O cortejo (parte 1)

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O caixão fechado desfila sobre rica carruagem. Entalhes de anjos e nuvens adornam cada curva de sua madeira dourada, paradisíaca alusão ao paradeiro da alma já ausente de seu rei. As pétalas alvas das mais diversas espécies florais emolduram a caixa fúnebre, emprestando paz ao veículo, tão bela quanto indesejada visão, que percorre o Jardim Frontal do Palácio de Pedra puxado por quatro cavalos brancos, para logo atravessar os portões e partir à cidade, seguida a passos lentos pelo cortejo silencioso formado pelos parentes e funcionários com quem Lucius III dividira seus dias de vida.

Pela Capital, Shelter, ele segue, assistido pela população que acena lenços pretos e lança punhados de arroz sobre a carruagem, desejando boa partida à alma do soberano.

As ruas de paralelepípedos, onde as rodas de madeira percorrem em velocidade moderada, espalham o gentil som dos pequenos grãos do cereal se chocando às pedras lisas, para logo serem triturados sob os pés dos que seguem rumo ao Templo. O abafado pranto acompanha a multidão, séquito daquele que só se exibia uma vez ao ano e que, hoje, desfila como cadáver pelas ruas que há pouco percorria vivo.

Sob o clima ameno daquela manhã esbranquiçada, Rose caminha devagar ao lado da rainha Emanuelle, os olhos baixos, os pensamentos distantes. Traja longo vestido de renda cinza e tem os cabelos presos por sedoso lenço preto, marca do luto do povo aldéu. Imagina o que ia sentir se, por acaso, fossem dois os caixões sobre a carruagem. O que sentiria ao ver o corpo de seu marido frio, seus olhos vazios, sua boca seca, seu sangue inerte.

Observa a velha rainha, seus olhos estalados e opacos. Pode apenas imaginar o que se passa em sua alma, mesmo porque Emanuelle não diz uma palavra. Nunca diz. Seu silêncio assusta. Vivera cinquenta anos ao lado de Lucius III, teve com ele tantos filhos... Toda uma pequena multidão de seus rebentos caminha ao seu lado, alguns a amparando quando tropeça, tão mergulhada em pensamentos que seguidamente não se atenta a onde pisa com os delicados sapatos que mal conhecem a bruteza das ruas.

É inconcebível para Rose uma vida tão longa com Andy, tantos filhos assim. Deveria lhe ser tranquilizador o fato de ele não estar acompanhando o avô nessa última jornada, tão jovem e vivaz como ele é. Ou era. Entretanto, a imagem de seu caixão indo embora talvez fosse como uma corrente se partindo, um peso enorme sendo descarregado dentro de águas profundas. Desde que ele, como disse, entregou-lhe sua alma, a mesma parece uma bola de ferro em seu tornozelo.

Rose lança um olhar longínquo ao Palácio, sempre tão imponente junto à cidade que crescera ao seu redor. Procura a janela da enfermaria onde Andy repousa há semanas: não consegue perguntar com sinceridade nem a si mesma "como é que ele está?". Baixa os olhos carregados de culpa.

Quando volta a erguê-los, observa a carruagem dourada a que seguia e eis que algo lhe chama a atenção: sobre a caixa fúnebre, pisando pesadamente entre as pétalas, está um imenso e cascudo besouro verde.

***

Mal atravessado o Portal que anuncia os limites de Shelter, a pequena charrete que carrega um jovem mensageiro e uma ansiosa aldeã ecklaciana se depara com uma interminável fileira de carruagens, conestogas e carroças paradas junto ao acostamento. Elas permitem, mesmo que com certo aperto, livre passagem aos que se aventurassem a continuar seguindo a estrada até a cidade. Evelyn estica o pescoço e vê que muitos acampamentos tinham sido erguidos ao lado dos veículos, mostrando que o triste acontecimento que a trouxera a conhecer Elderwood, também o fez com pessoas de todos os cantos do reino.

