Orleans

By MarianaCamara

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Katerina Dalton nasceu com algumas maldições: os genes azarados de sua família, um casamento arranjado e aniv... More

Orleans
Capítulo 1 - This Never Happened to Me Before
Capítulo 2 - Hero
Capítulo 3 - WildHeart
Capítulo 4 - Beside You
Capítulo 5 - Englishman in New York
Capítulo 6 - Until
Capítulo 7 - Let her go, Let me go
Capítulo 8 - One Thing
Capítulo 9 - Romeo, Save me
Capítulo 10 - I Really, really, really... Like you.
Capítulo 11 - Everything
Capítulo 12 - Enchanted
Capítulo 13 - Pieces of Me
Capítulo 14 - All I want for Christmas is you
Capítulo 15 - Pictures
Capítulo 16 - If I Fell
Capítulo 17 - Wherever you will go
Capítulo 18 - One way or another
Capítulo Extra: You are my Sunshine
Capítulo 20 - I get to love you
Capítulo 21 - Yours
A autora pergunta!

Capítulo 19 - I won't give up

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By MarianaCamara


Dentre todos os possíveis futuros imagináveis para o meu pretenso final de ano tranquilo, aproveitando meus restantes dias de férias em Nova Iorque, posso afirmar que não havia pensado que estaria mais uma vez em uma fila de embarque no aeroporto JFK, carregando minha mala com rodinhas, tentando disfarçar meu claro tremor interno de ansiedade e pavor por estar a poucas horas de voltar para casa.

Refazia mentalmente minha lista de itens que tinha conseguido enfiar dentro da bolsa, o que incluía pasta de dente, uma troca de meias, analgésicos, "Obra completa e Dramas para Palco – Peças de William Shakespeare" e uma boa quantidade de barras de chocolate e chiclete que Samantha e Jenny fizeram questão de que eu levasse comigo. "Vai te ajudar a passar algum tempo distraída com alguma coisa melhor do que o resto da sua vida", Sam disse. Muito sábia e animadora.

Estava entregando a passagem nas mãos do atendente do guichê quando me lembrei da primeira vez que fiz uma viagem de avião. Tinha por volta de quatorze anos e recordava exatamente como estava vestida com uma pesada camada de blusas para fugir do inverno de Nova Orleans, partindo com destino a Houston, onde minha avó materna costumava residir antes de se casar pela quarta vez. Claramente a vida amorosa do meu lado materno da família era bem mais agitada do que dos Dalton.

Naquele ano o inverno estava particularmente mais intenso naquele lado do país, o que queria dizer que estava um pouco mais parecido com as outras regiões, já que no sul o inverno nunca seria tão rígido. Mas para todas as pessoas da minha cidade significava que aquele seria um final de ano maravilhoso, provavelmente com a sorte de termos temperaturas baixas, casas bem decoradas e uma ótima desculpa para colocar um pouco mais de pimenta no jambalaya.

Obviamente, minha mãe discordava da felicidade invernal de todo o resto dos pobres mortais e nos levou diretamente para o Texas, para fugir do clima natalino e com o bônus de fugir também do meu pai e todas suas tentativas fracassadas de reunir as filhas para a festa de Natal. Ela nunca permitiu que ele tivesse alguma sorte em estar com a gente em mais do que poucos finais de ano, mesmo quando podíamos simplesmente escolher estar com ele.

Não me lembro exatamente como foi aquele natal na casa da minha avó porque provavelmente foi mais uma daquelas reuniões da família materna em que todos ficavam elogiando e rodeando Adria enquanto eu me divertia com alguma coisa menos entusiástica, como livros. E realmente não me arrependo de ter perdido estas memórias no limbo cerebral das "coisas ridículas pelas quais já passei na vida".

Encontrei meu assento dentro do avião e senti um breve alívio em notar minhas pernas um tanto quanto incômodas no banco do setor econômico. Ainda não havia descoberto o motivo de ter conseguido voar na primeira classe na viagem para Londres, mas ter meus joelhos apertados pelas costas do senhor no assento da frente servia de lembrança de que minha vida tinha voltado para aquele caminho sinuoso e obscuro de sempre.

Sim, eu estava em uma onda de pessimismo. Não, eu não estava inflada com a coragem dos meus atos futuros ou me alimentando de esperanças. Sempre fui muito realista com algumas coisas e encontrar minha avó paterna sempre foi motivo de pensar nas coisas ruins do mundo, quase um tipo de antídoto para o pozinho mágico das fadas que supostamente deveriam fazer você pensar em coisas boas para voar. Se uma fada usasse pó mágico na minha avó, com certeza haveria um lapso no rumo do destino universal, que abriria um portal espaço tempo e sugaria toda a realidade que conhecemos para um obscuro mundo paralelo sem rumo. Ou a fada morreria, o que é bem mais provável.

Foi pensando em fendas temporais e acontecimentos mundanos que me recordei do jantar da noite anterior, logo que cheguei do hospital e minha visita a Sra. Fighbright.

Assisti a mãe de Samantha me encarar por alguns segundos antes de conseguir levar um pedaço de almôndega com molho até a boca. Ela parecia bem incrédula quanto a minha tendência de atrair coisas humanamente impossíveis de ocorrer, ainda mais depois de toda a minha descrição sobre o que minha antiga vizinha havia me revelado.

— Então você vai para casa na passagem de ano. Faz bem, Katerina...— ela resmungou alguma coisa depois daquela afirmação, mas só conseguia escutar a mastigação daquele trecho de carne moída e tomates.

— Mesmo depois de tudo, você ainda vai ver essas pessoas, Kate? — Nichole estava na mesa e sua clara e comum aversão pelo meu passado era bem nítido naqueles olhos emoldurados por grossas camadas de rímel. Ela e Samantha bem poderiam ser gêmeas se não fosse pelo detalhe de alguns anos de diferença e os cabelos oxigenados que a mais velha gostava de usar.

— É a família dela, Nic. Tenha um pouco de respeito. — o Sr. Russell resmungou, educadamente cobrindo a boca com uma das mãos enquanto falava, já que ninguém tinha a obrigação de ver a comida mastigada entre seus dentes.

— Família? Isso mal pode ser considerado um parentesco. Parece que o passatempo dessas pessoas é causar mal para ela e vocês ainda insistem que viajar para lá é uma boa ideia? Vocês podem dizer o que bem quiserem, mas sabem que eu estou certa. Ninguém deveria ser exposto a esse tipo de maluquice.

Nichole apontou o indicador para cada membro da própria família que se apertava em torno da mesa quadrada de tampo azul, observando em silêncio a sinuosa curva das longas unhas postiças que ela estava usando naquela noite.

Os Russell ficaram em silêncio depois daquilo e eu interpretei como um sinal dos deuses do universo me indicando que se até a família de Sam estava me dando algum suporte (mesmo que a contragosto de alguns membros), eu deveria seguir adiante. E me lembrar desse simples acontecimento ajudava as horas de voo a passarem mais depressa com uma pontinha de esperança e alguns cochilos, escutando um canal de músicas randômicas nos fones de ouvido.

Apenas quando estava desembarcando no Aeroporto Internacional Louis Armstrong é que apanhei o celular na bolsa e liguei para Adria. Ainda estava sonolenta depois do voo, um pouco enjoada por conta dos chocolates que comi e muito incrédula por estar pisando em solo louisiano mais uma vez. Já fazia um bom tempo que não colocava os olhos naquele aeroporto tão movimentado, sentindo o cheiro que o sistema de climatização deixava no ar e escutando os breves acordes de uma banda de jazz vindo de algum lugar entre os corredores.

Depois de uma segunda tentativa com o celular, finalmente escutei alguma vida do outro lado da linha.

— Adivinhe onde eu estou? — tentei sorrir enquanto apanhava minha mala da esteira de bagagens, conferindo se estava tudo bem antes de me afastar do salão entre a grande quantidade de pessoas que estava por ali. Comecei a torcer para que minha irmã tivesse reconhecido minha voz ou que não estivesse bêbada, como parecia de praxe todas as vezes que voltava para casa.

Kate? — Ah, o alívio. — Não me diga que você voltou pra Inglaterra?

— Não me faltou vontade, mas nesse momento eu estou bem longe da terra da Rainha, Adria. Você ainda está no hotelzinho de quinta no centro da cidade?

Estou sim, mas porque você... Você está em Nola, Kate? — Adria gritou, como de costume, dando aqueles guinchinhos animados que costumava soltar em sequência. Ela não sabia se ria ou se chorava por saber que eu estava prestes a pegar um táxi e surgir no French Quarter com minha velha mala e poucos trocados a tiracolo, ou se começava a lamentar minha perda de tempo e dinheiro apenas para tentar enfrentar a matriarca da família Dalton.

Vamos ficar com a primeira opção.

Quer que eu te pegue no aeroporto? Você já comeu alguma coisa? Porque você não me avisou antes de pegar o voo, sua maluquinha?

Enquanto Adria estivesse em sua costumeira mania de me encher de perguntas sem tempo para resposta, as coisas estariam bem. Estava frio, como senti assim que atravessei as portas de vidro para a plataforma do lado de fora; mas não frio o suficiente para animar a "Big Easy" com qualquer promessa de uma nevasca.

Um taxista sorridente se aproximou, apanhando minha mala e abrindo a porta para o banco de trás do carro sem se importar que a minha comunicação naquele instante fosse feita apenas de um monte de murmúrios e acenos, perdida entre as tagarelices de Adria e a pergunta do custo da corrida até o velho centro da cidade.

O homem sorriu pelo retrovisor e apontou uma tabela no vidro divisor do carro e pedi um momento para minha irmã antes de me assegurar de que tinha trinta e quatro dólares na carteira para pelo menos chegar perto do meu destino final. Não queria ser chutada no meio do caminho, mas Adria precisaria contribuir para o pagamento da minha chegada. Eu aceitaria como presente atrasado de natal.

Rever a cidade pela janela do carro misturava sentimentos dentro do meu estômago. O que me lembrava de que precisava urgentemente de um sal de frutas e de uma terapeuta, não necessariamente nesta mesma ordem.

Nova Orleans, ou carinhosamente Nola, não parecia tão mudada depois de pouco mais de um ano de ausência. Seus ares úmidos, o céu azul acinzentado do inverno, as cores que brotavam aqui e acolá, sempre acompanhadas pelo som das canções que vinham do rádio do carro. Tinha certeza de que se tivesse coragem suficiente em abrir a janela com todo aquele vento gelado, receberia o aroma inconfundível de camarão e caranguejo, borbulhantes em um belo caldo de roux e legumes, ou algum acorde perdido de um bom jazz e blues pelas ruas do trajeto que me levava até o coração pulsante da cidade.

