando ervas naturais. Mas, na verdade, os verdadeiros imunologistas tinham que trabalhar em segredo; aqueles que realmente criavam remédios eficientes viviam escondidos, nos laboratórios do governo, trabalhando com as crianças do Lado de Fora. O prêmio só servia como incentivo a todos ajudarem a fortalecer o sistema imunológico de alguma maneira.

Infelizmente, não estava dando certo.

As luzes do salão começaram a mudar de cor aos poucos, saindo do dourado e indo para o azul. Em poucos segundos, todo o ambiente foi iluminado com aquela cor, numa quase escuridão de tons azulados.

— Bom, eu queria chamar a atenção de vocês por alguns instantes... — ela iniciou, colocando um sorriso no rosto. — Chegou a hora de anunciarmos nosso grande vencedor desse ano. Como todos sabem, nossa sociedade foi fundada muitos anos atrás por obrigação, uma última esperança de fazer nossa espécie sobreviver a uma catástrofe que nós mesmos causamos. A ingenuidade de nossos antepassados levou ao nosso colapso. Nós éramos a maioria nesse planeta e, agora, somos uma minoria sobrevivente.

"Desde que meu pai morreu, eu e meu irmão fomos encarregados de fazer o melhor para todos vocês. Somos as pessoas responsáveis pela sobrevivência de nosso povo. E eu relembro tudo isso a vocês hoje para destacar a importância dessa premiação. Criamos o EACEI como uma forma de incentivá-los. Uma forma de ajudar todos aqui. Ajudar nossa espécie a voltar para o que era antes. Por isso, eu tenho a honra de anunciar que aquele que mais fez pelo nosso sistema imunológico, o que mais progrediu nas pesquisas, o nosso grande vencedor desse ano é..."

No entanto, Lynn nunca terminou o que tinha para falar; um chiado horrendo vindo do telão rasgou o ar, num volume de explodir os tímpanos. A mulher virou de costas para o público, olhando para o enorme monitor bem quando ele parou de soar o barulho. Permaneceu cinco segundos preto, em silêncio, causando uma tensão forte na atmosfera do ambiente. Quando as pessoas já começavam a rir pensando ser algum erro de som, uma imagem surgiu.

Lynn gelou no lugar ao identificar o que as imagens passavam: o Lado de Fora.

— Eles estão mentindo para vocês — começou uma voz feminina a falar pelas caixas de som. — Nossa sociedade não é a única. Existe um lugar ao sul, não muito distante, fora da Fronteira. Há pessoas lá. Pessoas como nós, porém, com o sistema imunológico intacto. Porém elas são obrigadas pelo nosso governo a viverem nas piores condições. — No telão, vídeos mostravam pessoas com roupas rasgadas, caminhando com baldes de comida e água, crianças brincando no barro, homens trocando madeira por carne crua. — Para que eles possam usá-las em seus experimentos, no intuito de criar remédios melhores para nós.

Quando começou a mostrar uma criança sendo levada por soldados para dentro de um furgão e as exclamações da plateia passaram a ser constantes, a mulher acordou de seu transe. Agarrou seu celular com rapidez e correu para trás de uma das cortinas, onde ficou sozinha, ouvindo, de fundo, seus segredos serem revelados. Suas mãos tremiam. Ela suava frio.

Nem precisou discar número algum, já ligavam para ela do prédio do governo. Atendeu e antes que pudesse dizer qualquer coisa, a alertaram:

— Senhora, estão passando vídeos do Lado de Fora em todos os telões e televisões da cidade!

Isso só serviu para aumentar a dosagem de pânico em seu sistema nervoso. Toda a cidade estava vendo aquilo.

— O quê?! — Espantou-se. — Ative o protocolo blackout. Agora!

— Mas...

— Ative agora!

***

Kaya, orgulhosa de seu trabalho, assistia o vídeo tranquilamente enquanto todos se chocavam com as imagens passadas. A voz de Chloe soava em alto e bom tom, atingindo todos os cantos do salão. No entanto, quando estava na metade, houve um acontecimento fora dos planos, deixando a garota apavorada. Todas as luzes azuladas se apagaram num piscar de olhos, incluindo o telão. Então, todos ficaram num breu total.

Foi questão de segundos até os convidados começarem a gritar.

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