Famílias camponesas, com suas dezenas de crianças, se preparavam para seguir para a cidade, amarrando lenços pretos nos cabelos ou nos pescoços, selando cavalos e se reunindo, cabisbaixos, respeitosos. Muitos já ocupavam a estrada a pé ou montados, rumo à área urbana.

– Parece que chegamos bem na hora! – comenta o mensageiro chamado Tommen Dimenkal, não mais de dezoito anos, cabelos escuros como seus olhos e rala barba contornando o maxilar redondo, seu novo bom amigo.

– De quê? – continua erguendo-se inquieta, procurando enxergar mais longe.

– Do cortejo de despedida.

Evelyn arqueia as sobrancelhas, curiosa. Mais um acontecimento interessante para ser acompanhado, como tantos nessa viagem.

Seria falso acreditar que essa era a primeira vez que Evelyn Mideline ultrapassara os limites de Ecklacia, ou até mesmo do Reino de Mourões. Desde que Andy partiu deixando uma arca de ouro em seu lugar, Evelyn juntava alguns voluntários para, pelo menos uma vez ao ano, irem buscar livros no reino vizinho, Kophand. Já foi com alguns irmãos e irmãs, já foi com Jerome Abhann, seu pai Amin, até mesmo com Jesse e Marissa Moya. O que trazia rendia muitos novos conhecimentos à sua arte de cura e muitas novas histórias ao imaginário da sempre crescente população de Ecklacia.

Mas dessa vez tinha sido diferente. Por mais que as cidades de Kophand fossem grandes e movimentadas, com edifícios, feiras e toda aquela energia fervilhante que a diferenciava deveras da pequena comunidade familiar de onde veio, Evelyn jamais tinha se deparado com que veio a seguir: Rohrand.

A cadeia montanhosa fez seus olhos brilharem como os de uma criança. As cachoeiras, as pontes, as aves coloridas, as mulheres de cabelos volumosos e intermináveis, a energia no ar... Evelyn quase se sentiu tentada a não seguir mais viagem: queria parar ali mesmo e se despedir de Dimenkal. Ao cair da noite, quando o mensageiro montava acampamento e se recolhia, a ecklaciana se embrenhava nas matas, seguindo o guizo dos vagalumes, guiada por um certo besouro verde que jamais a abandonara, e passava horas rimando junto às altas raízes, sentindo o cheiro dos rios e dos precipícios. Conseguira se encontrar com ninfas das águas, um cervo dourado e, oh, o mais inesquecível de todos: avistou um dragão que, por duas noites seguidas, desceu do cume das montanhas urrando e cuspindo fogo enquanto buscava alimento na escuridão. Uma vez muito ao longe, outra tão próxima que conseguiu sentir o calor das labaredas!

Suas excursões noturnas faziam-na acordar exausta.

– Eu costumo acordar assim – dizia Tommen, simpático – quando tenho sonhos muito vivos.

– Sim, vivos. – respondia, num bocejo – Meus sonhos são definitivamente muito vivos.

Evelyn trouxe tão poucas roupas consigo que ninguém acreditaria que eram todas as que tinha em casa. O saco contendo ervas e seu livro de receituários médicos é cinco vezes maior. Dividindo com o mensageiro o estreito banco de madeira da charrete, usa um desbotado vestido de tecido grosseiro e tem os pés descalços e sujos. Uma capa que um dia já foi azul, com capuz, está amarrada sobre seus ombros magros e sardentos e as duas longas tranças cor de cobre caem sobre seus braços que se esfregam e sacodem em incontida ansiedade. E assim finalmente adentra a Capital do reino onde nasceu seu pai.

Seus olhos claros, entre o verde e o cinza, observam aquela grande cidade de aproximar. O castelo se impõe desde longe:

– É lá que ele mora? – pergunta fascinada.

– É imenso, não é?

– Jamais imaginaria tanto.

Enquanto passam pelas ruas resmungonas e chorosas, Evelyn entorta os lábios, compadecida. Lamenta ter tido de conhecer Elderwood em ocasião tão desfavorável.


O Feiticeiro - Vol II - O Rei (Primeiros Capítulos)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora