Águas de Março

Od gisscabeyo

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Rio de Janeiro, berço do samba, das poesias de Drummond, da Boemia de Chico Buarque, das noites na Lapa, da G... Viac

Prólogo.
1 - Goodbye, USA. Olá, Brasil.
2 - Coisas que eu sei.
3 - Mais do que oculta.
4 - Não era pra ser tão fatal.
5- Oblíqua e Dissimulada
6 - Ano novo, desejo antigo.
7 - Nosso jogo é perigoso, menina.
8 - Infinito particular.
9 - Boemia Carioca
10 - Quebrando tabus.
11 - Bom dia.
12 - Canto de Oxum
13 - Agradável e lento.
14 - Tempo ao tempo.
15 - Menina veneno.
16 - Contrapartida
17 - O que é meu, é seu.
18 - Colo de menina.
19 - Meu Pavilhão.
20 - Rua Santa Clara, 33.
21 - Sensações extremas.
22 - Aos pés do Redentor.
23 - Codinome Beija-flor.
24 - Cuida bem dela.
25 - Luz em todo morro.
26 - Queime.
27 - Azul da cor do mar.
28 - Revival
29 - Desague.
31 - Vamos nos permitir - part1.
Vamos nos permitir - part2.
32 - Idas e Vindas.
33 - A lua e o sol - part1.
34 - A lua e o sol - part2.
Bônus - Part. 1
Bônus - Part. 2
Spin off - part 1.
AVISO - LIVRO

30 - Axé!

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Od gisscabeyo


N/A: Heeeeey, guys, Hannah aqui! Desculpa pela demora, eu tava enrolada no escritório e faculdade, mas cá estou eu atualizando essa beleza. Gigi e eu esperamos que vocês gostem desse capítulo, deu um baita trabalho escrever. Ele é muito importante porque mostra conhecimentos sobre o Candomblé, peço que leiam com mente e coração abertos e, acima de tudo, respeito.

Enjoy(:

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"Isso é pra te levar no meu terreiro

Pra te levar no meu candomblé

Pra te levar no meu altar.

Isso é pra te levar na fé,

Pois Deus é brasileiro.

Muito obrigada, axé!"

- Ivete Sangalo e Maria Bethânia

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LAUREN POV

Estar com Camila era, sem dúvida alguma, uma aventura por dia. Sem contar com as experiências de quase morte que ela me fez passar enquanto fazíamos uma trilha sem supervisão porque, segundo ela, sabia todos os caminhos possíveis e impossíveis. O resultado foi um joelho ralado por mim e o resgate pelos bombeiros. Enquanto aqueles homens nos passavam um manual de noção, Camila sorria e olhava pra ele como se aquelas palavras estivem entrando por um ouvido e saindo pelo outro. Foi só quando ela realmente se cansou de ouvir a ladainha que levantou e me puxou pelo braço, deixando o homem com cara de paisagem.

- Ele estava de palhaçada, sabia? Não tinha nenhuma necessidade de falar sobre casos de desaparecimento e bla bla bla. - ela fez um gesto com as mãos e eu sorri, negando com a cabeça. - É sério! Já ouvi essas ladainhas umas mil vezes, aquele cara queria assunto, isso sim. Sem contar que não parava de olhar pra você e suas pernas. Fiquei com ciúmes dele cuidando do seu joelho, estava com segundas intenções.

- But... but... baby...

- Eu sei de um método muito melhor pra aliviar dores e melhorar machucados, sabia? Minha mãe me ensinou.

- Sério? Como funciona?

- Desse jeito.

Camila sentou um banco e pediu pra que eu levantasse o joelho até ficar de frente para o rosto dela. Algumas pessoas que passavam pareciam interessadas com a cena, outras apenas seguiam suas vidas. Camila observou o machucado que tinha um band-aid, se aproximou até eu senti sua respiração leve no meu joelho e deu um beijo por cima do curativo. Mais uma vez senti meu coração amolecer.

- Tenho certeza que agora vai até cicatrizar. - ela sorriu franzindo o nariz e mostrou a língua. - Quer almoçar? Podíamos tomar um banho, faço um curativo melhor nesse joelho e saímos pra comer.

- A ideia é perfeita, minha barriga está roncando e esse sol não ajuda em nada.

- Certo, comemos qualquer coisa e pegamos a estrada depois de descansar.

Camila e eu comemos em um restaurante perto do hotel e quando menos esperava, já estávamos na estrada voltando para o Rio. Observei os detalhes enquanto passávamos por pequenas cidades, o jeito das pessoas que não lembrava nem um pouco a loucura da cidade grande. Era uma gente simples, que pouco se importava com carros, pareciam preferir bicicletas ou carroças puxadas por burrinhos. Abri um sorriso involuntário vendo um grupo de crianças se divertindo em uma pracinha e Camila me chamou atenção.

- Está rindo de que?

- Reparei naquelas crianças ali. – apontei para o grupinho que agora corria em direção ao pipoqueiro e Camila sorriu. – Elas parecem tão felizes, mesmo tão longe da cidade grande. Quer dizer, não precisam de toda tecnologia e parques fechados pra se divertir, um simples escorrega e gangorras é o suficiente.

- Minha mãe costumava dizer que as pessoas simples são mais felizes porque não tem com o que se preocupar, as futilidades não existem. Entende? É muito melhor ser simples e feliz do que podre de rico, fútil e ter cabelos brancos antes dos trinta.

- Sua mãe estava certa. – encostei a testa no vidro e suspirei. – Posso confessar uma coisa? – Camila me encarou rapidamente antes de voltar sua atenção para a estrada e concordou. – Essa coisa de ter cabelos brancos antes dos trinta... você acha que eu tenho alguns? Quer dizer, eu só pensava em trabalho...

A risada dela preencheu o carro de uma maneira que a música que estava tocando, um ponto de Oxum cantado por Mariene de Castro, ficou distante pra mim. O som alegre que saía da boca dela fez minhas bochechas esquentarem de vergonha e revirei os olhos, lhe dando um tapinha no braço. Camila respirou fundo e quando o carro parou no sinal, ela segurou minha mão.

- Você não tem cabelos brancos e não é fútil, Lauren. Minha mãe falava sobre as pessoas que vivem pra ter tudo do bom e do melhor e esquecem a humildade, a empatia pelos outros. Entendeu? Você não é assim.

- Fala isso porque gosta de mim, aposto que se não tivéssemos nada, ia pensar o contrário.

- Lauren, eu gostei de você no segundo em que coloquei meus olhos nos seus, não existia chance de achar que tinha algo ruim. Um pouco séria e mal-humorada, sim... mas fútil? Jamais.

- Tudo bem, você me convenceu, mas só por enquanto. – ela se aproximou de mim e me afoguei naquele mar castanho que tanto amava, antes de sentir seus lábios macios encostando nos meus. – Agora vamos, preciso buscar o Joker e já descobri que meus pais saíram.

- Isso é ruim?

- Claro, deixaram Taylor cuidando do meu cachorro. Tem noção do perigo?

Camila sorriu pra mim mais uma vez e voltou a dirigir, batucando no volante quando a música Samba de Terreiro começou a tocar. Fechei os olhos para descansar e não lembro do que sonhei, mas acordei alguns minutos depois um pouco suada e assustada, pensando se tinha sido algo ruim..


Quando entramos na garagem do prédio, senti minha bunda dormente depois de tanto tempo sentada no carro. Camila parecia ter corrido uma maratona e a mandei subir para tomar um banho, eu não precisava da ajuda dela para tirar as malas do carro, preferia que a pequena fosse descansar antes de encararmos um lugar chamado Mercadão de Madureira amanhã, que ela comentou enquanto estávamos vindo pro Rio.

- É um lugar enorme, você vai ver só, tem de tudo! Preciso comprar as coisas pra minha coroação e você pode aproveitar pra conhecer um pouco mais do Rio.

