O Feiticeiro - Vol II - O Rei...

By MMatiazi

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***Publicação especial para os leitores do livro "O Feiticeiro - Vol I - O Estrangeiro" lançado em 2015. Quem... More

O adeus
O cortejo (parte 1)
O cortejo (parte 2)
Reencontro (parte 1)
Reencontro (parte 2)
Cortes (parte 1)
Cortes (parte 2)
Cortes (parte 3)
Cunhadas
A torre (parte 1)
Reencontro - Parte 2

A torre (parte 2)

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By MMatiazi



Poucos ciganos tinham aceitado a tarefa de fazer consultas aos regicidas na Torre Sul. Era normal, desconfiados por natureza, pensarem que aquilo fosse alguma armadilha e que seriam presos, e não pagos, ao fim da sessão. General Corbt advertiu aos seus subordinados para serem os mais corteses e gentis o possível, mas soldados não são especialistas em cortesia e, em alguns casos, bastava que se aproximassem dos acampamentos e os ciganos debandavam antes de poderem sequer trocar palavras.

Ainda assim, algumas sessões aconteceram, seus resultados foram anotados e os nômades, bem pagos pelo seu serviço. E é o que está prestes a acontecer em mais esse fim de tarde.

Exausta por aquela subida interminável, Selenita precisa apoiar a maleta de madeira sobre os degraus diversas vezes. Quanto mais perigoso o prisioneiro, mais no alto da torre ele se encontra e, bem, os assassinos do rei estão no topo, literalmente.

– Já passamos das nuvens? – brinca, ofegante, em um sorriso simpático, porém a iluminação escassa não permite descobrir se o carcereiro que a segue achou alguma graça. Resolve continuar o assunto de maneira mais prática – Espero que o pagamento valha a pena.

– O futuro rei nos fez prometer, senhora, deixá-los cobrar o quanto acharem justo.

– Isso é impressionante. – arruma os cachos escuros e volumosos sob o lenço enquanto seca o suor – Então nem todos os reis são porcos... – comenta a si mesma, segurando a alça da maleta e a erguendo novamente para enfrentar os próximos lances da escada – Devia cobrar uma moeda por degrau, terminaria rica.

Observa que, cada vez mais, o caminho se mostra escuro e o ar, apodrecido. As janelas dos primeiros andares se tornam menores e logo sua localização não é mais nas celas e sim nos pequenos intervalos entre elas e sua única função é ventilar o ambiente, não iluminá-lo.

– Vai ser difícil fazer alguma leitura assim, no escuro.

Ouve o riscar de um fósforo ecoando pelas paredes pedregosas e logo a bolha de luz quente de uma tocha os envolve. Nesse momento, Selenita preferia ter continuado sem enxergar:

Diversos homens semi-mortos esperavam a vida passar, jogados aos cantos de suas celas, sem se lembrarem que costumavam ser humanos. Misturados a fezes, baratas e ratos, com cabelos e barbas tão desgrenhados que não se adivinharia um rosto por baixo deles, jazem esqueléticos, derrotados.

Aqueles eram criminosos, homens que já acabaram com a vida de alguém, ela sabe. Mesmo assim, seu nariz e seu coração se sensibilizam. Mesmo porque, para tantos, todos os ciganos eram criminosos apenas por serem-no. Como não imaginar se o próprio carcereiro que a escoltava não tinha vontade de jogá-la em uma cela dessas se pudesse?

– Estamos chegando. – anuncia finalmente o seu sério acompanhante, pegando-a de susto em meio a seus pensamentos, e ela agradece à Mãe por poder descansar as pernas um instante que for.

Estacam diante de uma porta gradeada, pouco se adivinha do que está adiante. O carcereiro destranca o cadeado usando um molho de chaves tão velho quanto superlotado. Deve pesar horrores. A cigana segura sua maleta e inspira fundo, mas o odor a faz desistir no meio e ela tosse, enojada. O homem ao seu lado nem nota, parece não se incomodar com nada.

Alguns degraus à cima estão os prisioneiros de honra. Há muito menos tempo que os demais, é nítido: ainda têm alguma energia e barbas relativamente curtas. Mas algo muito estranho está acontecendo ali.

As celas são uma ao lado da outra e ela pode observar os dois arqueiros ao mesmo tempo, sem que um possa observar o outro, entretanto. Selenita dá uma longa examinada no quadro enquanto o carcereiro coloca a tocha em uma pira maior, deixando o ambiente quente e iluminado. Ratos também os rodeiam, mas estão mortos, incompletos, despedaçados. As roupas que usam estão rasgadas e cheias de sangue, certamente resquícios das torturas que sofreram. Mas também há muito sangue em seus rostos e as pupilas minúsculas pela luz os forçam a cobrir os olhos de forma irritada. Parecem morcegos e não humanos que tem diante de si.

Tenta parar de julgar e abrir os olhos da mente, foi para isso que veio até ali, para isso será paga.

A cigana coloca a maleta no chão, abre, fixa as presilhas e separa seus objetos. Tira quatro pés de madeira e monta a pequena mesa, arruma uma boa toalha por cima, embaralha as cartas, ajeita a saia para se ajoelhar diante de sua improvisada tenda de sortista.

– Prazer, senhores – diz, simpática – me chamo Selenita, vim conversar com vocês sobre o futuro...

Um dos arqueiros gargalha:

– Futuro? Esqueça as cartas, mulher, você já está vendo nosso futuro. – se aproxima das grades, transtornado, sem conseguir enxergá-la – Apodrecer aqui.

É um homem mais jovem do que ela, cabelos bem escuros, assim como os olhos. Ele está agitado, não consegue permanecer sentado, se coça e perambula, encostando a cabeça contra as paredes de pedra, a respiração alta, a barba banhada em sangue. O outro está apático, apenas treme, encolhido. Parece um tanto envelhecido, olhos estalados.

Não precisava ser vidente para perceber: eles estavam em abstinência de alguma substância viciante.

– Deve estar sendo difícil a estadia, imagino que perderam a noção do tempo. Vocês sabem há quantos dias estão presos aqui?

– Não sei. Horas. Anos.

– Você lembra o que te trouxe aqui?

– Lucius III morreu.

– E quem o matou, você lembra?

– Sua mãe.

Selenita sorri num suspiro: de que adiantaria tentar conversar? Eles resistiram a torturas. Mas seja o que tenham usado para isso, já não está mais fazendo efeito. Ela tira as cartas, em silêncio, sendo assistida pela curiosidade do carcereiro, mas não está satisfeita com as conclusões. Esse cheiro terrível, essa agitação do arqueiro mais jovem, tudo isso a desconcentra. Ela bufa, frustrada.

– Venha, me dê sua mão. – fala para o arqueiro.

O homem arregala os olhos, parece amedrontado.

– Venha, eu não mordo. – ela insiste.

– Eu... eu mordo.

Sim, ele mordia, ela parece entender bem o quadro ao seu redor. Os malditos comeram os ratos. Ela se vira irritada ao carcereiro:

– O que está acontecendo aqui? Não estão alimentando esses homens?!

De braços cruzados, o funcionário responde:

– Não com carne. É a única coisa que eles aceitam comer. E crua. Sinceramente, não estamos interessados em atender bizarrices gastronômicas de assassinos.

Carne crua? Selenita retorce a expressão, volta o olhar ao prisioneiro que tem diante de si, trêmulo, confuso:

– O que aconteceu com você? Pelos deuses... Eu vejo algo nos seus olhos, algo que ele não vê. Eu vejo um homem aprisionado em coisas além de grades. Elas aprisionam sua confissão, não é? E sua alma...

O arqueiro parece cada vez mais assustado. Selenita se aproxima:

– Quanto mais tempo passa preso, mais longe você está da fonte do seu vício. O que é, rapaz? Eu passei toda minha vida andando por esse mundo, confesso que já vi muita coisa e ouvi muitas histórias. Mas é a primeira vez que eu vejo isso diante de mim.

Ele vai se agachando, como um animalzinho, se aproximando da grade com os olhos humildes:

– Você é uma bruxa? Você vê coisas porque é uma bruxa?

Selenita franze o cenho:

– E-eu sou só uma cigana, garoto, você já viu algumas aqui nesses últimos tempos, não viu?

– Mas você é diferente.

Ela se aproxima também, olha bem dentro daqueles olhos humildes de pupilas minúsculas:

– Por quê? Por que eu sou diferente?

– Porque você – ele sussurra, as mãos trêmulas em frente à boca, para então pular contra a grade gritando – é uma BRUXA!!!! Bruxa!!! Bruxa!!!

Selenita se afasta em um pulo, quase derrubando sua mesa, arregalando os olhos para o carcereiro que corre para bater um pesado bastão contra os dedos do prisioneiro descontrolado.

A cigana vê, ofegante, o arqueiro, ou o que sobrou dele, se recolher ao fundo da cela em um gemido sofrido, enquanto, de longe, começa a repetir:

Bruxas precisam morrer!! Matem todas! Todas!! Bruxas precisam morrer!!

Em meio àquela gritaria, somada aos golpes que o carcereiro desfere contra as grades impondo silêncio aos insultos do prisioneiro, Selenita observa o outro arqueiro mais velho se aproximando timidamente da grade, estendendo a mão e sussurrando:

– Você pode ler a minha, senhora. Eu sou o que cumpriu a tarefa e os fantasmas não gritam mais nos meus ouvidos tanto assim.

Selenita o observa longamente. Em passos miúdos resolve lhe dar um voto de confiança, não sem antes prender bem o pé contra a grade, para puxar a própria de volta com força se precisar. Ela lê as linhas enquanto a mão treme, toda marcada com feridas, unhas faltando e sangue seco:

– Não sabemos quanto tempo mais ficaremos assim. Ninguém achou que sobreviveríamos mais do que o efeito do veneno. – ele comenta baixo.

– Veneno? – Selenita via uma configuração bizarra nas linhas da palma daquele homem. Se as levasse a sério, bem, seria a mão de alguém que já morreu – Ele causa esses efeitos em vocês? Esse veneno os faz matar bruxas e reis e resistir a torturas?

– Sim.

– E quem os deu a vocês?

Ele iria responder, mas são interrompidos pelo urro de dor do carcereiro que recolhe o braço agora jorrando sangue pela roupa e pelo chão.

– Ele me mordeu!!! Filho de uma cadela!! Eu vou matar esse desgraçado!!

– Não na minha frente, senhor! – Selenita fica em pé – Eu estou tentando fazer minha consulta, subi milhões de degraus para isso e é o que vou fazer!

Os três homens se calam, olhando para ela, surpresos. O arqueiro mais jovem desliza pela parede e sussurra perto dela, como uma serpente:

– Bruxa.

– Sim, bruxa! – joga seu jogo – Como você foi programado para matar. Agora me diga, quem quer que você mate bruxas, arqueiro?!

Com os olhos injetados de vício, ele responde entre os dentes cobertos com o sangue do carcereiro:

– O Soberano.

Selenita tenciona o cenho em silêncio, pensativa, então volta o olhar à bola de cristal em sua mesinha. Passa mais alguns instantes estática, tentando lembrar-se de algo que remetesse a esse mito do Soberano. Sim, era um mito. Os ciganos sabiam de histórias antiquíssimas onde uma grande guerra sobrenatural era anunciada e cada povo precisaria contar com um "soberano" para defendê-los.

Por todas as características dos homens que tem ali, é um povo sobrenatural bem específico que eles representam. Mas são homens ainda, ela sente isso.

Debruça-se sobre a bola de cristal, concentrada, ignorando que ao seu lado o carcereiro sangra e resmunga que deveriam ir embora. Selenita quer saber de onde esses homens vieram, quando se tornaram títeres desse grande rei sedento por sangue.

Vê famílias felizes em cidades de pedras redondas, caudalosos rios, alegria. Reconhece o homem mais jovem em suas visões, ao seu lado uma mulher cultiva algo em seu ventre. Há esperança em seus olhos. Levanta os olhos para a triste figura que ele tinha se tornado, batendo os dentes, faminto sob a luz do fogo.

– Já nasceu? – ela pergunta triste.

Isso transforma a expressão do prisioneiro. Volta a ser a criatura humilde de antes. Olha para o arqueiro mais velho. Ele treme a observando em silêncio: era o caminho certo, mas hoje já tinha sido demais. Já tem o que precisa.

Selenita cedeu o lenço que levava na cabeça para o carcereiro estancar seu ferimento, e, observando o sol se pôr pela elegante janela do gabinete dos Conselheiros, aguardava Uli Campbell trazer seu pagamento depois de ter usado sua mesa para fazer as anotações que julgou necessárias. Olha todos os detalhes do ambiente, comparando aquele luxo e conforto à situação dos prisioneiros que acabara de visitar. É um mundo bem doido, não é? Se resolvesse pegar uma dessas lindas almofadas de carimbo de lembrança poderia ser jogada naquela torre em um minuto. E eles têm tantas almofadinhas lindas...

O Conselheiro volta a entrar no gabinete, sorridente, trazendo um pequeno saco de pano na mão. Pergunta:

– Gostou das almofadinhas do carimbo? Pode levar uma, temos tantas aqui. – dá de ombros.

Selenita arqueia as sobrancelhas, sem falar nada agarra um punhado e joga na bolsa. As coisas estão tão boas que desconfia que algo possa dar muito errado a qualquer momento.

Mas não, só melhora: a quantidade de ouro que recebeu pelo seu serviço poderia sustentar sua família por muito tempo, não sabe nem medir quanto. Imagina-se com novas pulseiras enquanto desce o último lance de escada com os pés descalços sobre aqueles carpetes macios, sendo ladeada por Uli:

– Tenho um colega neto de cigana, sabe? Nosso novo rei, Andy, tem muito carinho por vocês. Disse que uma vez uma cigana lhe fez uma consulta em uma de suas viagens e que guarda muito bem suas palavras!

– Mesmo? O que ela disse?

– Que ele não conseguirá evitar o derramamento de sangue. O que é uma pena, mas é verdade, visto o estado em que se encontra. Isso foi o que ele contou a nós, imagino que tenha muitas coisas guardadas apenas para si.

Selenitafixa o olhar bastante pensativa, sente algum reconhecimento, mas como poderiater certeza? Afinal, seria exageradamente absurdo. E esse dia já teve sua cotade absurdos estourada há muito tempo. 

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