Como era de se esperar, as calçadas estavam repletas de turistas. O final de ano sempre prometia uma parcela bem vinda da alegria do Mardi Gras e uma dose bem mais pesada de bebidas para ajudar a afogar todas as mágoas e tristezas do ano que estava terminando e nem mesmo o frio era capaz de afastar as pessoas que vinham alegremente em busca do jeitinho de viver desses lados do sul. Eu mesma não estava pensando em passar meus últimos dias andando pelos bares da Bourbon Street, porém as coisas poderiam mudar.

Adria estava acampada em um hotel quatro estrelas (que insistia em chamar de hotelzinho de quinta. Ela definitivamente não entendia o sentido de bom sarcasmo) perto o bastante do movimento das ruas pecaminosas e longe o bastante para fazê-la sentir preguiça de sair por aí gastando as solas de seus preciosos sapatos. Tinha convenientemente o bonde da Avenida St. Charles a apenas alguns metros e uma loja da Tiffany ainda mais perto. Não sei qual dos dois detalhes eram mais vitais para ela.

Assim que o taxi estacionou diante do hotel, Adria se esticou toda pela fresta da porta e me alcançou como um polvo, me puxando e apertando. Era como se fizesse mais de um século que não nos víamos.

— Princesa! Que felicidade te ver! Você devia ter me avisado que estava chegando, eu teria ido te buscar no aeroporto. Feliz Natal atrasado!

Com as malas em mãos e o taxista pago, entramos no agradável lobby do hotel Napoleon e Adria explicou alegremente que já havia mudado para outro quarto, onde poderíamos ficar juntas durante os próximos dias. Não que eu tivesse planos de permanecer em Nova Orleans por mais do que a passagem de ano, mas não ia estragar a felicidade da minha irmã com detalhes bobos.

Após nos acomodarmos no largo e confortável cômodo, pude desfrutar de um momento de silêncio para digerir que estava realmente de volta a minha cidade natal. Da janela a bela vista permitia ver o rio Mississipi adiante e a movimentação das ruas, a poética e deliciosa cidade esperando para ser sentida mais uma vez.

— Quase me esqueci de como as coisas são por aqui. — suspirei, enquanto Adria estava ocupada em tirar minhas roupas das malas e dobrar tudo meticulosamente dentro do closet.

— A boa e velha Nola. Ás vezes tenho saudades daqui, mas não trocaria minha vida pela calmaria do sul. Talvez eu volte para cá quando me aposentar. Seria maravilhoso comprar uma mansão histórica e viver com toda a tranquilidade os meus últimos anos de vida.

Ela torceu o nariz para meu pijama de dinossauros e suspirou profundamente, com certeza controlando a vontade insana de me dar um sermão sobre bom gosto fashion. Por fim fechou a mala já vazia e se sentou ao meu lado diante da janela, passando os dedos pelos meus cabelos, como sempre fazia quando éramos crianças. Normalmente as sessões acabavam com minha cabeça repleta de tranças tortas saindo de todos os cantos.

— Como papai está? — não enrolei em questionar.

— Não nos falamos desde a nossa discussão. Você está pensando em ir falar com ele primeiro?

— É o melhor. Quero que saiba que vou até a casa da boa matriarca Dalton. — ri.

— Boa? Quando a velha Dalton for uma pessoa boa estaremos caminhando para o apocalipse! — Adria gargalhou divertida, finalizando uma larga trança que soltou nas minhas costas. — Façamos assim: primeiro você precisa tomar um bom café da manhã. Depois vamos até o senhor Kennedy fazer uma mini reunião de família.

— Parece perfeito — meu estômago roncou. Pelo visto ele estava prestando atenção na conversa. — Podemos comer beignets?

— Isso sim parece perfeito, princesa!

Eu sabia que aquela animação de Adria era um esforço hercúleo de não me deixar abater pelos últimos acontecimentos ao meu redor, afinal eu sempre soube que ela não era uma grande apreciadora das famosas tostadas sulinas. Não quis comentar nenhum detalhe sobre Max ou a Sra. Fighbright durante o tempo curto que teríamos de calmaria, afinal ela já estava fazendo o bastante e eu não queria que tivesse outro surto de revolta antes de chegarmos na casa do nosso pai. As "novidades" poderiam esperar.

Saímos do hotel e caminhamos sem pressa pelas ruas próximas até um dos tantos cafés e lanchonetes espalhados pelos blocos próximos da Bourbon Street. A grande maioria tinha suas típicas filas de turistas aos montes, todos salivando para comer um bom poboy de camarão e provar das deliciosas beignets cobertas de açúcar e acompanhadas de um bom café. Mas nós tínhamos nossos lugares secretos, cantinhos intocados pelo turismo e que ainda serviam a comida mais tradicional possível, sem todo aquele barulho ao redor ou quase duas horas de espera por um bolinho com leite.

O bom e velho Madame Laveau ficava a poucos passos da Avenida St. Charles e decididamente fazia os melhores beignets do mundo. Pedimos uma porção generosa, enchemos nossas xícaras de café com leite e me permiti fechar os olhos para escutar um pouco de um banjo, divinamente tocado por um homem que estava sentado do outro lado da rua, cercado por um pequeno grupo de jovens animados.

Assim que a música me acalmou o coração, lembrei de alguém que com certeza adoraria conhecer Nova Orleans pessoalmente. Um ruivinho espevitado que nos arrastaria para todas as quadras de jazz tradicional da cidade, aprendendo e ouvindo sem cessar.

Pedi para Adria me abraçar e tiramos uma foto segurando nossas xícaras de café, que depois prontamente enviei como uma mensagem para Lucas com a seguinte legenda: "com os cumprimentos de Nova Orleans". Sabia que logo teria alguma resposta animada a caminho. Estava sentindo falta dos emoticons alegres e de toda a energia de ruivinho.

Estava com saudades deles...

— Podemos pegar o bonde daqui dez minutos se nos apressarmos. — Adria resmungou com um pedaço de sanduiche na boca e gesticulou para o garçom trazer nossa pequena conta. Fiquei aliviada quando ela pagou tudo sem me deixar tempo para dizer nada, mesmo sendo completamente contra aquilo, agora tinha de ser realista de que minhas economias estavam baixas com todas as viagens.

Deixamos o Madame Laveau para trás e verifiquei meu celular algumas vezes enquanto caminhávamos, mais preocupada com alguma resposta das minha mensagens que em escutar Adria listar todas as boas lojas onde eu poderia refazer meu guarda-roupa com algo que me deixasse mais parecida com uma adulta respeitável.

— O violinista não respondeu ainda? — ela riu quando paramos no ponto de embarque do bonde, olhando de canto minha quarta (ou quinta) inspeção ao telefone.

— Nada. Estou preocupada, normalmente ele me responderia no mesmo instante... Espero que não tenha acontecido nada.

— Com ele ou com o irmão dele? — Adria estava com um risinho contido na boca, o que fazia seus lábios ficarem contorcidos como uma cobra. Trocamos um olhar e nos segundo seguinte caímos na risada juntas. — Sabia que ele tinha alguma coisa por você — ela continuou ainda rindo, me empurrando a bolsa dela enquanto separava moedas de um bolsinho em seu longo casaco de tricô.

— Não sabia nada. Vocês mal se conheceram, Adria — ainda estava rindo e sinalizei para o icônico bonde verde da Avenida St. Charles, que trinou uma sineta antes de se aproximar vagarosamente e um gentil rapaz dar espaço para saltarmos para os degraus, sentindo o breve solavanco de estar sobre os trilhos.

— No seu porão depois daquela noite de chuva do concerto. Quando você ferrou todo aquele maravilhoso Burberry rosa — suspirou de uma dor invisível pelo vestido, pagando o jovem com uma boa quantia de moedas antes de entramos e nos acomodarmos em um dos bancos de madeira. — Um homem não sorri daquela forma por um motivo qualquer, irmãzinha. Você precisa ter uma aula ou duas com a sua irmã mais velha sobre o sexo oposto.

— Eu estou muito bem assim, obrigada — ri, abraçando a bolsa vermelha e molenga de Adria e deixando um vestígio de sorriso. Pelo visto não tinha notado muitas coisas antes, que muita gente havia notado por mim. E eu me lembrava daquele sorriso do Carma, discreto e escondido por trás daquela xícara quebrada depois que corrigi a dicção de Bruce no portão do porão.

Foi seu primeiro sorriso. Não exatamente para mim, mas me recordava perfeitamente da reação que houve em sua expressão por causa dele e me dava um calor gostoso imaginar que poderia ter sido por minha causa de alguma forma.

— Vocês vão se ver novamente ou foi apenas um caso de inverno? — Adria me cutucou, afastando os pensamentos.

— Talvez... Talvez.

*******

Saltamos do bonde depois de algumas longas quadras da Avenida St. Charles e Adria teve tempo suficiente para deixar um cartão de visitas com o cobrador, que segundo ela era "um docinho". Nem perdi meu tempo perguntando sobre o italiano monossilábico Paolo porque como eu disse o prazo de validade daquele relacionamento já estava terminando. Talvez já fosse expirado.

Da calçada onde paramos, desviando de algumas mulheres e carrinhos de bebê, podíamos observar toda a vista dos casarões tradicionais daquela área da cidade. O Garden District e suas mansões construídas na época dos fazendeiros e comerciantes ricos, sempre atraiu os olhos. E a casa do meu pai estava ali.

Visto do outro lado da rua, o grande casarão do senhor Dalton me pareceu bem mais intimidador do que me lembrava. Até mesmo a arquitetura colonial francesa que comumente era tão acolhedora, atingia meus olhos e causava uma série de arrepios ruins pela minha coluna. A casa chique com empregados chiques que meu pai nunca ostentou, mas mantinha sempre com sua tão rotineira naturalidade, era quase como a parte de um jogo de videogame em que se precisa derrotar um primeiro vilão antes de se chegar ao final derradeiro da aventura. E estava começando a rezar para que eu tivesse alguns continues disponíveis nesse jogo ou logo teria um game over vergonhoso.

Adria me pegou pela mão como se repentinamente tivéssemos vinte anos menos e atravessamos a larga avenida recortada pelos trilhos do bonde, sempre prestando bem atenção no estilo Adria de ser, ou seja: não olhando para lado nenhum e apertando o passo, torcendo para chegarmos vivas do outro lado.

Havia um intenso frio na minha barriga quando finalmente paramos diante dos largos portões de metal da casa do Sr. Dalton, sombreados pelo centenário carvalho decorado com colares do Mardi Gras. Por um momento não parecia que estava diante da casa do meu próprio pai, mas de alguém completamente diferente, uma pessoa que conseguia me trazer sentimentos opostos e conflitantes.

Adria apertou o interfone e não demorou muito para um ruído anunciar que haviam atendido do lado de dentro. Ela se identificou e em seguida um baque destrancou a entrada, permitindo que ela empurrasse o portão que parecia um tanto enferrujado.

O jardim estava mal cuidado, contudo as azaleias e magnólias ainda estavam por ali, tímidas com o frio. A decoração de natal tomava um espaço perto das janelas da casa e possivelmente a falta de tempo acabou causando o desleixo com algumas luzinhas coloridas que estavam desgrudando do redor da porta de entrada que se abriu antes que conseguíssemos atravessar a pequena subida da garagem que nos levava até lá.

Kennedy surgiu dali com um sorriso tímido, algo muito típico dele, enquanto se apertava em um roupão fofo de um azul brilhante que chegava a incomodar. Dava para notar o quanto era difícil para ele não poder correr para nos abraçar como fazia alguns anos atrás, quando as coisas não eram tão doidas e complicadas. Seus óculos estavam mal acomodados na ponta do nariz e ele parecia cansado, abatido, mesmo quando deu seu sorriso mais largo a me ver.

— Se não é a minha Ratinha viajante! — ele enfiou as mãos nos bolsos do roupão assim que percebeu que não íamos nos abraçar. Sorri de volta e também coloquei as mãos nos bolsos do meu jeans.

— É bom te ver, pai.

— Eu que deveria te dizer isso. Veja só você, de volta a cidade depois de todo esse tempo na metrópole. Vocês deviam ter avisado que vinham, eu teria feito alguma coisa para almoçarmos juntos.

Nós fizemos uma careta em conjunto, afinal todos conheciam os dotes mundialmente famosos para a culinária que corriam nas veias dos Dalton, então já era bem fácil de imaginar que qualquer coisa que Kennedy decidisse cozinhar sairia crua, queimada ou com sabor duvidoso. Ninguém ia arriscar.

— Não precisa se preocupar com isso, pai.

— Você dispensou a cozinheira também? — Adria soava séria. Dava para notar no ar que eles haviam realmente discutido antes.

— Ora, Adria. A senhora Belleneuve merecia passar alguns dias com a própria família ao invés de ficar vigiando um velho como eu, não acha? Além do mais, sempre existem ótimos restaurantes para se provar e algumas caminhadas não vão matar ninguém. Genevieve ainda está por aqui, com certeza guardando algumas tranqueiras no sótão ou limpando os quartos lá em cima... Mas vamos deixar de conversa antes que congelemos aqui fora!

— Ele não vai poder pagar a cozinheira também. — Adria cochichou assim que nosso pai se afastou alguns passos — Dispensou o jardineiro e a faxineira essa semana.

Kennedy abriu caminho para as grandes portas de madeira que marcavam a entrada daquela casa e foi realmente com algum alívio que sentimos o ar quente do aquecedor ajudando a espantar aquele gelado das bochechas. Assim que fechou a porta nos livramos dos casacos e das luvas enquanto ele tagarelava quase sozinho, explicando sobre como estava a calefação da casa, contando sobre os pequenos enfeites de vidro que estavam presos na grande árvore de natal bem diante de nós e por fim enumerando uma pequena lista de afazeres domésticos que estavam se tornando seus hobbies prediletos.

A casa era exatamente como me lembrava dela, com seu assoalho de madeira dourada que se perdia de vista, as escadas com os corrimões pintados de branco, os degraus que faziam a passagem para os outros ambientes e que sempre causaram tombos imensos quando éramos crianças. Tudo ainda cheirava docemente, como uma mistura de canela e açúcar — ou simplesmente era o aroma da lembrança que aquela casa conseguia ecoar dentro de mim, dos bons dias que passei ali, mesmo que raros.

— Venham para cá meninas. Não se esqueçam de tirar os sapatos.

O velho ritual de deixar os sapatos na entrada era quase sagrado e contribuía para o bem estar daquele casarão magnífico, que durava erguido contra o tempo e as intempéries.

Adria bufava silenciosamente e trocávamos olhares. Eu sabia que ela não desejaria que eu me deixasse levar pela calmaria do meu pai, mas também não estava nos meus planos chegar na sala da casa dele com um golpe mortal. Tudo tinha seu tempo, até a encarnação do Karatê Kid, pequeno gafanhoto.

A grande sala e seus largos sofás, mesas de canto e luminárias, além do papel de parede centenário pareciam um bom cenário para um daqueles filmes históricos em que a mocinha jura após todas as reviravoltas, que nunca mais passará fome... Ou alguma coisa assim. Bastou todos se acomodarem ao redor da grande lareira para reinar um silêncio incômodo. Adria se conteve apanhando o próprio celular na bolsa e por um momento poderia jurar que organizar sua lista de contatos era a coisa mais interessante do universo.

— Bem... — Kennedy tossiu, acomodando-se como podia entre duas almofadas. — Como foi sua viagem para a Inglaterra, Kate? Adria comentou que você estava se divertindo.

— Foi tudo bem — comecei a morder a unha do mindinho, quase sem notar. — Uma mudança de ares.

— Um país maravilhoso. Uma pena que o clima não é dos melhores, mas você conseguiu aproveitar seus dias?

— Sim, apesar de todos os pesares.

— E claro que teria sido melhor se você tivesse uma casa para onde voltar depois do turismo, não é Kate? — Adria disparou, os olhos faiscando mesmo que seu foco fosse a tela do telefone.

— Bom, eu...

— Adria, por favor, não vamos começar novamente. — meu pai suspirou, tirando os óculos. Seu semblante ficou brevemente mais cinza.

— Tudo bem. — ela se levantou com um sorriso forçado, contrariada — Eu vou procurar alguma coisa para fazer na cozinha. Não quero atrapalhar o momento de vocês. Talvez algo que me ajude a engolir o gosto amargo da revolta. Café?

— Na segunda porta da despensa — ele suspirou, assistindo Adria sair da sala e sumir pelo arco para o corredor, o barulho dos sapatos anunciando por aonde ela ia.

— Ela sempre teve esse gênio forte, não é? — tentei melhorar o clima por um instante. Pelo visto falhei miseravelmente.

Kennedy se permitiu respirar profundamente depois da saída de Adria e massagear os cabelos claros que já tinham mais tons de grisalho do que o bonito loiro de sua juventude. Aparentava ter envelhecido bastante desde a última vez que nos vimos em Nova Iorque, o que me deixava silenciosamente pensativa sobre como as coisas estavam sendo para ele naquele momento.

— Eu sei que ela só quer proteger você, Ratinha. Adria te ama muito mais do que aparenta às vezes, mesmo com a distância.

— É eu sei disso.

Nos entreolhamos e todo o conteúdo de nossas conversas nos últimos anos veio a minha mente como um daqueles flashbacks baratos de seriado televisivo, com direito a trilha sonora triste. Por fim nossos olhos se separaram na direção da lareira, onde a lenha crepitava mais alto do que o ruído da casa toda.

— Me conta como você está, Kate. Como você realmente está.

— Acho que estou mais preocupada com o senhor...

— Ora, eu sou um Dalton, não sou? Os altos e baixos sempre existem, não vai ser o fim do mundo apenas ter algumas férias forçadas na vida.

— Nada nesse mundo deveria ser forçado, Kennedy — ri nervosamente e minha respiração entrecortou com o nó que se fez na minha garganta. — Sabe, eu não sei mais o que pensar, pai. As coisas têm sido bem mais complicadas do que pensei que pudessem ser e cada dia que passa fico esperando uma nova notícia ou uma nova desgraça com o meu nome tatuado na testa. Estou cansada. Muito cansada.

Tudo aquilo saiu de mim sem aviso. Era o desabafo final sobre como estava me sentindo, o suficiente para Kennedy ter uma visão geral do que a família Dalton estava causando a sua filha caçula. Mas ele não respondeu nada imediatamente, pelo contrário, o fogo parecia tão hipnotizante que por algum tempo imaginei que ele não fosse mais falar coisa alguma até que sua voz surgiu devagar, macia como costumava ser.

— Há dois anos atrás, eu me lembro muito bem de estar sentado no mesmo lugar que você está sentada agora, bebendo um copo de conhaque por conta de um resfriado maldito que o inverno daquele ano havia me causado; enquanto sua mãe entrava pela porta na companhia de dois estranhos muito bem apessoados. Você conhece sua mãe, sempre cercada de pessoas e amigos, sempre confraternizando e se dedicando a vida frívola social...

— Eu conheço bem, mas não queria falar sobre ela agora, pai — resmunguei, puxando uma almofada sobre as pernas. Lembrar a figura de Aida me causava asco.

— Oh, não. Isso não é sobre Aida, Kate. Mas sabe quem eram aquelas pessoas com ela naquele dia? Eram dois bons homens, interessados em conversar comigo sobre minha filha, sobre o casamento dela e como aquilo seria interessante para todos.

Apertei a almofada contra o peito e dediquei minha total atenção para as palavras do meu pai, mesmo que ele estivesse ainda encarando o fogo. Seus dedos apertavam suavemente o braço do sofá e podia jurar que a cena estava passando diante de seus olhos claros. Eu sabia com todo meu coração que meu pai nunca teria aceitado aquela tradição em nome do dinheiro. Sabia que sua índole nunca permitiria que houvesse ambição em aceitar meu casamento. Mesmo assim, queria escutar aquilo dele, cada pequena palavra para espantar toda aquela dúvida do meu coração.

— Recordo perfeitamente daqueles rostos, homens sorridentes, dispostos a aceitar uma tradição familiar nos tempos modernos. — ele continuou, coçando o queixo conforme se lembrava — Sua mãe se sentou aqui e apresentou os dois, o Sr. Campbell e o Sr. Davison, frisando que eram famílias que sua avó havia aprovado e que possuíam bons pretendentes para você, já que sua irmã já tinha passado da idade aceitável para fazer parte daquele espetáculo.

Na época eu não havia imaginado que houvesse a necessidade desse casamento. Como Adria já estava divorciada pensei que a família aceitaria o fato e a tradição morreria como estava. Mas sua mãe e sua avó tinham outras ideias e aqueles homens estavam apenas aguardando uma afirmativa para começarem seus próprios preparativos com os jovens noivos.

— Davison? Eu conheci Martha Davison... Ela trabalhava comigo no colégio Petersburg. — franzi a testa, tentando me lembrar se conhecia a família da professora do primário.

— Os Davison são moradores da cidade, uma família muito bem vista. Eram os preferidos pela sua avó para o casamento. Acho que alguns deles também tinham se casado por casamentos arranjados ou eram parentes distantes, não me lembro ao certo.

— Então porque vocês escolheram os Campbell?