Ela disse tudo com um sorriso no rosto e eu concordei sem pensar duas vezes, mas tentei imaginar se o lugar estaria tão lotado como qualquer centro comercial fica nos dias de semana. Eu adorava ver a empolgação dela toda vez que falava sobre a coroação, é como se Camila estivesse esperando por isso a vida toda. O brilho no olhar dela lhe dava um ar infantil e excitado, como uma criança antes da chegada do Papai Noel no natal.

A temperatura no Rio tinha despencado um pouco e esfreguei os braços enquanto caminhava em direção ao elevador com duas bolsas de viagem. Não me lembrava da última vez em que senti frio no Rio, mas estava gostando. Um funcionário simpático sorriu e abriu a porta do elevador pra mim, ele estava fazendo alguma coisa na caixa de luz do prédio. Agradeci a ele com um movimento de cabeça e quando fechou a porta, encostei as costas na parede gelada do elevador. À medida que subia os andares, suspirei ao tomar consciência do quanto minha vida estava boa. Tinha uma namorada maravilhosa, o emprego dos sonhos, morava em um lugar lindo como o Rio de Janeiro, estava reunida com minha família. É como se nada pudesse dar errado ou me tirar do sério hoje.

As portas se abriram na cobertura e antes de encostar a chave no buraco da fechadura, escutei vozes alteradas de dentro do apartamento. Hesitei antes de abrir a porta, se fosse meus pais, não pretendia intervir em nada. Entrei no apartamento sem fazer muito barulho e joguei as bolsas na sala, caminhando com cuidado pelo corredor em direção ao quarto de Taylor para ver se ela estava em casa, mas percebi uma coisa que me fez entrar em estado de alerta; a confusão vinha dali. Ao ver o que estava acontecendo, abri a porta com força, que bateu com um estrondo na parede, fazendo os dois pararem de se encarar e me olharam assustados.

O famoso Beto estava segurando com força o braço da minha irmã e apontando o dedo indicador no rosto dela. Ele parecia tão alterado que eu conseguia ver nos olhos de Taylor que ela estava com medo. O rosto de Beto estava quase roxo e a veia no pescoço dele pulsava enquanto sua voz crescia para cima da minha irmã, que parecia se encolher ainda mais.

- Ei, o que pensa que está fazendo?! Solta minha irmã, garoto! – entrei no quarto e ele não pareceu nem ao menos me ouvir. – Ficou surdo, porra?! Solta minha irmã!

- Você vai voltar comigo sim, entendeu?! Tá pensando que eu sou homem de ser passado pra trás? Se não ficar comigo, não vai ficar com ninguém. Teu negócio é homem, Taylor Jauregui. Se eu souber que você terminou comigo por causa de boceta, arrebento sua cara e a cara da vagabunda que você se colar.

- Eu... eu não estou com mulher nenhuma. Beto, me solta, você tá me machucando! – ela tentou afrouxar o aperto dele e Beto a puxou com mais força, balançando o braço dela. – Beto, para com isso, vamos conversar direito! Olha o seu estado, você não é assim.

- Se eu tiver que mandar você soltar ela de novo, vou dar um jeito das suas mãos não segurarem mais nada. Solta minha irmã!

- Vai tomar no cu, garota. – ele olhou pra mim com raiva e depois voltou a encarar Taylor. - Eu não sou homem de ficar esperando mulher nenhuma se decidir. Você vai voltar comigo hoje. Eu te amo pra caralho, sou o único cara nessa porra de mundo que é capaz de dar tudo que você precisa. Não consegue ver isso, não?!

- Beto, por favor, você tá me machucando.

Ele, que mesmo com a minha presença não largou o braço da minha irmã, saiu puxando Taylor em direção ao corredor.

- Onde você pensa que vai, seu moleque? – fiquei na frente da porta e caminhei na direção deles com as mãos na cintura. – Pela última vez, solta o braço dela.

- Não solto porra nenhuma, nós estávamos conversando. Não se mete.

- Excuse me?! – segurei a mão dele com força e apertei, fazendo com que Beto soltasse o braço de Taylor. – Quem você pensa que é? Está achando que eu sou algum amigo seu? Quando eu mandei você soltar ela, era pra soltar e ponto final. Aqui você não manda em nada.

- Nós temos coisas a conversar, não temos, Taylor? Anda, vamos pra minha casa. – minha irmã ameaçou dar um passo em direção a ele e fiquei na frente dela. – Não tá vendo que ela quer conversar comigo, porra?! Para de se meter e vai procurar sua namorada, lésbica do caralho. Aqui o papo é entre homem e mulher, o que é o certo.

Eu nem mesmo sei o que me deu, mas não ousei encostar a mão nele. Segurei aquele metido pela gola da camisa e aproximei meu rosto até estar tão próxima que podia sentir a respiração nervosa dele. Os olhos de Beto estavam tão fixos nos meus e pareciam raivosos, prontos para atacar.

- Você vai sentar naquela sala agora e ficar calminho, está me entendendo?! Minha irmã não vai pra lugar nenhum com um garoto como você.

- Ela vai me procurar, sabe por que? Porque só eu sei meter e fazer ela gemer do jeito certo. Nenhum homem nem mulher seria capaz de foder a Taylor do jeito que eu sei. Por isso que ela sempre volta, não importa quantas merdas eu faça. Posso meter trinta chifres na cabeça dela, mas meu pau será sempre pra onde ela corre.

A risada dele foi seca e maldosa. Senti meu elástico de sanidade quase estourar e o puxei em direção a sala, sob protestos de Taylor, que gritava desesperada com medo de alguma coisa acontecer. Joguei Beto de qualquer jeito no sofá e peguei o telefone, discando três números que Camila me mostrou caso eu estivesse com problemas. 180. Depois de quatro toques, uma voz tediosa atendeu a chamada.

- Central de atendimento à Mulher, em que posso ajuda-la?

- Boa noite, estou com um caso de agressão contra a minha irmã. Gostaria de denunciar e que uma viatura viesse até minha casa, o rapaz está um pouco descontrolado.

- Estamos rastreando sua ligação, senhora, espere um instante.

- Viatura? Polícia?! Tá maluca? Eu não vou ser preso de jeito nenhum por falar e fazer o que eu quero! – Beto tentou levantar e eu o empurrei de volta no sofá, fazendo com que ele caísse de mau jeito. – Daqui a pouco quem vai chamar a polícia sou eu!

- SHUT THE FUCK UP! – soltei um grito engasgado e quando a mulher confirmou que uma viatura próxima estava à caminho para averiguar a situação, desliguei o celular. – Você é o tipo de homem que acha que pode fazer qualquer coisa com uma mulher e que nada vai acontecer, mas adivinhe só? Não é bem assim que funciona, amigo. Você vai responder a um processo por violência, minha irmã está com os braços marcados, sem contar com os danos psicológicos. Seu problema é que seus pais não devem ter te ensinado a aceitar um não, mas eu estou aqui pra te ensinar. É melhor você ficar paradinho aqui enquanto a viatura chega.

Beto tentou argumentar, mas estava roxo de ódio. As palavras estavam prontas para sair, mas o medo de se dar mal mais ainda por conta delas o fez engolir uma por uma. Aproveitei que minha irmã estava no banheiro chorando e liguei para a única pessoa além da polícia que poderia dar um jeito na situação.

- Oi, minha filha, tudo bem? Eu e sua mãe estamos jantando no quiosque aqui em Copacabana, está em casa? Ah, trouxemos o Joker pra dar uma volta.

- Pai, vem pra casa agora, as coisas não estão boas.

- O que aconteceu?! Vamos pagar a conta agora e estamos indo.

- Conversamos melhor quando vocês chegarem. – encerrei a ligação e guardei o celular no bolso. – Fuck...

- Nossos pais não, por favor! Não mete eles nisso, Laur, por favor! – Taylor apareceu como um furacão na sala e começou a me balançar. – Chama a polícia, o que precisar, mas não mete nossos pais nisso, por favor!

- Taylor, stop! Now! – a segurei com leveza pelos braços e senti meu coração quebrar em mil pedaços ao vê-la chorando daquele jeito. Fiz um carinho na bochecha dela e ela se afastou. – Fica no seu quarto por enquanto, okay? Vou falar com nossos pais.

Quando minha irmã se afastou cobrindo o rosto para não mostrar as lágrimas, respirei fundo e suspirei, ouvindo a risadinha cínica de Beto, que agora estava de braços cruzados e sorrindo pra mim. Franzi o cenho e ele colocou os braços atrás da cabeça, parecendo completamente relaxado.

- Vai dar nada pra mim, otária. Além de eu me livrar de qualquer porcaria que tentarem fazer, de quebra sua irmã vai voltar pra mim. É como tirar Jackpot no cassino.

- Você por acaso esqueceu que meu pai é ex-militar? Não faz nenhuma ideia dos contatos dele, né? Eu me impressionaria se você ainda puder dormir em casa hoje.

Finalmente consegui tirar o sorrisinho dele do rosto e alguns minutos depois, ouvimos a sirene da polícia na rua, o que fez Beto ficar branco como papel. Seu cabelo, que estava suado quando ele gritava com Taylor no quarto, parecia caído e sem graça na testa. Fiquei comemorando por dentro por saber que ele agora estava tremendo não de raiva, mas de medo pelo que poderia acontecer. Sentei na poltrona em frente ao sofá e esperei a porta abrir, o que não demorou nada. Na frente, guiando os policiais, estava Michael Jauregui, puto como um touro e minha mãe segurando Joker, que ao me ver, começou a se debater como um inseto de cabeça para baixo. Minha mãe soltou o cachorro, que correu na minha direção.

- Olha, seu moleque, se não fosse a lei, eu torceria o seu pescoço. – meu pai apontou o dedo na direção de Beto e ele se encolheu. – Juro por Deus, eu...

- Vamos, senhor Jauregui, nós resolvemos isso.

Uma mulher estava parada com as mãos no cinto e tinha um sorriso maldoso no rosto, era o tipo de expressão que eu esperava. Atrás dela, dois policiais do tamanho de armários analisavam a casa com curiosidade, isso me deixou um pouco incomodada. Era negra, um tom de pele bonito que brilhava com a luz. Tinha um sorriso que com certeza fazia muitos homens caírem no chão.

- Certo, Patrícia, faça o que precisa fazer, mas tire esse merdinha da minha frente e chame a delegada Barbosa, quero conversar com ela ainda hoje.

- Delegada?! Como assim? Olha, tio Michael, foi só uma discussão e...

- Se me chamar de tio mais uma vez, arranco sua língua, seu filho da puta. Quem você pensa que é pra entrar na minha casa e agredir minha filha? Ela tem pai e mãe e logo logo vou descobrir se os seus são como você ou terão a consciência que criaram um animal.

- Muito bem, muito bem, vamos parando com isso, senhor Jauregui, se acabar se exaltando vou ter que leva-lo também. Nunes, Rodrigues, levem o bonitão pro camburão.

- Camburão?! Que isso?! Eu deveria ir em um carro comum, nada foi provado.

- Olha, bonitão, eu só não posso te algemar, de resto, não tem ninguém aqui pra reclamar. Nós vamos dar um passeio até a delegacia. – Patrícia sorriu e suspirou, olhando pra mim e me analisando por mais tempo que eu gostaria. – Foi você quem fez a denúncia?

- Sim, sou a irmã da menina que ele tentou dar uma de machão.

- Você fala engraçado. – revirei os olhos e levantei da poltrona. – Espero que não tenha ofendido, nem nada.

- Não ofendeu. Vou buscar a Taylor, ela provavelmente precisa ficar frente a frente com a delegada, certo?

- A senhora é entendida do assunto, hein?

- É, sou sim. Esperem um instante, vou busca-la.

- Enquanto a moça vai buscar a garota, vamos levar o bonitão pro carro e correr pra delegacia. – Patrícia fez um sinal para os dois policiais e Beto começou a protestar. – Pode reclamar o quanto quiser, deveria ter pensado nisso antes de bancar o machão.

- Eu quero chamar os meus pais, tenho esse direito!

- Na delegacia você bate um fio pra eles. Circulando, pessoal. Senhor Jauregui, nos encontramos na delegacia em vinte minutos. Boa noite.

- Boa noite, Patrícia, obrigado. Nos vemos já já.

Quando os três saíram levando Beto sob protestos, me esgueirei até o quarto de Taylor. Ela estava chorando com o rosto no travesseiro e sentei na ponta da cama, fazendo um carinho em suas costas. Me surpreendendo com o movimento, Taylor levantou e me abraçou com força. Senti suas lágrimas molharem meu ombro e afaguei seus cabelos.

- O-obrigada, La-lauren, meu Deus... eu... eu... eu não s-sei o que teria a-acon-acontecido se você não tivesse a-aparecido.

- Shh... está tudo bem, acabou. – beijei a têmpora dela e Taylor soluçou mais alto. Afastei o corpo dela e sequei seus olhos. – Eu preciso que você se arrume, okay? Meus pais vão te levar pra delegacia, eles provavelmente vão analisar as marcas no seu corpo, que pelo visto, não são poucas.

Os braços de Taylor tinham hematomas roxos e alguns estavam amarelados. Fiquei pensando o que teria acontecido se eu não tivesse chegado na hora para intervir, o quanto acontece em outras casas quando alguém não tem coragem de se meter ou de denunciar. Minha irmã é uma entre muitas que sofreram com isso. O certo seria que se você presenciar algo do tipo, sempre denunciar. Não tenha medo. São três números e não custa nada, sempre podemos salvar mais uma vítima. Basta discar um, oito, zero e fazer nossa parte. Suspirei ao sentir minha irmã segura em meus braços e pensei que depois de hoje, não veria o tal Beto tão cedo.


- Mentira que esse babado todo aconteceu bem em cima de mim e eu não escutei nada?! – Camila estava chocada escutando a história da noite anterior e eu sorri, negando com a cabeça. – Por que você não me ligou, amor?!

- Se você não escutou sirene e nem os berros do Beto, significa que estava totalmente apagada depois de ter tomado banho. Eu sabia que você precisava descansar depois de dirigir por tanto tempo. A melhor parte disso tudo é que meu pai deu um jeito de deixar o machão preso por três dias na delegacia, afinal de contas, o filho da puta tem um bom advogado.

- Se eu tivesse lá, teria chutado as bolas murchas e aquele pau pequeno sem dó.

- Como você sabe que é pequeno?!

- Eu e Taylor conversamos sobre tudo, okay? Acha mesmo que eu não falei pra ela sobre as nossas transas?

- Holy fuck, Camila! Que vergonha!

- Sente vergonha agora, mas na hora não passa um fio de vergonhinha nessa cabeça tarada.

- Não passa mesmo. – passei a mão pela coxa dela, por baixo da saia e Camila tremeu, mordendo o lábio inferior. – Melhor não fazer isso, você pode bater e não quero que aconteça nada antes da senhorita se tornar Mãe Pequena.

- Ah tá, então depois disso pode acontecer?!

- Claro que não, amor! Sorry.

- Estou só brincando, fica tranquila. Adoro quando você faz essas caras de desespero. – apertei a coxa dela e Camila gemeu. – Para com isso, senão ao invés de ir ao Mercadão, te levo pro motel.

- Não seria uma má ideia, sabia?

Camila sorriu e apontou para uma construção simples. Notei na quantidade de pessoas que estavam transitando pelas calçadas, entrando e saindo do prédio com sacolas e mais sacolas. Nós estacionamos o carro no mercado do outro lado da rua e atravessamos, já sentindo o calor queimar minha cabeça. Pensei que o tal Mercadão de Madureira era pequeno pela entrada, mas ao passar pela porta, meu queixo foi no chão. Eram dezenas, senão milhares de pequenas lojas distribuídas por corredores e andares. Camila tirou uma lista de dentro da bolsa e nem percebeu minha boca aberta de surpresa.

- Tudo bem, preciso comprar alguidar, cumbuca e contas. Minha roupa, renda, tecido, esteira e... Lauren, tudo bem?

- Esse lugar é enorme!

- Achei que tinha acontecido alguma coisa, meu Deus. – ela sorriu e guardou a lista, segurando minha mão. – Vamos primeiro na loja pra eu comprar o mais básico, vamos deixar roupa pro final.

Me senti uma criança dentro de uma loja de brinquedos. Obriguei Camila a parar em pelo menos sete lojas diferentes para que eu comprasse algumas coisas pra casa, quando eu insisti na ideia de levar um quadro enorme, ela se irritou e me puxou para longe do vendedor, que esperava conseguir muito mais do que uma simples venda. Eu estava cheia de sacolas, toda hora analisando um conjunto de copos com imagens do Rio de Janeiro e mal percebi quando Camila nos levou até a loja de produtos do candomblé.

Eu gostei do cheiro, era forte e parecia anestesiar o corpo. Uma placa dizia o nome da loja; O Rei dos Orixás. Estava bem movimentada, mas quando entramos na loja, foi como se todos os olhares virassem pra nós ao mesmo tempo.

- Boa tarde, senhoritas, em que posso servi-las? – uma senhora negra e idosa, que lembrava a mãe de Normani, nos recebeu com um sorriso. – Estão a procura de algo especial?

- Boa tarde, eu serei coroada Iya Kekere do meu terreiro e preciso comprar as coisas necessárias para...

A mulher soltou um gritinho agudo e bateu palmas de comemoração. Camila e eu ficamos paradas como duas estátuas, surpresas demais com a atitude da mulher para esboçar qualquer reação diferente. Ela puxou Camila pelo braço até o fundo da loja e um senhor de idade nos encarou com curiosidade.

- Jorge, essa mocinha será coroada Iya Kekere. Olha que linda! – o velho abriu um sorriso cheio de emoção pra Camila, que parecia extremamente feliz com o carinho. – Senti uma energia boa vinda de você assim que te olhei. Tenho uma prima que foi filha de santo da Mãe Menininha do Gantois, nós somos da Bahia, sabe... viemos pro Rio tem pouco mais de dez anos. Ficamos muito felizes por ela, era uma moça linda feita de Obá.

- Eu sou filha de Oxum com Xangô. – a mulher soltou outro gritinho e dessa vez, Camila sorriu. – Pode me ajudar a conseguir tudo? Estou meio enrolada e não quero ter que ir em muitas lojas diferentes, já vi que aqui tem o que preciso.

- Vou te mostrar as melhores e mais bonitas peças que nós temos. Meu marido ali é feito de Xangô.

- Kaô Kabiesilé!

- Kaô, meu pai Xangô! – Camila respondeu com um sorriso genuíno.

Ele fez um movimento com as mãos, como se estivesse rezando. Decidi não falar muito e enquanto Camila estava dando voltas na loja com a senhora tagarelando em seu ouvido, prestei atenção em pequenas estátuas expostas. Deduzi que só poderiam ser os Orixás, cada um com sua peculiaridade. Entre todos eles, reconheci Oxum, com seu espelho dourado e saia amarela. Imaginei o quanto Camila ficaria bonita quando a hora chegasse e suspirei, mas soltei um gritinho de susto quando o idoso pigarreou ao meu lado.

- Holy fuck... o senhor me assustou.

- Desculpa, moça, mas você parecia curiosa nas nossas estátuas. Achou alguma bonita?

- São todas muito bonitas, é um trabalho bem feito. O senhor quem faz?

- Só as grandes ali. – ele apontou para uma fileira de estátuas e sorriu com orgulho. – Você é da religião também?

- Ah... não, não... Eu sou ateia.

- Parece não, moça. Seu fascínio é muito bonito pra alguém que não acredita que uma divindade está por trás das energias do mundo.

- Ei, amor, tudo bem? – Camila sorriu para o homem, que fez um gesto com a cabeça e se afastou, voltando para o balcão. – Ele falou alguma coisa ruim pra você?

- Não, não, só estava comentando que é ele quem faz aquelas estátuas maiores. Conseguiu tudo que queria?

- Passei a lista pra ela, vai procurar e me chamar quando estivermos prontas pra ir. Ah... olha essas belezas como são bem esculpidas. – ela analisou as miniaturas e apontou para a primeira imagem. – Essa daqui é Nanã, é mãe dos orixás Iroko, Obaluaiê e Oxumaré, mas por ser a deusa mais velha do candomblé, é respeitada como mãe por todos os outros orixás. Os domínios dela são vida e morte, saúde e maternidade. A saudação é Salubá!

- É tão bonita as cores da roupa dela, anil, branco e roxo.

- Do lado de Nanã, está Omulú. Ele é o mais temido entre todos os deuses africanos, o orixá da cura, o poderoso "Rei Dono da Terra". Os domínios dele são as doenças epidémicas, cura de doenças, saúde, vida e morte. A saudação é Atotô!

- Por que ele está com o corpo coberto por essa palha? Ao mesmo tempo em que é bonito, fica um pouco assustador.

- Minha mãe me contou que a lenda é de que Nanã o abandonou na beira da praia porque ele nasceu com o corpo coberto de chagas e, nesse tempo, um caranguejo causou ferimentos graves na pele dele. Yemanjá o encontrou e criou com todo amor e carinho, curou as feridas e pústulas dele e o transformou num grande guerreiro e hábil caçador, que se cobria com essa palha não porque escondia as marcas de sua doença, como muita gente pensa, mas porque ele se tornou um ser de brilho tão intenso quanto o próprio sol. Ah, e ele também é conhecido como Obaluaê.

- Ele é completamente fascinante. Olha só como é bonito, parece que está dançando. – Camila sorriu e me deu um beijo na bochecha, me tirando da minha hipnose parcial. – Me conta um pouco mais?

- Eu gosto muito quando você me pergunta sobre essas coisas, é tão bom saber que está disposta a escutar e aprender um pouco mais.

- Porque você está aqui pra me ensinar, talvez seja esse o motivo de eu amar tanto essas histórias, elas vêm de você.

- Como sempre, me deixando com vergonha. – lhe dei um beijo na ponta do nariz e Camila suspirou, apontando para outra estátua, que tinha um pano com a bandeira do arco-íris. – Esse é Oxumaré, o orixá de todos os movimentos, de todos os ciclos. Se um dia Oxumaré perder suas forças o mundo acabará, porque o universo é dinâmico e a Terra também se encontra em constante movimento. Os domínios dele são riqueza, vida longa, ciclos, movimentos constantes. A saudação é A Run Boboi! Ele é o irmão mais novo de Omulú, mas não foi abandonado porque nasceu lindo como o arco-íris, por isso ele usa as cores na roupa.

- Por que Nanã abandonou Omulú, mas não abandonou Oxumaré?

- Não podemos crucificar Nanã por isso, amor, naquela época era um costume, quase uma obrigação ritual da época abandonar os filhos que tivessem alguma deformidade. Eu acho isso super errado, mas não podemos julgá-la. Como a moça está quase terminando de ver as coisas pra gente ir embora, vou falar o básico de cada um deles, tudo bem? Outro dia te conto as lendas.

- Tudo bem, não se pode ganhar sempre.

- Oxalá, que é o detentor do poder procriador masculino. Os domínios dele são criação, vida e morte. A saudação é Epa Bàbá! O legal é que quando se incorpora, assume duas formas: Oxaguiã, jovem guerreiro, e Oxalufã, velho apoiado num bastão de prata. – ela esfregou o topo da cabeça e uma luz pareceu acender em cima. - Do lado de Oxalá está Ogum, é o orixá guerreiro, implacável, conquistador, deus do ferro, da metalurgia e da tecnologia. Seus domínios são guerra, progresso, conquista e metalurgia. Sua saudação é Ògún ieé!

- Gosto dele, representa aquelas pessoas que lutam pra conseguir o que querem, que batalham por seu espaço. Me identifico um pouco.

- Quem sabe não seja ele seu pai de cabeça? – olhei pra ela com um pouco de surpresa e Camila sorriu. Aquele olhar iluminado fez meu coração bater mais rápido. Ela estava tão feliz me contando aquelas histórias que eu poderia ouvir duzentas vezes se quisesse falar. – Atrás de Ogum está Exú, é a figura mais importante da cultura yorubá. Sem ele o mundo não faria sentido, pois só através de Exú é que se chega aos demais orixás e ao Deus Supremo Olodumaré. Exú fala toda as línguas e permite a comunicação entre o orum e o aiê, entre os orixás e os homens. Os domínios dele são sexo, magia, união, poder e transformação. A saudação é Laroié! Muitas pessoas associam a imagem de Exú como sendo do Diabo, coisa da igreja católica, mas isso é um absurdo completo.

- Muitas coisas são absurdos completos, acredito nisso tem um tempo.

Fiz um carinho na bochecha de Camila e ela sorriu, me dando um beijo na palma da mão. Ao fundo, vi a dona da loja correr de um lado para o outro segurando tecidos dourados, velas e outros objetos que não reconheci. Muitas pessoas estavam vendo as estátuas maiores dos Orixás e outras pararam para ouvir a história que Camila estava contando, mesmo que disfarçando.

- Continuando, do lado de Exú está Oxóssi, é o deus caçador, senhor da floresta e de todos os seres que nela habitam, orixá da fartura e da riqueza. Seus domínios são caça, agricultura, alimentação e fartura. A saudação é Òké Aro! Arolé! – ela falou um pouco alto e as pessoas nos olharam intrigadas, o que nos fez rir como duas crianças culpadas. – Aquele é Iroko, ele é a própria representação da dimensão tempo. Seu domínio é a ancestralidade e a saudação é Iroko Issó! Eró! Iroko Kissilé!

- Olha só, aqui tem dois. Qual o nome deles? Parecem grudados.

- Esse é Ibeji, é o Orixá-Criança, em realidade, duas divindades gêmeas infantis, ligadas a todos os orixás e seres humanos. Os domínios são nascimento e infância. Sua saudação é Bejiróó! Do lado de Ibeji, temos Ossain. Ele é o grande sacerdote das folhas, grande feiticeiro, que por meio das folhas pode realizar curas e milagres, pode trazer progresso e riqueza. Os domínios são medicina e liturgia através das folhas. A saudação é Ewé ó!

O movimento da loja parecia mais intenso que nunca e Camila não tirava os olhos das estátuas. Sua mão foi na direção de uma atrás de Ossain e ela sorriu como se fosse um velho amigo. Olhei em volta para procurar a dona da loja e notei que ela estava mais atolada do que nunca, pedindo para outras pessoas esperarem porque estava muito ocupada. Jorge, o idoso que falou comigo antes de Camila começar a contar as histórias, estava me olhando com uma atenção de professor, como se esperasse por alguma reação minha. Mas qual?

- O bonitão aqui é Logun Edé, é o orixá da riqueza e da fartura, filho de Oxum e Oxóssi, deus da guerra e da água. É, sem dúvida, um dos mais bonitos orixás do Candomblé, já que a beleza é uma das principais características dos seus pais. Os domínios dele são riqueza, fartura e beleza. A saudação é Logun ô akofá!

Uma pessoa que estava passando na hora fez um movimento de cabeça e Camila repetiu, como se fossem velhos conhecidos. Ela notou minha dúvida e deu de ombros. Talvez seja filho desse orixá, caso contrário, não teria motivos pra agir como agiu.

- A bela moça aqui é Ewá, casta, a senhora das possibilidades. Seus domínios são beleza, vidência, como sensibilidade e sexto sentido, criatividade, possibilidades. A saudação é Ri Ro Ewá! Ao lado dela está Obá. Ela é filha de Iemanjá e Oxalá, é um orixá que raramente se manifesta e há pouco estudo sobre ela. É a mulher consciente do seu poder, que luta e reivindica os seus direitos, que enfrenta qualquer homem, menos aquele que tomar o seu coração. Ela abraça qualquer causa, mas rende-se a uma paixão. Seus domínios são amor e sucesso profissional. Sua saudação é Obà Siré! Ah... e Obá quando incorpora, dança tampando a orelha.

- Por que?!

- Ela cortou... – arregalei os olhos e Camila riu, negando com a cabeça. – É uma longa história, me lembra de te contar depois.

- Estou tentando pensar em muitos motivos que levam uma pessoa a cortar a própria orelha e não me vem nenhum. Quer dizer, só quando penso em Van Gogh.

- Esquece isso, amor, te conto depois. Do lado de Obá está Iansã.

- Essa é a mãe da Normani? É tão bonita.

- Não sei, mas nós duas achamos que tem grandes chances de ser sim. Mani tem muito de Iansã, ficaria um pouco chocada se outro orixá fosse dono da cabeça dela. Bom, mas falando sobre ela, Iansã é a rainha dos raios, das ventanias, do tempo que se fecha sem chover. É uma guerreira por vocação, sabe ir à luta e defender o que é seu, a batalha do dia-a-dia é a sua felicidade. Ela sabe conquistar, seja no fervor das guerras, seja na arte do amor. Seus domínios são tempestades, ventanias, raios, morte. Sua saudação é Epahey Oyá!

Uma mulher que estava dentro da loja soltou um grito tão alto que dei um pulinho com o susto, ela fez a saudação junto com Camila e abriu um sorriso. Era estranho e ao mesmo tempo engraçado o quanto as pessoas podiam, de repente, se tornar conhecidas em um piscar de olhos.

- Essa eu conheço bem... Yemanjá, rainha das águas.

- Exatamente, amor... É a rainha de todas as águas do mundo, seja dos rios, seja do mar. Yemanjá é a mãe de todos os filhos, mãe de todo mundo. É ela quem sustenta a humanidade. Ela, por presidir à formação da individualidade, que como sabemos está na cabeça, está presente em todos os rituais, especialmente o Bori. Seus domínios são maternidade, saúde mental e psicológica. Sua saudação é Erù-Iyá, Odó-Iyá! Como eu já tinha falado antes, ela tanto ama os filhos sem distinção, que pegou Omulú e criou como se fosse dela, mesmo com as feridas pelo corpo dele.

- É uma mulher incrível. – meus olhos brilharam para a estátua de uma mulher negra com uma saia azul e vários detalhes que lembravam o mar. Camila me analisou por alguns instantes e sorriu. – Deixou sua mãe Oxum por último que eu sei, mas quem é esse do lado dela?

- Do lado de mamãe, está meu papai de cabeça, Xangô. Eles foram casados, Oxum era uma das três esposas de Xangô, a mais amada. Ele nasce do poder, morre em nome do poder. Rei absoluto, forte, imbatível. O prazer de Xangô é o poder. Xangô manda nos poderosos, manda em seu reino e nos reinos vizinhos. Xangô é rei entre todos os reis. Seus domínios são o poder estatal, justiça, questões jurídicas. A saudação é Kaô Kabiesilé! Quanto a minha mamãe, já te falei bastante sobre ela, acho que não preciso entrar em detalhes, mas posso dizer que generosa e digna, Oxum é a rainha de todos os rios e cachoeiras. Vaidosa, é a mais importante entre as mulheres da cidade, a Ialodê. É a dona da fecundidade das mulheres, a dona do grande poder feminino. Os domínios dela são amor, riqueza, fecundidade, gestação e maternidade. Sua saudação, como você bem já ouviu é Ora Yê Yê Ô!

- Com licença, moça. – a vendedora nos chamou atenção e Camila virou pra ela com um sorriso enorme. – Suas coisas já estão embaladas e prontas, só levar a nota no caixa e pagar.

- Muito obrigada, dona Nenê, agradeço muito a sua paciência e atenção. Vamos, amor.

Depois que ela pagou a conta, o difícil foi pensar em como levaríamos todas aquelas coisas até o carro. Jorge e dona Nenê chamaram dois dos seus funcionários para nos ajudar e demorou um pouco até que Camila encontrasse espaço disponível dentro daquele carro pequeno pra tanta sacola. Quando finalmente fechamos a mala e ela dirigiu para fora do estacionamento, suspirei e lhe dei um beijo na bochecha.

- Obrigada por me contar um pouco sobre os orixás, fiquei muito feliz em saber sobre tantas coisas, mas não pense que esqueci da história de Obá, eu vou querer saber.

- Meu Deus, em um outro momento eu prometo que conto, okay? – ela sorriu e seus olhos estavam iluminados, apesar de eu achar que poderia ser efeito do sol que batia diretamente neles. – Esse trânsito de Madureira vai nos atrasar bastante, mas não me importo nem um pouco, contanto que esteja com você.

- Até mesmo em situações como essa você consegue ser romântica.

- É uma das minhas inúmeras qualidades, meu amor, mas agora voltando ao assunto... fiquei genuinamente feliz por você querer ouvir as histórias. Saber que uma pessoa ateia se interessou pelas lendas e crenças do candomblé é gratificante pra mim. Obrigada, amor. Outra coisa, eu vou precisar ficar três dias recolhida, okay? Preparando todas as coisas pra coroação, você vai depois com meu pai, Sofia, Normani, Taytay e tia Drea. Tudo bem?

- Eu e seu pai no mesmo carro?!

- Não precisa necessariamente ser no carro dele, Normani e Taylor podem ir com você pra te guiar.

- Acho que prefiro desse jeito.

- Que seja feita a vossa vontade.

Ela me deu um beijo na bochecha e acelerou quando o sinal verde nos deu permissão. A voz de Berlinda Carlisle cantando Heaven Is A Place On Earth invadiu o carro e as nossas risadas se fundiram à medida que ganhávamos a estrada em direção à Zona Sul. Quando o Sol bateu no rosto de Camila, que já tinha colocado seus óculos escuros, vi aquele brilho especial e lembrei de Omulú, que usava a palha para que as pessoas não vissem o quanto ele brilhava. Diferente dele, Camila parecia não conseguir esconder, mesmo que tentasse.


Três dias se passaram e hoje era o grande dia, o momento que eu e os familiares de Camila esperávamos. Estava me arrumando de uma maneira simples para ir à coroação, era o mesmo frio na barriga como se eu estivesse indo até a formatura dela. Normani já tinha mandado pelo menos cinco mensagens, onde em três delas ela me ameaçava de morte caso eu a deixasse esperando por muito tempo. Acabou que Taylor e ela me acompanhariam mesmo e Alejandro levaria Andrea e Sofia. O dia estava com o céu azul limpo e o Sol não parecia queimar tanto, o tempo perfeito para a minha pequena ser coroada.

Depois de deixar Joker devidamente alimentado, saí de casa em direção à Ipanema para buscar as duas bonitas impacientes e coloquei uma playlist de músicas nacionais que Camila montou no Spotify. A voz de Mariene de Castro preencheu o carro e comecei a batucar no ritmo de A Deusa dos Orixás. Eu realmente amava a voz dessa mulher, que afinação maravilhosa. Quando menos esperei, já estava na porta do prédio, mandando mensagem pra Taylor e Normani descerem. A música já tinha acabado e mudado para É D'Oxum, não consegui não pensar em Camila e no quanto ela provavelmente estaria ansiosa e linda nesse exato momento.

- Eita porra, é só começar a namorar a bunduda que já gosta de um atabaque? Gostei de ver, chefia! – a voz de Normani me fez pular de susto e as risadas dela e de Taylor me fizeram revirar o olho. – Como estão as coisas?

- Você me assustou, garota. As coisas estão ótimas e com vocês?

- Preta, por que você vai na frente? Cai fora, vou do lado da minha irmã!

- Porra nenhuma que você vai, branquela, eu cheguei primeiro e vou de patroa. Até porque, sou o GPS da Lauren até São João de Meriti.

- Well, she's right. – Taylor me encarou com um olhar assassino e eu dei de ombros. – Você sabe chegar no terreiro por acaso?

- Não, mas...

- Então assunto resolvido, Normani vai na frente comigo.

- Vai, toma, sua gostosa.

Taylor mandou o dedo do meio e Mani gargalhou, colocando os óculos escuros. Ela estava com uma blusa branca e saia longa branca. Achei Normani parecida com a estátua dos orixás que vi no Mercadão de Madureira, mas preferi deixar quieto, não sabia o quanto ela tinha ideia disso. Sorri para ela, que ajeitava um lenço branco na cabeça e se olhava no espelho. Taylor, que parecia absorta no celular, bateu no banco e me mandou dirigir.

- Tá nervosa, Tay?

- Quero chegar cedo pra pegar um bom lugar, não adianta nada chegar no terreiro e não conseguir ver a Camila. Estou louca pra ver a dança de Oxum, é a coisa mais linda.

- Não faço a menor ideia do que você está falando, mas tudo bem. Vamos logo antes que você destrua meu banco com esse pezinho de dinossauro.

- Adoro essa sensibilidade entre irmãs, ainda bem que sou filha única. Se eu tivesse irmã ou irmão, já tinha matado. – Normani agora estava passeando pela playlist e selecionou o samba-enredo da Mangueira. – QUEM ME CHAMOU? MANGUEIRA! CHEGOU A HORA NÃO DÁ MAIS PRA SEGURAR! QUEM ME CHAMOU PRA SAMBAR? NÃO MEXE COMIGO EU SOU A MENINA DE OYÁ!

- Que isso, Mani?!

- Garota, já fico toda arrepiada querendo sambar, eu sou salgueirense de coração, mas esse samba da Mangueira me conquistou de todas as formas! Olha que maravilha! Por isso ganhou esse ano.

Ela fingiu que estava sambando sentada e eu comecei a rir, me esforçando ao máximo pra não causar um acidente na estrada. Vi o carro de Alejandro vindo logo atrás de mim e fiquei um pouco nervosa, não queria que ele me visse sendo imprudente ou perderia pontos. Normani agora cantava com a janela aberta pra que todos escutassem. Me encolhi um pouco no banco com vergonha e imaginei o que Camila estaria fazendo naquele exato segundo em que a melhor amiga dela gritava para toda Zona Sul que ela era a menina de Oyá.

- Ei, Laur, te contei o que aconteceu com o Beto? – Taylor parecia envergonhada e, aproveitando que Normani estava empolgada como uma cantora de trio elétrico, se aproximou de mim. – Papai conseguiu mexer uns pauzinhos e ele está preso. Seis meses de detenção, mas aposto que quando sair vai vir atrás de mim. Preciso confessar que estou com medo dele ou algum daqueles amigos tentarem alguma coisa.

- Eu sei que esse menino não vai tentar mais nada depois de ver quem o nosso pai é, fica tranquila, Taytay, a coisa certa foi feita. Você não podia ficar à mercê daquele louco.

- Ainda bem que você está aqui, irmã, acho que eu teria cedido se ele tivesse insistido um pouco mais naquela pressão psicológica e...

- É QUE EU SOU MALANDRO BATUQUEIRO, CRIA LÁ DO MORRO DO SALGUEIRO! SE NÃO ACREDITA, VEM NO MEU SAMBA PRA VER! O COURO VAI COMEEER!

Tomamos um susto com Normani berrando a letra do Salgueiro que tinha acabado de começar e não seguramos a risada. Taylor me deu um beijo na bochecha e prometeu que conversaríamos depois de voltar do terreiro. Quando Mani quase perdeu a cabeça cantando pra fora do carro e um ônibus passou correndo, ela finalmente sossegou e fechou a janela. Seu cabelo estava todo bagunçado e Taylor a ajudou a arrumar entre risadas e tapas. A todo momento eu pensava em Camila e minha ansiedade começou a chegar no pico quando faltava pouco mais de duas horas pra começar e estávamos longe.

- Fica calma, Laur, já estamos perto.

- Mas o GPS disse...

- Vai confiar em mim ou nesse aparelho vagabundo que joga as pessoas dentro das favelas pra tomar tiro? Confia na nêga aqui, minha filha.

E ela realmente estava certa. Depois de uma hora, estacionamos dentro do sítio onde ficava o terreiro, mas desci do carro com as pernas um pouco bambas. Todas as pessoas que chegavam estavam de branco e quase morri de fofura quando vi Sofia vestida como uma baianinha. Ela correu na minha direção e eu a abracei, lhe dando um beijo estalado na bochecha.

- Você está tão linda, pequena.

- Um dia vou ficar como a Mila, aí vamos dar orgulho em dobro pros nossos pais. – ela sorriu com o narizinho franzido e eu lembrei de Camila. – Vamos, Laur, todo mundo está esperando vocês pra entrar.

O lugar era um sítio gigantesco, eu mal conseguia ver onde terminava. Uma construção bem no meio estava enfeitada e percebi que era o barracão. À medida que nos aproximávamos, seguindo uma fileira de pessoas que se encaminhavam para o mesmo lugar, senti uma energia preencher meu corpo. Era algo diferente, senti minha pele esquentar, uma sensação muito boa como um abraço apertado. Sofia segurou minha mão com mais força e eu sorri pra ela. Alejandro estava parado na porta do lugar, descalço e com contas no pescoço. Ele balançou a cabeça e Sofia me pediu para abaixar.

- O que aconteceu, Sofi? Eu não posso entrar?

- Você precisa ficar descalça, Laur. Nós vamos saudar o Orixá da casa, que é mamãe Yemanjá. Vamos ficar de joelhos e abaixar a cabeça.

Acompanhei Sofia e fiquei de joelhos, fazendo o mesmo que ela. A ouvi saudar Yemanjá e repeti as palavras dela, me sentindo leve. Quando levantamos a cabeça, vi que Alejandro estava ao meu lado e sorria. Ele levantou e estendeu a mão pra mim, me ajudando a levantar. Sofia se agarrou no meu braço e eu lhe fiz um carinho na cabeça.

- Pode entrar, Lauren, fique do lado daquela senhora ali, certo?

- Vem, Laur, vem! Vai ser muito lindo!

Quando passei da porta, meu queixo foi no chão. O lugar estava tão bonito que meus olhos brilharam com tanto dourado. Algumas pessoas me olharam com curiosidade e outras sorriram como se já me conhecessem. De longe, vi Mãe Vitória em uma cadeira bonita, enfeitada com conchas, no meio do que eles chamavam de barracão. As roupas dela eram brancas, mas as contas verde-água brilhantes, o pano no ombro e o pano na cabeça azul claro lhe davam um ar majestoso.

Taylor e Normani se juntaram a mim e Sofia pediu licença, precisava ficar com o pai. Não demorou muito para que todas as pessoas se levantassem e as mais importantes, as filhas de santo, todas mulheres, estavam reunidas em uma roda, descalças e vestidas em suas magnificas roupas brancas. O espaço em que elas ficavam era separado de onde nós estávamos por uma grade linda de madeira.

- Boa tarde, amigos e filhos. – a voz de Mãe Vitória era calma e eu sorri sem nem perceber. – Estamos aqui hoje para celebrar algo muito bonito, uma passagem, uma benção. Quero que vocês cantem com axé, com força, com muita alegria pra essa minha filha especial, que larga tudo o que tiver que fazer e vem pra cá nos ajudar. Não mede esforço e não mede sacrifícios pra cuidar do nosso terreiro. Hoje é ela, amanhã serão vocês. Já tem alguns aqui que estão se preparando pra que chegue até onde essa menina está chegando hoje e pra mim é uma honra enorme dividir um pouco daquilo que eu sei com a minha filha, mas amanhã ela vai fazer isso na casa dela. Tudo que aprender aqui comigo, amanhã ela vai ensinar, vocês vão ensinar. Então, pra mim, hoje é uma grande alegria, uma grande satisfação consagrar a Camila nessa casa e vocês vão ver o que acontece.

Mãe Vitória parou de falar e os atabaques começaram. Os ogans, como Camila me explicou antes, fizeram a saudação pra Yemanjá e as filhas de Santo começaram a bater palma, cantando uma música para a orixá da casa. Mãe Vitória e a Ekedi entraram em uma sala e de lá, fazendo meu coração parar de bater, saiu Camila. Ela estava segurando um buquê de rosas amarelas e suas contas grossas estavam no pescoço. Percebi que ela chorava mais do que podia se segurar e fiquei com vontade de chorar junto. Mãe Vitória balançava uma espécie de chocalho e antes de sentar, Camila teve que se agachar cinco vezes para então, realmente sentar na cadeira. Ela estava com uma roupa toda branca, a única coisa que se destacava, eram as contas douradas no pescoço dela.

Mãe Vitória se afastou de Camila e a Ekedi veio atrás, balançando aquele chocalho. De repente, ela fechou os olhos e começou a dançar. Foi como hipnose, eu não conseguia desviar o olhar dela enquanto batia palmas. A dança era algo leve, como se ela estivesse flutuando. Eu abri um sorriso e Camila olhou pra mim, emocionada. De repente, seu sorriso se transformou em uma expressão de surpresa. Logo pensei que alguma coisa tinha dado errado, mas quando desviei o olhar de Camila para ver o que estava acontecendo, percebi que Mãe Vitória, virada em Yemanjá, se aproximava de mim. Seus olhos ainda estavam fechados, mas ela estava vindo como se alguma coisa a guiasse.

- Lauren, não se mexe.

Normani me alertou, falando baixinho no meu ouvido, mas senti minhas pernas começarem a amolecer. O som do atabaque, o movimento lento que Mãe Vitória fazia na minha direção, tudo virou um motivo pra que eu não desgrudasse meus pés do chão. Eu não sairia dali nem se a sala estivesse pegando fogo. Algumas pessoas exclamaram, outras colocaram a mão na boca e vi Camila abrir o maior sorriso do mundo. Quando encarei o rosto de Mãe Vitória, ainda sem me olhar, senti uma onda de calor me invadir. Aquela era Yemanjá.

Os braços dela se abriram e ela se aproximou de mim. Foi automático, eu a abracei de volta e quando nossos ombros se tocaram, desabei. Estava chorando tanto que fiquei preocupada, mas sabia que aquele era o melhor abraço que eu já tinha recebido. Era como o mar levando embora todas as minhas angústias, todos os meus medos. Ela se afastou e me abraçou de novo, trocando o lado direito pelo esquerdo. Meu coração batia tão forte que achei que fosse desmaiar. Meu corpo estava leve. Quando ela se afastou de mim, precisei me sentar. Meus olhos colocavam pra fora todas as lágrimas, como se estivesse me limpando por dentro. Normani e Taylor fizeram um carinho nas minhas costas e ao olhar para Camila, reparei que ela estava aos prantos também.

- Você está bem, Laur?

- Como eu nunca estive em toda minha vida.

Olhei para frente e a música mudou, estava na hora das rezas. De pouco em pouco, os filhos da casa foram se deitar aos pés de Camila para saudá-la. Primeiro encostavam a cabeça no chão e, em seguida, seguravam suas mãos para beijar. Camila estava chorando tanto que ali eu percebi que aquilo era muito mais do que uma religião pra ela. Depois de algumas preparações, Mãe Vitória ajudou Camila a levantar e Normani sussurrou no meu ouvido.

- Acho que é agora que a Mila vai virar na Oxum, Laur. Eu amo esses momentos. Ela vai praquele quarto ali e voltar vestida como Oxum.

Depois de alguns minutos, a música agora tinha mudado e as pessoas saudaram Oxum em um outro idioma. Camila estava vestindo as roupas de sua mãe; uma saia linda amarela e bem cheia, um grande laço nas costas, no peito, parecia um corpete, mas era algo muito mais esplêndido que isso. Segurava um espelho na mão, que Normani me explicou que se chamava abebé, havia braceletes em seus braços cobertos de pedras douradas que me lembravam ouro. Uma máscara, que na frente caía uma cascata de contas douradas e no topo, parecendo uma coroa linda, com enfeites na cor ambar. Meus olhos se encheram com um brilho especial, era tudo muito bonito. Um ogan começou a batucar de novo e todos os filhos de Santo começaram a cantar junto em yorubá, assim como alguns dos convidados.

Foi como se aquelas palavras bastassem; Camila começou a se movimentar e naquele momento eu percebi que não era ela. Yemanjá era linda dançando, mas Oxum era tão maravilhosa quanto. Seus movimentos abrindo e fechando os braços, balançando o corpo, era de uma beleza que eu não poderia colocar em palavras nem se tentasse. Abri um sorriso orgulhoso dela e quando percebi, estava pensando de novo no quanto aquele abraço me fez bem. Enquanto as filhas de santo dançavam na roda dando a volta como uma corrida e batendo palmas, percebi que a Oxum de Camila tinha parado de dançar e estava caminhando.

Como se um imã estivesse grudado em Sofia, ela andou até a pequena. Independe de qualquer coisa, é importante saber que aquela não era Camila, era Oxum. Aquele abraço não tinha nada a ver com o laço de sangue que Camila e Sofia compartilhavam, mas sim a ligação espiritual que Oxum, provavelmente, tinha com Sofia. Um grito emocionado saiu da boca dela e Alejandro começou a chorar. Ele pegou as mãos de Oxum e beijou em sinal de respeito. Eu tentei imaginar o que Sofia estava pensando naquele momento, se tinha sentido a mesma coisa que eu, mas nem precisei perguntar pra saber. As lágrimas molhando a bochecha gordinha dela respondiam todas as perguntas. Mãe Vitória começou a andar perto de Oxum, cantando alto, com um sorriso de orelha a orelha. Sinuhe pode não estar presente para ver a coroação da filha, mas eu sabia que ela estava ali de todas as formas possíveis.

Oxum abraçou outras duas pessoas até que tudo fosse concluído, deixando um ambiente emocionado e animado entre as pessoas. Uma senhora, a última abraçada pela Orixá, parecia ter ganhado na loteria, não parava de saudar Oxum. Percebi que aquela sensação de felicidade que eu experimentei não era pouca coisa... era uma benção que poucos conseguiam. As festividades continuaram com outras rezas, oferendas e mais danças. Aquele foi um ambiente em que eu, certamente, voltaria. Não por toda religião em si, mas pela energia. Era uma coisa forte e bonita.

Quando a cerimônia de coroação terminou e todos nós fomos avisados sobre a festa, vi Camila sendo levada para dentro do quarto, provavelmente para que Oxum desvirasse. Bastaram alguns minutos para que ela voltasse vestida quase igual a Mãe Vitória, mas as cores eram diferentes. Seu pano da cabeça e da cintura eram dourados. Camila parecia outra pessoa e quando se aproximou de nós, sorriu como uma criança. Alejandro foi o primeiro a se ajoelhar e saudá-la, beijando as mãos e depois, lhe dando um abraço. Depois que todos fizeram, ela me encarou com um pouco de receio, como se não soubesse o que eu faria. Aquele era o lugar dela, um local sagrado, onde ela era uma sacerdotisa, uma autoridade, e deveria ser tratada como tal. Ali Camila não era minha namorada, ali Camila era Iya Kekere, merecedora de todo o respeito diante de sua sabedoria.

Não pensei duas vezes antes de me ajoelhar nos pés dela e beijar suas mãos. Não consegui segurar o choro e quando ergui a cabeça, vi que Camila também estava chorando, e depositou sua mão no topo da minha cabeça. Me ergui e lhe dei um abraço desajeitado e sussurrei em seu ouvido para que apenas ela escutasse.

- Todo o meu respeito e admiração eu dou a você.


Após o fim de todas as festividades, estávamos voltando pro Rio e Camila me abraçou com força no carro, ignorando Normani e Taylor que dormiam no banco de trás. Eu sabia o quanto tudo aquilo significava pra ela e limpei algumas lágrimas que ainda saltavam aos olhos dela. Lhe dei um beijo na testa e Camila suspirou.

- Yemanjá te deu um abraço! Meu Deus, tem noção do quanto isso é especial? Algumas pessoas se desesperam pra ter essa chance e ela foi até você, escolheu os seus braços pra despejar toda graça. Isso é maravilhoso, amor. Como se sentiu?

- Como se uma válvula tivesse sido aberta no meu coração e tudo de ruim foi levado. É um abraço quente e reconfortante, como de vó, sabe? A última vez que senti algo assim foi quando abracei meus avós. Eu... estou muito feliz por ter sido escolhida. Sofia te contou que Oxum deu um abraço nela, né?

- Sim, ela me falou e acho que está chorando até agora. Nem acredito nisso, quando eu era mais nova, não recebi nenhum. Mas me conta, gostou da dança dela? – Camila segurou minha mão com força e eu suspirei. – Sei que a dança de Yemanjá é muito bonita de ver, mas também quero saber de Oxum.

- Sua Oxum dançou com uma leveza que eu nunca vi, foi muito lindo. Gostaria de poder ver outras vezes, se puder. Inclusive de Yemanjá.

- Basta ir comigo em algum fim de semana. A dança de todos os Orixás é muito bonita, eles dançam cada um com sua peculiaridade. Acho a de Omulú uma graça! – ela bocejou e encostou a cabeça no meu ombro. – Fiquei muito feliz que você tenha ido, que gostou do que viu, que amou o abraço de Yemanjá, significa muito pra mim.

- Posso te dizer uma coisa?

- Hmm... – ela já estava um pouco sonolenta e eu sabia que logo dormiria. – Pode falar, estou ouvindo, amor.

- Sua mãe teria ficado muito orgulhosa de você, tenho certeza que de onde ela estava, bateu palmas e comemorou. Você foi muito bem, amor, também tenho muito orgulho de ter visto tudo. Seu pai e Sofia também não conseguiram conter as lágrimas, acho que você teve a chance de ver antes que ele secasse na camisa. Agora sei que você tem uma missão muito importante e que foi pra isso que Oxum e Mãe Vitória te escolheram.

Eu sabia que ela estava chorando de novo, mas não podia virar para olhá-la, a estrada não estava muito iluminada e eu tinha que cuidar de mais três pessoas dentro do carro além de mim. Camila me deu um beijo estalado na bochecha e deitou a cabeça na minha coxa. Nessa hora eu agradeci pelos carros automáticos. Comecei a fazer um carinho na cabeça dela e Camila sorriu.

- Eu também tinha uma missão além dessa...

- Mesmo? Qual?

- Salvar você de tudo que estava te impedindo de ver a beleza da vida.

Eu senti que ela adormeceu logo depois e tive vontade de jogar o carro no acostamento para lhe dar um beijo, mas pensei melhor e concluí que quase nos matar não era a melhor opção. Teríamos muito tempo para agradecimentos quando chegássemos em casa, por enquanto, eu continuaria dirigindo com a lua iluminando a estrada e com meu coração batendo com velocidade, agradecendo por ter sido escolhida por ela.

- É, pequena... você me salvou.

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