— Não escolhemos, eles foram a única opção que sobrou. Sua avó deu o parecer de que preferia que o casamento fosse com o neto dos Davison, e estava tudo bem até que um dia sua mãe me ligou aos berros, anunciando que estava tudo arruinado porque o rapaz era compromissado ou algo assim. Foi exatamente para resolver essa questão que sua mãe e eu, bom... Que nós nos aproximamos novamente.

— Vai ver ele é algum professor casado com a Martha Davison que você conheceu, Kate. — Adria se aproximou dos sofás trazendo com ela uma xícara de café instantâneo. Estava mais calma e pelo visto era possível escutar nossa conversa de longe, já que ela sabia exatamente do que estávamos falando.

— Impossível, o neto dos Davison não morava em Nola. Ele era formado em design de interiores e parece que estava com a família materna em outro estado. Enfim, sua mãe acabou me convencendo de que sua avó achava que o filho do Sr. Campbell era uma união muito melhor e havia a vantagem da fusão que as companhias poderiam fazer. Nos encontramos depois disso, conheci Bruce pessoalmente e o restante vocês já sabem.

— Ainda não consigo crer que o senhor aceitou isso tudo — bufei, enfiando o rosto na almofada. Pensar em ser "leiloada" era muito pior do que obrigada a um noivo apenas.

— Não aceitei a princípio, mas admito que fui um covarde em não colocar definitivamente um fim nisso em voz alta quando tive a chance. Na verdade me senti muito orgulhoso por algum tempo, imaginando o quanto estava fazendo pela felicidade da minha filha, exatamente como meu pai fez pela minha irmã e meus avós pela minha mãe. Não enxerguei as coisas com muita clareza, Kate. Todos ao meu redor tinham motivos maravilhosos para me convencer das vantagens da sua união, fosse pela tranquilidade quanto ao seu futuro, a calmaria familiar, a manutenção da empresa que ajudei a estruturar... Você sabe o quanto é difícil fugir das amarras.

Kennedy me consultou com o canto dos olhos e tudo que eu fiz foi apertar a almofada como um salva-vidas. Aquele homem diante de mim, o mesmo pai que havia me ajudado a ler minhas primeiras palavras, agora parecia apenas um garoto perdido em um mundo que era estranho para ele, envolvido com pessoas que o ensinaram a seguir uma tradição que era estranha para o resto do mundo.

— O senhor foi um fraco.

Está bem, eu fui cruel. As palavras saíram tão ásperas da minha garganta e tenho certeza de que meus olhos estavam expondo toda a minha indignação quando meu pai me olhou de onde estava sentado. Imediatamente ele cobriu o rosto com as mãos e respirou longamente.

— É, eu fui. E Deus, como é difícil admitir isso, Kate... É vergonhoso para mim. Como assinar um atestado de que errei com vocês, quando tudo que eu mais desejava era ver vocês felizes. Eu queria tanto ser exemplar para minha família, um bom filho e empresário, um homem de raízes. Acabei me esquecendo do mais importante... Falhei.

— Não falhou, pai — Adria se esticou, tocando a mão dele mansamente. — O senhor errou, é verdade, mas olhe para nós. Somos fortes e donas do nosso próprio pensamento, não nos deixamos dobrar por qualquer pessoa e estamos aqui para dar um fim nisso. O senhor se redimiu quando entregou o apartamento para Kate, aceitou que ela tinha que viver a vida que ela desejasse, não é? Mesmo agora com as consequências disso.

— Adria está certa, Sr. Dalton — sorri devagar, encarando os olhos lacrimejantes do meu pai, que parecia muito feliz que Adria tivesse o desculpado. — Mas eu tenho uma questão ainda. Porque o senhor ligou para George Campbell na véspera de natal?

— O que? — Kennedy franziu a testa.

— Enquanto estava em York, Bruce Campbell me disse que o senhor ligou pessoalmente para o pai dele e passou quase uma hora no telefone. Ele foi bem claro sobre isso. Fez questão de me contar com detalhes que sou apenas um "peão" para os negócios entre as companhias.

— Que imbecil. — Adria resmungou.

— Não falei com ninguém na véspera de natal, Ratinha. Adria estava aqui, nós fomos...

— Almoçar naquele restaurante flutuante no bayou e depois passamos a tarde no mercado. Nós até compramos aquelas garrafas de rum fajuto que deram tanta dor de cabeça no outro dia. Você recebeu a nossa foto, não foi, Kate? — ela completou, rindo da lembrança.

— Então, ele mentiu. Não seria a primeira vez — suspirei. Havia algum alívio naquilo, afinal meu pai não estava realmente desesperado a ponto de pedir ajuda para George do outro lado do oceano, apenas para convencer sua filhinha a aceitar um ridículo acordo comercial.

— Tão bonito. Tão ordinário. — Adria balançou a cabeça visivelmente revoltada com a questão. Na verdade eu sabia que a revolta dela era pelo detalhe de que o jovem Campbell era mesmo um belo homem, mas a única coisa que existia de boa nele era isso: o superficial.

— Kate, se eu realmente desejasse esse casamento ou essa fusão, você não acha que bastava ir até Nova Iorque e te trazer a força para casa? Nós nunca nos escondemos uns dos outros. Eu disse que estava disposto a enfrentar todas as consequências de aceitar sua escolha, fosse qual fosse. Não ligaria para George Campbell para pressionar você do outro lado do mundo!

— Mas se não houver casamento, não existe acordo. Bruce disse que se o senhor não fosse mais o CEO da companhia, a fusão não aconteceria. E o senhor perdeu tudo pelo qual trabalhou a vida toda...

— Eu conheço muito bem minha mãe — Kennedy se sentou — se o acordo for importante, vai acontecer independente desse casamento ou de mim. Como eu já disse para vocês antes, deixar de ter um cargo na empresa da família é um pouco difícil depois de toda uma vida, porém não vou morrer por causa disso. O dinheiro não é um problema. Sei que vamos ficar bem.

— É por isso que eu estou aqui, pai — olhei direto para ele. — Quero falar pessoalmente com a minha avó. Vou fazer ela escutar o meu lado de tudo isso e depois que eu terminar, pode fazer o que bem entender. Talvez ela não volte atrás nas decisões dela, mas deve servir para ela aprender que não pode continuar decidindo o destino das pessoas ao redor.

— Quanto ao problema do apartamento... — Adria continuou.

— Quando você me contou sobre o apartamento, quase não acreditei no que estava escutando, Adria... Liguei para meus advogados ontem e fiz todo o possível para reverter a situação, mas os papéis já estavam com sua mãe. O imóvel é dela agora, graças a minha burrice de deixar ela me convencer de que tínhamos alguma chance em estar juntos novamente quando comprei o lugar. Mas não se preocupe, Kate, vamos resolver isso também.

O silêncio veio entre nós, ocasionalmente quebrado pelo som da lareira e o jeito de Adria bater os sapatos no assoalho. Kennedy chacoalhou a cabeça e se levantou, se afastando de nós pela sala para tentar esconder as lágrimas que não tinha conseguido segurar. Sempre foi um coração de manteiga, era sua marca registrada. Tentou fazer um sorriso meio torto quando apoiou o braço contra a janela do cômodo, uma tentativa de demonstrar que estava animado em conseguir meu lar de volta.

Enxerguei naquele homem desmoronando diante de mim um reflexo do que eu costumava ser, da Katerina fraca e tola, curvada diante das vontades da mãe e presa em Nova Orleans apenas pelo medo do que a aguardava longe dali. Não era diferente do meu pai antes de subir naquele ônibus para Nova Iorque e talvez aquela fosse a chance dele fugir do que o mantinha preso ali, reduzido a um simples mantenedor dos caprichos de uma ex-esposa maluca e uma mãe autoritária.

— Eu não quero o apartamento de volta, pai.

Minha afirmação causou um silêncio estranho e imediato. Os dois me olharam sem compreender.

— Como não? Onde você vai morar, princesa? O que vai fazer com as suas coisas? Tabby? O irmão do violinista? — a preocupação era clara na voz de Adria.

— Irmão do violinista? — Kennedy estranhou.

— Apenas um detalhe, papai, não se preocupe — ela deixou a xícara vazia sobre a mesa de centro, atenta a minha resposta.

— Eu vou negociar com o porteiro do prédio por mais alguns dias e minhas coisas podem ficar onde estão. Não deve demorar muito para conseguir algum lugar em que tudo caiba em Nova Iorque, afinal é uma cidade muito grande e eu realmente não tenho mais interesse nenhum naquele apartamento mesmo que o senhor o consiga de volta. Se Aida quer tanto ficar com ele, que faça bom proveito.

Eu estava ficando louca? Talvez. Mas aquele era o derradeiro primeiro passo.

Não precisava de nada que viesse da minha família. Fosse o dinheiro, imóvel ou um noivo. Estava começando a eliminar as dependências e aquilo me fez sentir muito leve e decidida, instantaneamente mais dona da minha vida do que alguns minutos atrás, muito mais do que quando entrei no porão da Sra. Fighbright pela primeira vez.

— Kate, reconsidere. Você pode acabar com as coisas despejadas e sem onde ir. Leve tudo para o meu apartamento em Manhattan então. Vai te dar mais tempo para encontrar um bom lugar, se acomodar... — Adria consultou meu olhar, verdadeiramente aflita com a minha decisão.

— Não, Adria, eu...

— Acho que nossa Ratinha está certa, Adria. Deveríamos confiar mais na capacidade dela e respeitar sua escolha. Na verdade, eu devia ter aprendido isso muito tempo antes.

Kennedy atravessou a sala para apanhar minha mão e sentou do meu lado, murmurando um pedido de desculpas repleto de tristeza. Nos abraçamos com força e foi bom poder chorar no ombro dele, sentindo que apesar de todos os erros, ainda havia amor nos ligando.

— Eu disse uma coisa para um amigo há alguns dias, que cabe muito bem agora. Ás vezes não vemos algumas coisas que estão próximas, porque é mais fácil enxergar o que acontece à distância — me afastei do abraço e sorri, recebendo um empurrão para frente quando Adria se juntou a nós e nos apertamos com um pouco de riso e choro.

— Eu amo vocês, seus doidinhos problemáticos! — ela gargalhou.

O coração de manteiga daquela fatia da família dos Dalton. Nosso calcanhar de Aquiles.

******

Passamos a metade do dia conversando. Papai fez um pedido em um restaurante próximo dali e almoçamos juntos, explicando e contando os detalhes que tínhamos perdido da vida uns dos outros, comemorando vitórias e choramingando perdas.

Adria havia deixado Paolo em Roma com seu prazo de validade vencido, como eu suspeitava. O rapaz do bonde ligou para ela antes de entardecer e pelo jeito com que ela estava cantarolando, tinham marcado de se encontrar naquela noite.

Quando os ânimos estavam mais calmos e o frio da noite estava aumentando, resolvemos que era hora de voltar para o hotel. E após muita insistência, Kennedy conseguiu com que nós pagássemos a conta e fossemos ficar com ele naquela imensa casa vazia. Aquela era a primeira vez que ele nos convencia sobre isso e sua felicidade estava estampada em cada pequeno agrado que fazia para tornar tudo mais confortável e tranquilo.

O velho quarto de hóspedes do casarão já era um antigo conhecido meu. Era ali que me recordava de ter passado todas as noites quando decidia passar alguns dias com meu pai, ou nas férias de verão quando aproveitávamos a proximidade com o velho centro da cidade. Tudo estava da mesma forma, até as cortinas com o rodapé repleto de flores bordadas.

Arrumei minhas coisas (que couberam todas em uma única gaveta da larga cômoda) e me joguei no colchão com satisfação, analisando o teto onde havia pregado há anos uma dúzia de estrelinhas que brilhavam no escuro.

Genevieve me ajudou com algumas cobertas limpas e embora ela devesse ter quase a mesma idade que a mansão toda, me parecia bem animada em ver alguma parte da família Dalton de volta ao lar. Ela sempre foi governanta do casarão, pelo menos desde que me lembrava (o que significa muito tempo mesmo!).

— Para que desperdiçar tanto espaço em uma bolsa para trazer um livro desse tamanho, Kate? — ela riu com os lábios rodeados de rugas, trazendo com ela a minha bolsa de ombro que havia ficado na sala. A "Obra completa e Dramas para Palco – Peças de William Shakespeare" estava entre minhas coisas e ver sua capa amassada me causou um bom sorriso.

— Eu preciso começar a ler antes de devolver para o dono, Vivi. — sim, chamar aquela mulher de Genevieve sempre esteve fora de questão.

— Com essa quantidade de páginas, talvez termine a leitura antes do réveillon do próximo ano.

Vivi me entregou o livro entre algumas risadinhas e pediu desculpas por ter tirado "todo aquele peso" de dentro da bolsa para conseguir subir melhor as escadas para o primeiro andar. Muito me surpreendia ela conseguir subir todos aqueles degraus com a idade que tinha, ainda mais estar acordada àquela hora da noite sem parecer nem um pouco cansada; enquanto eu tinha subido até ali com a mala de rodinhas e cogitado um infarto fulminante.

Já era tarde e Adria ainda não tinha voltado de seu encontro inesperado com o rapaz do bonde e pelos roncos, papai estava dormindo à bem mais de vinte minutos. Então me sentei entre todas aquelas camadas aconchegantes de cobertores com cheiro de infância, afundei os travesseiros atrás das costas e puxei aquele livro sobre os joelhos, deslizando os dedos por sua capa preta e letras douradas antes que Vivi desejasse boa noite e fechasse a porta do quarto.

Fiquei me perguntando se haveria um tipo de ritual cabalístico-vitoriano-Shakespeariano que deveria ser feito antes de abrir as primeiras páginas daquele apanhado do Bardo. Se fizesse alguma coisa errada será que uma comitiva de poetas indignados surgiria pela porta para me espancar com cópias perfeitas dos roteiros do bom Sir William?

Teria que correr o risco.

As primeiras páginas eram exatamente como se esperava de um livro, com algumas informações e uma página com o título em destaque com uma moldura ao redor das letras. Em seguida uma página em branco com uma discreta anotação feita à caneta no rodapé, com data do mesmo ano: 15 de Outubro.

Não era difícil descobrir que Leo tinha feito àquela nota, já que a letra era muito parecida com a do bilhete que ele deixou no Bristol junto com as flores que esqueci no apartamento de York Way. Nem cogitei o que era aquela data a princípio e continuei folheando até encontrar uma segunda anotação, desta vez grande como uma dedicatória e feita cuidadosamente com um lápis ou lapiseira, exatamente abaixo do título da primeira obra do exemplar:

Henrique V

"Tomei a liberdade de macular temporariamente este exemplar de modo a auxiliar sua compreensão e aprendizado, senhorita Dalton. Espero que seu esquecimento sobre este empréstimo não signifique que sua memória falhará para devolvê-lo após o término. Prefiro acreditar que talvez neste caso, Shakespeare esteja errado quando citou que não devemos pedir ou emprestar qualquer coisa.

Tenha uma boa leitura.

Leopold Thomas Valois D'Orleans"

Comecei a rir e juro que fiquei dividida entre achar aquilo uma grande consideração ou uma pitada de prejulgamento sobre a minha inteligência, mas se tratando do "Carma" me parecia mais correto ser as duas coisas. Leo havia escrito aquilo para mim antes de entregar o livro em mãos, claramente imaginando que eu precisava de alguém mais "culto" para tutorar a minha leitura.

Seria esse o assunto que ele queria tratar quando me procurou na livraria naquele dia?

Passei a ler com mais interesse. Na verdade o que me mantinha presa em toda a trama do Homem, era a curiosidade de encontrar nos rodapés e topos de algumas páginas, novas anotações; pequenos adendos que citavam curiosidades faziam observações com aquele conhecido tom de sarcasmo inglês.

Me sentia como se estivesse lendo cada trecho em voz alta e tivesse Próspero bem ao lado fazendo cada uma daquelas palavras com seu sucinto sotaque britânico, vez ou outra assistindo minha dificuldade com os termos rebuscados com sua fatal sobrancelha arqueada.

Só notei quantas horas haviam se passado quando escutei o barulho de alguns pássaros no carvalho da calçada e a luz acinzentada clareou aquelas cortinas velhas.

Apanhei o celular para ver o horário e entre um bocejo cansado e uma espreguiçadela, vi que Luke havia respondido minha mensagem.

"Uau! Nova Orleans deve ser o máximo! Você já viu muitos jacarés por aí? Estamos com saudades, Kate!"

Luke retribuiu minha selfie com Adria mandando uma foto meio torta, claramente tirada dentro do carro. Na figura conseguia ver seus olhos arregalados e risonhos, sua cabeleira ruiva e Janet olhando para trás, possivelmente discutindo sobre fotografias com o carro em movimento. Leo estava dirigindo e ainda nevava em York pela branquidão do para-brisas.

"Nada de jacarés por enquanto. Também estou com saudades!" adicionei algumas carinhas mandando beijos. "Pode dar um recado para o seu irmão?"

"Claro!", Lucas respondeu rápido (para a minha eterna gratidão) e pausou a digitação antes de enviar rapidamente "Ele está de péssimo humor hoje", carinha pensativa.

"É mesmo? Bom, diga que eu comecei a ler o livro que ele me emprestou e que agradeço pelo trabalho."

Uma série de carinhas risonhas foi a resposta mais imediata que o ruivinho conseguiu me enviar. Não sabia se isso significava algo melhor do que uma crise de risadas, mas esperava que sim. E aguardando qualquer outra coisa vinda dos irmãos D'Orleans, acabei pegando no sono.

— Kate, princesa... Você vai querer almoçar? — a voz de Adria surgiu baixinho em algum lugar me fazendo acordar.

Minha noção de tempo estava completamente bagunçada (tudo culpa do Carma!) e agora tinha a certeza de que Adria não tinha dormido em casa, já que ela estava exatamente com as mesmas roupas do dia anterior.

— Que horas são?

— Já é quase meio dia. Nós pedimos jambalaya e gumbo no Bubba Gump, posso esquentar pra você. Acho que tem um pedaço de torta de pecan na geladeira, mas não sei se dá pra arriscar um pedaço.

Enquanto me trocava e escutava Adria contar sobre todo o itinerário de bebidas e dança que havia feito durante a noite, estava com a cabeça presa em alguns trechos de Shakespeare, misturados com lembranças da curta conversa com Lucas pela manhã. Durante os minutos que a comida levou para esquentar no micro-ondas e as conversas animadas de Vivi e Kennedy pela cozinha, aproveitei para consultar o celular de novo.

A resposta de Luke foi bem curta: "Recado dado, Kate! Não deixe de mandar notícias, está bem?" e nada mais. Se eu fiquei um pouco decepcionada? Talvez um pouquinho.

O período da tarde foi curto e cheio de coisas para fazer, já que meu pai estava decidido a comemorar a passagem de ano fora de casa para sair da rotina. Aquele devia ser um dos primeiros anos em que ele não compareceria a festa de réveillon na casa da minha avó, o que era uma revolução e tanto para ele. E eu não tinha planos de ver minha avó em um dia festivo como aquele, já que pretendia começar o ano com o pé direito e não levando um pé na bunda.

Decidimos que comeríamos alguma coisa no casarão Dalton e depois iríamos para o French Quarter, assistir a queima da Fleur de Lis — símbolo da cidade. Adria ficou elétrica com a ideia de agitarmos as pernas até o rio para assistir os fogos de artifício e todo mundo sabia que na verdade ela queria um beijo tradicional de ano novo. Ela disse que daria sorte... Quem sou eu para implicar?

Talvez isso explique minha maré eterna de azar. Nunca beijei ninguém na queima de fogos.

Faltavam alguns minutos para as dez da noite quando meu celular apitou. Estava deixando Adria se divertir em escolher uma boa roupa para nosso passeio noturno e me dividia entre comer algumas tostadas e calçar as botas que ela tinha certeza de que combinavam perfeitamente com o vestido e o casaco separados sobre a cama.

No visor uma mensagem piscava insistente;

"Seria muito provável pressupor que a senhorita Dalton tenha uma extensa lista de coisas a se fazer no ano que começa, já que ela possuí a peculiar mania de listar coisas?"

Minhas bochechas arderam e me sentei em um canto para deixar Adria arrumar meu cabelo, felizmente não notando o tamanho do meu sorriso.

"Não imaginei que ainda nos falaríamos neste ano, Sr. Valois. Mas supôs corretamente. Não é uma lista extensa, mas é muito boa. Por um acaso o senhor possuí uma também?"

— Vou deixar você as sós com seu celular — Adria riu assim que notou minha cara e beijou minha bochecha logo que julgou que eu estava bem arrumada, saindo do quarto em seguida.

"Não desenvolvo nenhum apreço por listas, Katerina. Contudo devo alertá-la de que estou mais perto do ano novo do que você e não teria tempo para perder com tanta futilidade."

"Não esperava que perdesse de forma alguma, Leo. Mas fiquei curiosa com suas metas para este ano. Mais livros? Novos casacos?"

"Vou pensar sobre os casacos.", ele respondeu no exato instante que meu pai surgiu pela porta, avisando que todos estavam prontos para sair.

Me vesti rapidamente, ajeitei o casaco e olhei no espelho do corredor como estava depois de toda a transformação de Adria. Ela realmente sabia o que fazia e eu me sentia bem mais confiante naquela noite fria.

"Vamos ver os fogos na beira do rio Mississipi esta noite. Seria incrível ter vocês por aqui."

"Seria um destino deveras interessante", Leo pausou antes de digitar novamente. " Feliz Ano Novo, Kate".

" Feliz Ano Novo pra você também, Leo."

A mensagem foi visualizada e esperei a resposta por algum tempo durante a curta caminhada que fazia de braço dado com meu pai, vendo as pessoas alegres pelas ruas, ocasionalmente algum carro que passava e os passageiros desejavam feliz ano novo.

O movimento já era intenso nas ruas que se aproximavam do Jax Condominiums, onde a flor de lis queimaria na contagem regressiva da passagem do ano. Nos apertamos entre as pessoas para fugir do vento gelado e encontramos um bom lugar de onde conseguiríamos ver tudo. A música alta e a animação das pessoas era contagiante, mas eu estava claramente pensando no meu celular e em um certo nariz empinado do outro lado do oceano.

Sim, eu ainda sentia raiva de mim mesma sobre isso. Não, eu não me arrependo.

— Princesa, vamos pegar uma bebida! — Adria teve que falar mais alto para escutarmos e me pegou pelo braço, gesticulando para meu pai que voltaríamos rapidinho.

Nos esprememos entre grupos de jovens, turistas, fotógrafos e crianças, cadeiras de praia (com 10° nos termômetros) e velhinhos até conseguirmos alcançar um dos tantos bares por perto que ofereciam algo alcóolico. Normalmente eu pediria para Adria comprar uma lata de refrigerante, mas aceitei um copo plástico com vinho até na borda e começamos a fazer o trajeto de volta na direção que nos lembrávamos de ter deixado Kennedy.

Foi então que uma coisa chamou a minha atenção no meio das pessoas. Inicialmente achei que era mais uma daquelas perucas coloridas que as pessoas colocavam para trazer um pouco da prévia do Mardi Gras para a festa, então acabei ignorando. Porém não é todo dia que um cara alto, bonito e de cabelo pink segura seu braço em uma festa de réveillon te chamando de...

— Se não é a ovelhinha negra Kate!

Juro que os pelos da minha nuca arrepiaram. E pensem no quanto isso era difícil quando se está com o pescoço enrolado por um cachecol (aquele vermelho, a propósito. Adria disse que é a cor da paixão. Não dá pra confiar muito nisso).

— Max? — assustei e antes que conseguisse ver por completo, fui abraçada e tirada do chão por um monte de pelos macios que cheiravam a licor de laranja e pistaches torrados.

— De todos os lugares desse mundo, olha onde eu fui te achar — ele riu, claramente afetado pela felicidade que seu copo quase vazio causava. — Como você está?

Minha primeira opção mental foi de esvaziar o vinho no casaco de pele caro que Max estava usando, só para puni-lo por ser um idiota. A segunda era dar um chute no meio das pernas dele e sair como uma verdadeira dama, pra compensar um pouquinho do que ele merecia sofrer pelo que tinha feito com a avó e comigo.

Contudo, Katerina Dalton ficou com a terceira opção:

Sorrir.

— Bom te ver, Max. O que está fazendo aqui em Nova Orleans? — me esforcei, fui simpática mesmo com o sorriso assustador de criancinhas. Ele sorriu largo de volta e desviou a atenção para as pessoas que estavam com ele, principalmente um casal de idade que me olhou de canto com algum interesse. Ninguém notou meu instinto quase assassino crescendo.

E o bigode daquele senhor que acompanhava Max não me era estranho.

— Pois é, Kate. O mundo é pequeno mesmo... Trabalho, baby! Trabalho e ...

Max parou a frase no meio para abraçar Adria e elogiar as roupas dela, a moda os unia infelizmente. Se minha irmã soubesse detalhes sobre a Sra Fighbright e seu neto, tenho certeza de que a minha ideia de chutar as bolas dele seria executada pessoalmente por ela.

Um alto falante anunciou a proximidade do último minuto do ano e as pessoas atraíram a atenção de Max mais uma vez. Pelo visto queriam ver os fogos de mais perto.

Ele tentou se despedir de nós, mas a multidão acabou nos afastando e aquele cabelo pink sumiu entre cornetas e música alta. Adria segurou o meu braço e precisou me cutucar pra ganhar minha atenção e continuarmos andando.

— Ainda bem que achei vocês! — meu pai surgiu de um canto entre dois carros, sorrindo contente por nos encontrar. Estava carregando uma garrafinha de água mineral quando nos abraçou em torno da cintura, ficando entre mim e Adria.

— Acredita que achamos um amigo da Kate por aqui? — Adria riu, as bochechas já ficando vermelhas de frio e goles de vinho.

— É mesmo? Onde? — Kennedy olhou ao redor e estreitou os olhos na multidão por um tempo, só voltando para a órbita com o começo da contagem regressiva.

10... 9... 8... 7...

Todos os olhos estavam sobre o prédio do Jax, onde a estrutura com o símbolo da flor de lis brilhante ia deslizando aos poucos, exatamente como a grande bola na Times Square.

Era isso, o fim do ano. Os últimos segundos da velha Katerina.

5... 4... 3... 2...

Objetivo de ano novo número 1: Recomeçar.

Sem maldições cósmicas, sem tradições doidas, sem futuro-ex-noivo, sem incertezas.

Feliz Ano Novo!

No primeiro minuto do ano que começava, Adria se engalfinhou em um beijo com um cara bonitão vestindo terno só porque ele estava por perto e desejou feliz ano novo. Meu pai tentou rir, mas no fundo eu sabia que ele não estava achando graça nenhuma.

Nos abraçamos, cantamos e rimos juntos com os fogos ensurdecedores que convidavam até a beira do rio. Foi lá que senti o celular me chamando a atenção novamente.

Havia algumas ligações perdidas de Sam, dezenas de mensagens e fotos dela, Jenny e Lex em Nova York (e por lá estava nevando), mandando beijos e desejos de um bom ano. Estava prestes a guardar o aparelho de novo quando outra ligação veio, uma chamada de vídeo que assim que foi aceita abriu a tela para a cor vibrante de um tufão de cabelos enferrujados.

— Kate! — Lucas gritava animado, tentando focalizar a câmera no próprio rosto. — Feliz ano novo!

— Feliz ano novo, Luke — não tinha como não rir, ainda mais quando ele girou o celular tão rápido para me mostrar onde estava. Um estômago desavisado poderia sofrer sérios estragos com isso.

— Dêem feliz ano novo pra Kate, pessoal! — ele logo anunciou, andando ao redor de muitas pessoas desconhecidas em um lugar que reconheci como a sala de jantar dos D'Orleans.

— O que você está fazendo, Lucas? — Janet apareceu com uma taça de champanhe.

— Falando com a Kate. — apontou o celular.

— Ah, olá Katerina. Feliz Ano Novo, querida. — ela ergueu a taça para mim e eu retribui com meu mísero copo de plástico quase vazio. Depois Janet voltou a falar com Luke — Seu irmão sabe que você está... Edward? Edward deseje feliz ano novo para Katerina, sim?

A tela só mostrou o Sr. D'Orleans entre alguns convidados, esboçando um breve erguer de sobrancelhas e um cumprimento como o da esposa, usando a taça em mãos. Depois o vídeo ficou embaçado e confuso até o rosto de Luke voltar a sorrir nele.

— Não sei porque minha mãe convida todos os parentes e vizinhos pra essa festa. Sabe qual a distância da nossa casa até o próximo vizinho?

— Oito quilômetros.

Tudo bem, eu precisava parar de arrepiar quando a voz de Próspero batia nos meus ouvidos. Mesmo assim, não consegui evitar e no segundo seguinte estava com a minha melhor cara de sanduiche de pasta de amendoim com banana, apertando os lábios com certa antecipação. Mas Luke não focalizou o irmão, a câmera ainda estava focalizando seu rosto.

Eles podiam passar o réveillon na casa deles, sabia? Tem gente aqui que eu só vejo uma vez no ano, nessa mesma data. Parece que eles passam todos os outros meses do ano hibernando e vem aqui só pra comer e fazer de conta que se importam. A gente não podia...

Você ainda está reclamando, Lucas? O que está fazendo nesse celular? — eu também reconheceria aquela voz em qualquer lugar: Maria Julieta, também conhecida como Juliet. Pelo visto ela estava mais animada desde que sai de York. Dava pra imaginar porquê.

— Falando com a Kate, com licença.

A feição de Luke ficava séria por um instante e depois ele mostrava a língua e ria, claramente indo para outro ponto da festa. Muitas pessoas falavam com ele e era um pouco confuso, até que o celular deu outro giro e apontou para o chão da sala por um bom tempo, sendo carregado dali.

Me afastei um pouco de Kennedy e Adria — que discutiam a veracidade do beijo de ano novo — e me sentei em um banco de ferro do outro lado da rua diante do rio, sem conseguir afastar os olhos do celular.

A imagem ainda era do chão, de sapatos, botas e sandálias femininas. De sombras no tapete perto dos sofás e do rodapé ao redor de uma porta. Então o chão mudou para um piso de pedras semicobertas de neve e a tela ficou escura antes de focalizar a paisagem nevada entre árvores e a iluminação linda da entrada da mansão dos D'Orleans.

— Luke? O vídeo ainda está ligado — achei melhor avisar já que ele parecia ter se esquecido totalmente do aparelho.

— Eu sei que está, senhorita Dalton. — a câmera foi movida apenas um pouco e no canto esquerdo a sobrancelha do Carma fez meu estômago dar um looping insano até o dedinho do pé. Maldito.

— Oh...— ah, a vergonha de sentir as palavras sumirem. — Não esperava por isso, admito.

— É bom saber que continuo a surpreendendo de alguma forma. Imaginei que seria melhor sair do centro das vozes e ruído.

— Onde o senhor está? — torci o rosto como se por alguma mágica conseguisse ver além do que Leo limitava a tela a mostrar.

— Na varanda. Ainda está a margem do grande Mississipi, Kate?

— Sim — virei o celular para mostrar o lugar para ele. Me pareceu bem lógico. — Os fogos acabaram há alguns minutos.

Continuei a mostrar o redor para Leo e fiquei em silêncio. Sabia que adoraria se ele estivesse sentado ao meu lado naquele instante, olhando o reflexo dos fogos tardios nas águas do rio, as pessoas que se movimentavam para os bares e casas para fugir do frio. Mas não tinha certeza de ele se encaixaria naquele cenário com copos de plástico e vinho barato, pessoas fazendo festa nas ruas.

De repente a distância entre nós ganhou um significado diferente e estranho.

Lucas disse que começou a ler o livro. — o comentário me fez voltar a olhar para a tela. — Como tem sido a leitura até o momento?

— Interessante — ri — O senhor sabe que eu sou perfeitamente capaz de ler tudo aquilo sem precisar de um guia, não é?

— Achei melhor não arriscar.

Do outro lado da rua Adria me chamou alto e fez um sinal de que estavam indo embora. Olhei para a ligação de vídeo uma vez mais e dessa vez encontrei o rosto de Leo olhando diretamente para mim, acompanhando a direção do meu olhar para outro ponto. Tive a impressão de que ele estava prestes a dizer alguma coisa, porém foi interrompido pelo som de uma porta aberta que deixava todo o barulho da sala de jantar voltar para a ligação.

— Ei, Leo. Seu pai pediu pra te chamar, eles querem tirar aquela foto... Meu desculpa, eu te atrapalhei?

A gentil voz feminina que não tinha um rosto na tela chamou a atenção do Carma e ele deu um suave sorriso antes de responder.

— Não atrapalha. Já estou indo.

— Está bem.

Assim que voltou a olhar pra mim, mesmo que a sensação esquisita ainda estivesse comigo, sorri como de costume.

— É melhor o senhor atender, afinal não deve ser muito bom negar um pedido do Sr. D'Orleans.

De fato. Nada sábio.

Sorrimos um para o outro, um sorriso que significava muito mais palavras do que estávamos trocando, mesmo sendo silenciosos.

— Obrigada pela pequena conversa, Próspero. Feliz ano novo mais uma vez. — me levantei quando Adria gritou mais uma vez por mim.

Feliz ano novo, Megera.

*******

O primeiro dia do ano amanheceu mais quente do que a noite anterior. Parecia um modo de dar boas vindas e fazer boas promessas para o restante dos dias que viriam, mas era melhor não criar expectativas demais.

Depois de mais alguns copos de vinho na noite da virada e um restante de madrugada dedicado às piadas familiares mais absurdas que se poderia ouvir com três Dalton reunidos em volta da lareira; acordar quase no meio da tarde me pareceu bem normal.

Minha cabeça doía, afinal nunca fui uma pessoa forte o suficiente para acompanhar o que minha irmã intitulava de "curso de bebedeira" e tinha que lidar com a realidade de que precisava de café forte, aspirinas e um óculos escuro.

Genevieve estava pela casa e riu baixinho quando me escutou descer as escadas com minhas velhas pantufas de urso, resmungando com cada fresta de janela aberta. Começava a imaginar se era assim que Drácula se sentia.

— Ora, boa tarde, Katerina. Vou fazer alguma coisa quente pra você — ela se adiantou, mexendo nas panelas enquanto me sentava por perto.

— Vivi, meu pai e Adria... Onde eles estão?

— Seu pai saiu logo cedo com sua tia Macy. Era alguma coisa sobre a empresa, não me pareceu algo grave. Já sua irmã... — o suspiro dela era resposta mais do que suficiente.

Me debrucei na mesa e recebi depois de alguns minutos uma xícara de café fumegante e alguns ovos mexidos com torrada que vieram bem a calhar. Conversamos durante um bom tempo — Vivi tentando me convencer a sair e passear, eu tentando me convencer de que tirar minhas pantufas não era um pecado punível com a morte — até acabar me arrastando para a sala de tevê e só voltando ao mundo dos vivos quando Kennedy chegou, seguido de Adria por alguns minutos de diferença.

Pelo visto eu estava num daqueles dias de "a cara mais preocupante do mundo" e todos queriam fazer qualquer coisa para solucionar meu problema. Quando se deram por vencidos pelas minhas olheiras e quarta xícara de café, resolvemos nos sentar para decidir o futuro jantar, já que o tempo lá fora começava a esfriar de novo e ninguém estava disposto a sair.

— Eu preciso ir falar com nossa avó amanhã. — relembrei Adria, que sacudiu a cabeça do outro lado da mesa.

— Falar com sua avó? — meu pai suspirou.

— Eu vim até aqui pra isso, pai. Já passou da hora de eu dizer algumas boas coisas sobre o que eu penso dessa tradição familiar e de termos, empresa, fusões. Viola Meredith Dalton vai escutar da própria neta umas verdades que precisa aprender.

Muito corajosa. Só que não.

Meu pai ficou em silêncio por um momento, coçando o próprio queixo pensativamente depois do meu discurso de motivos para me encontrar com a matriarca Dalton.

— Não sei se é uma boa ideia ir até lá, Ratinha. Você não precisa passar por isso. Sua avó não vai aceitar nada do que você disser, por melhor que sejam as suas intenções. Podemos ir até o City Park passar o dia de uma forma bem mais divertida e sem a fúria da velha.

— Ela já está bem furiosa sobre esse assunto, pode acreditar — Adria riu, deixando sobre a mesa um panfleto de comida indiana.

— Só preciso que ela me escute. Ela nem precisa se dar ao trabalho de me responder nada.

— Duvido que ela responda mesmo, princesa. Quando fui falar com ela, fiquei monologando por longos minutos até que ela se levantasse, desse as costas e me deixasse falando sozinha naquela gigantesca sala de jantar.

— Ao menos ela te atendeu, Adria — Kennedy riu, colocando seus óculos para ler melhor as letras miúdas de um segundo cardápio espalhado na mesa. Estava em dúvida entre carne assada, sushi ou biryani. — Posso ligar para ela depois do jantar e ver se vai estar disponível amanhã.

— Obrigada, pai, mas eu pretendo fazer isso sozinha. Ela já escutou muitas pessoas no meu lugar.

Escolhemos biryani (que estava bem mais apimentado do que de costume, o que nos custou um passeio para comprar remédios para o estômago) e depois de um final de noite assistindo filmes velhos e seriados repetidos, fomos dormir no meio da madrugada — até porque o sono me custou muito mais para chegar, tempo suficiente para ler mais algumas páginas do Homem antes de desmaiar toda torta sobre o colchão de molas do quarto de hóspedes.

Não me permiti usufruir de todo o prazer da minha cama quente e macia por mais tempo na manhã seguinte e tão logo Vivi colocou o café da manhã na mesa, lá estava eu devorando um pote de cereais e esperando um táxi.

Antes que Kennedy ou Adria viessem me encher de conselhos e palavras de consolo, já estava com o rosto apoiado na janela do carro que deslizava na direção dos plantations e da velha fazenda centenária onde Viola Dalton ainda morava.

Sempre ouvimos histórias sobre aquele lugar, sobre os tempos em que os fazendeiros e barões mandavam na cidade e os escravos viviam perto dos pântanos, enchendo os pulmões de Nola com sua cultura e moldando grande parte da cidade. Nossa avó se orgulhava das raízes da família, assim como seus pais e avós, e havia passado para meu pai e minha tia todas suas crenças e regras, toda a cartilha que foi ensinada pelos meus bisavós e tataravós (e que teoricamente deveria ter sido passada para mim também).

Seguir para os plantations era como pegar uma máquina do tempo e repentinamente estar rodeado de pequenas estradas de terra, carvalhos e salgueiros imensos, o cheiro e umidade dos lagos. Os turistas adoravam os velhos casarões preservados e abertos para visitação, e não era raro encontrar os ônibus cheios deles com suas máquinas fotográficas e casacos fofinhos.

Mas a sede da fazenda Dalton não fazia parte do programa de visitação da sociedade histórica de Nova Orleans. Minha avó nunca aceitaria ter a casa dos seus antepassados em fotos de celulares pelo mundo ou em um site, escancarada em todos seus mistérios.

Sempre tivemos medo daquele lugar. Minha mãe fazia questão de encher nossas cabeças com histórias de fantasmas, principalmente sobre os escravos vingativos e alguns parentes mortos que rondavam os tantos quartos vazios. Se já aparecíamos raramente naquele lugar, não faltavam razões para qualquer visita se tornar inexistente, o que com o passar dos anos acabou acontecendo.

O motorista entrou com o carro através do largo portão de ferro trabalhado e dirigiu pela estrada de pedras que ficava entre duas longas fileiras de monstruosos carvalhos perenes que formavam um corredor diretamente para a grande casa. Os grandes pilares da varanda me davam arrepios, mas o motorista não me deixou filosofar muito depois de parar logo em frente dos degraus da entrada.

— São 25 pratas, moça — cuspiu um chiclete pela janela e não me deu chance de pedir um desconto. Logo estava criando uma nuvem de poeira para sumir dali e juro que pensei se não daria tempo de desistir e simplesmente deixar pra lá aquela parte da viagem.

Tarde demais. Hora de lembrar a resolução em ser a nova Katerina.

Tinha acabado de colocar meu pé esquerdo na varanda quando a porta da frente se abriu. Uma mulher me observou de cima até embaixo, soltando um ruído engraçado pelo nariz e arrumando um avental imaculadamente branco ao redor da cintura.

— Pois não?

— A senhora Dalton está? Eu gostaria de vê-la, por favor. — desfiei minha boa educação toda em uma sequência de frases. Senti certo orgulho próprio.

— A senhora não está aguardando ninguém esta manhã. Sinto muito, mas terá de voltar outro dia.

A mulher deu as costas tão rápido quanto chegou e no momento seguinte eu estava batendo na porta, escutando o som dos passos dela dentro da casa.

— Eu já disse, senhorita. A senhora Dalton não vai atender ninguém. Ela está indisposta. — o máximo que consegui (além da resposta robótica e de má vontade) foi com que ela abrisse uma fresta e me espiasse dali, talvez com medo de ser infectada com toda a minha cara de bons modos.

— Meu nome é Katerina Dalton, eu sou neta da senhora Dalton. Por favor, diga a ela que eu realmente gostaria de vê-la.

— Neta dela? Outra?

Aquilo funcionou melhor. Ela abriu a porta completamente e arrumou as roupas, claramente um cacoete de anos trabalhando como governanta da casa, e voltou a me medir sem discrição. Não queria nem imaginar o que se passava naquela cabeça.

— Sim. Sou a filha mais nova de Kennedy Dalton.

— Mesmo assim, sua avó não vai atender você, senhorita. Você deve entender que a saúde dela está... Por favor, me dê um minuto. — um burburinho chamou a atenção da governanta, que virou o corpo para ralhar com duas jovens empregadas que estavam dentro do hall, espiando a minha chegada.

Enquanto elas tinham uma pequena discussão sobre voltar ao trabalho e parar de bisbilhotar, fui entrando devagar pela grande porta aberta. Me lembrava bem de como aquela casa era e sabia o caminho até o escritório onde era comum encontrar Viola na minha infância, enfiada entre livros de administração e o cheiro marcante de seu perfume de rosas misturado com páginas velhas. Os corredores ainda eram os mesmos com seus assoalhos rangendo e quadros nas paredes, mas tudo parecia bem menor do que me recordava.

— Senhorita Dalton, por favor, espere! — a mulher gritou assim que notou que tinha cometido o deslize de não prestar atenção em mim. E apressei meu passo pela casa, colocando a cabeça dentro de cada porta aberta a procura da matriarca Dalton.

Acabei encontrando a maravilhosa cozinha da casa, onde galinhas e ervas ainda ficavam penduradas sobre o forno a lenha na espera de serem usadas na refeição. Tudo cheirava a pão assado e chá de gengibre, porém meu olhar atravessou a janela assim que vi um topo de cabelos grisalhos passando do lado de fora.

A porta dos fundos levava a um trecho de terreno fofo e semeado, coberto por armações de arame que impediam o frio do inverno de congelar os vegetais e legumes. Quase tudo ainda era cultivado na fazenda para uso próprio, mais um dos orgulhos de minha avó.

Ali estava ela, poucos metros longe da saída da cozinha por onde tratei de me apressar antes que a governanta acabasse me alcançando. Contudo a mulher esbaforida bateu a porta pouco depois de mim, ofegante e vermelha até me segurar pelo ombro e fazer um rígido sinal de que eu deveria permanecer em silêncio.

Viola estava ajoelhada entre canteiros cobertos por um plástico estendido e um mordomo estava ao seu lado, segurando um balde onde ela recolhia folhas de espinafre e couve. Não usava luvas de jardinagem ou tinha alguma frescura em se ajoelhar na terra úmida entre as plantações, mas precisava de ajuda para se levantar e voltar a ajoelhar quando decidia que tinha encontrado algumas folhas dignas da atenção para serem colhidas.

Sua aparência era mais frágil agora do que me lembrava de ter visto durante toda a vida. Nunca tivemos muito contato, principalmente porque Viola e Aida nunca foram boas amigas, então minhas lembranças dela eram muito distantes, de palavras sempre austeras e olhares reprovadores nas poucas ocasiões em que estivemos juntas.

A governanta ao meu lado pigarreou educadamente, tentando atrair a atenção dos dois, mas falhou nas duas primeiras tentativas. Na terceira o homem ao lado de Viola olhou irritado em nossa direção e murmurou alguma coisa que fez minha avó se virar imediatamente para nós.

— Quem é? — resmungou.

— S-sua neta, senhora. — o nervoso da mulher era notável, o que fez Viola espremer os olhos na nossa direção.

— A outra filha do Kennedy? Esses problemas não terminam nunca.

Ela reclamou alto o bastante para me deixar ouvir e gemeu baixo, alguma dor nos joelhos ou no quadril que a incomodou bastante para se endireitar e dar os primeiros passos para longe das hortaliças.

O mordomo se adiantou a deixar o balde para apanhar um casaco de lã e colocar sobre as costas dela, mas Viola negou com um gesto, indicando que ele deveria se preocupar mais com as couves e espinafres do que com suas costas.

— Senhora, eu pedi para ela voltar depois, mas a menina...

— É de se esperar, — Viola interrompeu a mulher, erguendo a mão no ar com rapidez. — que ela não saiba acatar ordens. Katerina, não é?

Acenei o melhor que pude para afirmar a pergunta. Era algo redundante, já que Viola parecia se lembrar de mim mais do que eu dela.

— Leve Katerina até a copa, Florence. Dê a ela uma xícara de chá de gengibre bem quente e a acompanhe até a porta.

Arregalei os olhos no mesmo instante. Ela estava me mandando embora sem sequer desejar saber o que eu estava fazendo ali? Não era possível.

— A porta? Mas eu não vou embora sem falar com a senhora — adiantei, desviando da mão irritante da governanta antes que me pegasse pelo ombro de novo. — Vim de Nova Iorque até aqui para ter essa conversa e não vou tomar chá nenhum enquanto a senhora não me der alguns minutos do seu tempo.

— Alguns minutos? Eu não tenho tudo isso para perder com você. Tenho perdido muito mais para tentar arrumar todos os problemas que trouxe para essa família desde que o seu pai decidiu acatar suas vontades, Katerina. Uma xícara de chá e a porta da rua. É o bastante.

O mordomo se apressou até encontrar com Viola entre os canteiros e ela resmungou algumas palavras ainda mais ríspidas para ele antes de se curvar e apanhar ao lado das largas escadas da casa, uma discreta bengala de madeira. O item só confirmava o que eu tinha desconfiado sobre sua dificuldade em andar e com o barulho do objeto sobre as tábuas dos degraus, ela foi acompanhada para a porta da cozinha me deixando às voltas com Florence, que me pegava pelo braço.

— Pode deixar, eu sei andar sozinha, muito obrigada! — me afastei dela, irritada.

Juro que meu primeiro pensamento foi algo bem covarde. Queria simplesmente me enfiar no primeiro táxi que conseguisse, aquecer minhas mãos, curtir meu último dia em Nova Orleans e fingir que aquela parte da família simplesmente não existia. Estava quase me decidindo a mandar minha avó para aquele recanto tropical onde Lúcifer reside e deixar os problemas dos Dalton se resolverem sozinhos.

Mas eu não seria a nova Katerina Emily Dalton se fizesse isso.

Assim que consegui, pulei os degraus da casa e alcancei a porta da cozinha, entrando sem permissão (e nem me importando com isso), seguindo o som da bengala contra o chão e ignorando os gritos desesperados de Florence atrás de mim mais uma vez.

Viola parou na frente das portas para sua sala de jantar quando me escutou e seu queixo se ergueu no mesmo instante, assumindo aquela postura ainda mais austera.

— Insistente e presunçosa. Você deve ter herdado isso da sua mãe.

— Eu não vou embora antes de conversar com a senhora — parei alguns passos dela e nos encaramos por segundos de silêncio. A governanta não se atreveu a me segurar de novo, mas eu escutava sua respiração agitada pela corrida pouco atrás das minhas costas.

— Dez minutos. Nada mais do que isso. Depois você sai pela mesma porta por onde entrou e desaparece da minha vista. Entendeu?

Concordei. Dez minutos eram melhores do que nada e Viola dispensou Florence antes de andar devagar até a ponta da mesa de jantar e se sentar, me analisando claramente a cada movimento. Ela me lembrava dum caçador sábio pelos anos, esperando a presa desavisada cometer um primeiro deslize antes de dar o bote. Era assustador.

— A senhora sabe por que estou aqui — me sentei próximo dela, respirando fundo. Na verdade, Viola também respirou fundo antes de sua voz cortante encher a sala de jantar.

— Você fugiu de uma tradição de família, causou uma série de transtornos, colheu o preço por seus erros e agora está usando meu tempo e paciência para choramingar sobre o quanto você acha tudo isso "ridículo", "inaceitável" e "retrógrado". Sua irmã esteve aqui há alguns dias e desfiou minutos de verborragia parecida sentada nesta mesma cadeira onde você está agora. Não vou levar a questão do cargo do seu pai até o conselho da empresa novamente, Katerina, nem mesmo pretendo incluir ele ou vocês na herança da família.

— Ninguém se importa com esse maldito dinheiro de família. A senhora não entende o quanto esse tradicionalismo é obtuso? — Próspero se orgulharia da palavra difícil que consegui dizer. — Não é certo decidir o destino de uma pessoa pensando apenas no próprio benefício.

— Próprio benefício? — Viola riu — E do que eu me beneficiaria em casar você ou sua irmã, Katerina? Ganharia algumas terras e uma empresa de segunda linha no norte da Inglaterra? Mais trocados em um banco?

— A empresa cresceria. O nome da família seria ainda mais forte no ramo têxtil, ampliaria os horizontes, além de continuar a tradição. Estou errada?

Minha questão pareceu surtir algum efeito na matriarca Dalton, que aliviou um pouco as feições por um breve momento antes de cruzar as mãos sobre a mesa.

— Entenda uma coisa, menina: para mim apenas importa que a família permaneça sobre os ideais que foi mantida até agora. Minha mãe, minhas avós e tantas outras mulheres Dalton seguiram esse caminho e foram elos fortes na corrente que segura nossas fundações. O mundo está mudado, a modernidade... Não me importa. Se a próxima geração de Daltons decidir acabar com as tradições e raízes, eu só posso pedir por paciência divina.

— Então tudo isso é uma questão de... Orgulho?

Viola se remexeu na cadeira e seus olhos desviaram para um quadro na parede branca, onde seus ancestrais estavam retratados em sépia. Ficou em silêncio, remoendo alguma coisa dentro dela conforme apertava os lábios tensos.

— Não incomoda em nada que seu filho perca todo o trabalho pelo qual se dedicou, sua paixão e lealdade, apenas porque a senhora não aceita parecer um "elo fraco"?

— Seu pai sempre foi um elo fraco, Katerina. Casando-se com aquela mulher fútil, dando as costas para a própria família. Até mesmo sua mãe sabia da importância que as tradições têm para pessoas como nós, embora eu deteste admitir que Aida esteve aqui mais vezes do que eu gostaria para tratar do assunto que seu pai deveria tratar.

— Kennedy me contou que a senhora escolheu pessoalmente meus pretendentes...

— O pretendente. A única família que me interessava ver ligada a nossa era os Davison. Pessoas de caráter, conhecidas e próximas, fáceis de manter nos trilhos. Mas Aida insistiu em permitir uma segunda escolha e só Deus sabe o quanto sou capaz de fazer para me ver livre da sua irritante mãe.

A expressão de Viola não deixava dúvidas. Afinal, quem podia repreendê-la por não amar minha mãe?

— Mesmo assim a senhora aceitou a escolha dela. Aceitou também os termos desse casamento absurdo com um acordo de fusão entre empresas. Porque, se nada disso era interessante para a família ou para os negócios?

— O neto dos Davison não poderia aceitar o compromisso com você. Aida veio pessoalmente fazer todo um estardalhaço sobre o motivo do menino não poder se casar, descontrolada e dizendo ter sido enganada por eles. Eu não podia deixar que ela expusesse a pobre família ao ridículo na sociedade.

— Meu pai me contou sobre isso. O homem estava compromissado, não é? Como Adria também estava antes de empurrarem isso tudo pra mim. Não vejo qual o problema disso. Vocês só me empurraram para o próximo da fila.

Viola franziu a testa e me olhou com alguma surpresa, como se o que eu tinha acabado de falar fosse uma idiotice tamanha, quase uma heresia. Depois bufou, sacudindo de leve a cabeça prateada e se levantando incomodada.

— Você realmente não sabe de nada do que aconteceu ao seu redor, não é? — houve quase um olhar de piedade partindo dela — O problema do rapaz não era um compromisso, Katerina. Ele não podia se casar com você simplesmente porque estava compromissado com outro homem.

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